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"Notas sobre o problema agrário"


1) A primeira manifestação da crise agrária no Brasil, no último século, é a escassez de mão de obra. Ao iniciar-se a segunda metade do século XIX, o problema da terra no Brasil, para os latifundiários estava estreitamente ligado à falta de braços suficientes. A lavoura tradicionalista, da grande fazenda exportadora, considerava-se seriamente ameaçada pela extinção do tráfico de escravos africanos (1850). Discutiam-se, é claro, outros assuntos do interesse dos grandes proprietários rurais, tais como créditos, fretes baratos para os transportes, dispensa de imposto, etc., mas a todos sobrelevava o suprimento de abundante mão de obra. Pretendia-se assim compensar o atraso técnico de uma agricultura semicolonial.

É então que se cogita da importação de cules [1] chineses, os trabalhadores que supostamente melhor se adaptariam às condições de trabalho servil. Datam daí, também as primeiras colônias de trabalhadores livres trazidos da Europa.

Raras vozes se levantaram por outras soluções para a crise agrária, como, por exemplo, a disseminação da pequena propriedade. Os obstáculos a ela eram enormes. Em 1861, José Bonifácio condenava semelhantes sugestões no Parlamento, com estas palavras: “A agricultura em nosso país tem direito à sua atenção: não é com pequenos proprietários que Sua Excelência (o Ministro da Agricultura) há de dar trabalhadores aos fazendeiros do Brasil. E uma das garantias da ordem nesta terra é a propriedade territorial” [2].

Por “propriedade territorial” compreendia-se apenas a grande propriedade, o latifúndio monocultor, pois vivíamos de exportação de produtos tropicais em terras monopolizadas em poucas mãos. Dar terra a pequenos cultivadores era subtrair braços à fazenda monocultora e exportadora, era prejudicar os interesses criados da classe dominante sobre todas: a dos latifundiários.

2) Para os fins do século, o problema agrário no Brasil toma um novo aspecto. Alguns ideólogos da nova classe que se vai impondo, a burguesia, os quais representavam também as aspirações da crescente pequena burguesia urbana, começam a bater-se contra o monopólio da terra. A crise agrária não resultava mais unicamente da escassez de mão de obra. Viam aqueles ideólogos (Joaquim Nabuco e André Rebouças são os principais) que os escravos fugiam das fazendas e que as fazendas, mantendo a sua estrutura econômica e as relações de produção escravistas ou semi-servis, não teriam grande futuro. Mais ainda, constituiriam um obstáculo ao desenvolvimento da burguesia brasileira. Era necessário, liquidar com o monopólio da terra, das novas bases à agricultura, única maneira de criar-se um amplo mercado interno.

Daí as manifestações claras e insofismáveis, particularmente de Joaquim Nabuco e André Rebouças, nas duas últimas décadas do século XIX [3]. À abolição da escravatura, ligavam eles a abolição do latifúndio, como condição indispensável ao fomento da própria agricultura, de forma que ela viesse a constituir uma base para o progresso da indústria. É evidente que para isso teria que deixa de ser uma agricultura subordinada aos interesses dos exportadores para subordinar-se aos interesses da ampliação do mercado interno.

3) Mas o sonho dos abolicionistas que aspiravam também o fim do monopólio da terra, o qual, por uma aparente lógica, deveria ser realizado pela República de 1889, frustra-se quando a burguesia receia levar avante reformas radicais de caráter eminentemente burguês. Resta-lhe, então, entrar em acordo tácito com os senhores latifundiários— que também em grande parte eram burgueses — para a manutenção da grande propriedade territorial semifeudal. Esta só se modificaria mediante a lenta e penosa penetração do capitalismo na agricultura monocultora, conservando restos feudais que sobreviveram até os nossos dias.

A conservação dos restos feudais ou as relações de produção pré-capitalistas, estava condicionada essencialmente: I. a uma relativa imobilidade econômica e social no campo; II. o ritmo lento no desenvolvimento industrial nas cidades, de modo a não exercer forte pressão sobre o campo e suas retardadas relações de produção.

Desde que se rompe este “equilíbrio” com a ausência daquelas duas condicionalidades, o campo entra em efervescência e fermentam lutas dos despossuídos que não puderam emigrar para as cidades ou para zonas rurais, que os libertem das relações de produção pré-capitalistas. Estes despossuídos, e mesmo os “proprietários aparentes” de que falava Engels, passam então a constituir uma força revolucionária potencial pronta para a ação, isto é, pronta para liquidar com os restos feudais e o monopólio da terra. Para que de força potencialmente revolucionária eles se transformem em força efetivamente revolucionária, exige-se: organização.

4) Hoje, o problema agrário toma novo aspecto. Não é mais condicionado pela escassez de mão de obra. Faz-se a mecanização dos trabalhos agrícolas pelo menos no Sul do país. O aumento em ritmo acelerado da população está criando uma ameaça direta à grande propriedade territorial nas regiões onde o atraso técnico da agricultura é maior. No Nordeste, por exemplo, onde certas culturas reclamam abundante mão de obra durante cinco ou seis meses por ano (carnaúba, sisal, oiticica, cana de açúcar, algodão) há na maior parte do ano um enorme excedente de mão de obra que, se ontem se sujeitava a viver seis ou oito meses sem ganhar, hoje não mais se conforma com semelhante situação. Se esta é a condição de grande parte dos assalariados ou semi-assalariados agrícolas nordestinos, não melhor é a dos arrendatários, meeiros ou terceiros. A formação das ligas camponesas, iniciada em Pernambuco nos meados da década de 50, traduz crescentemente a sua inconformação. O seu exemplo propaga-se a todo o Nordeste, ao Sul, ao Centro-Oeste.

A revolução agrária no Brasil de nossos dias é um imperativo. Forças sociais diversas tendem a unir-se para a derrocada final e radical da de há muito ultrapassada estrutura agrária que herdamos do Império e que a República feudal-burguesa timbrou em conservas. Estas forças são: I. as massas dos sem-terra e os proprietários aparentes; II. os operários das cidades, vítimas diretas de uma agricultura atrasada que entrava o desenvolvimento da indústria e mantém preços artificialmente elevados para gêneros essenciais de consumo; III. os industriais, interessados particularmente na elevação do poder aquisitivo de mais de 40 milhões de brasileiros que vivem no campo e que não podem comprar não somente rádios, televisores, máquinas de costura, mas nem mesmo roupas e sapatos; IV. os agricultores capitalistas, que reclamam terra barata para cultivar.

Assim, são grandes e crescentes forças sociais que se contrapõem hoje ao latifúndio semifeudal. Se este até recentemente ainda podia desempenhar um papel na vida política do país, sobretudo impondo a sua vontade através de um Parlamento fundamentalmente seu, subordinando-o a seus interesses diretos, os mais egoístas, e contrários aos interesses nacionais, a situação mudou radicalmente com o crescimento da indústria nos últimos anos. Os deputados e senadores que representam os interesses do latifúndio podem deter a marcha dos projetos de reforma agrária. Mas não podem mais deter a marcha da formação das ligas camponesas, das associações de lavradores e trabalhadores agrícolas que começam a arregimentar meeiros, terceiros, posseiros e que, amanhã sem dúvida alguma arregimentarão a massa mais consequentemente combativa do campo, aquela mais diretamente ligada aos operários urbanos: os assalariados agrícolas.

5) Esta é, em síntese, a evolução da questão agrária no Brasil no último século. As dificuldades criadas pelo latifúndio ao livre acesso à terra— no que o latifúndio foi sempre zelosamente assistido pelo Estado — visavam sobretudo a proporcionar mão de obras barata à grande fazenda monocultora e exportadora. O regime latifundiário foi mantido com a imposição à nação do ônus do seu atraso.

Malogrou, em seguida, a campanha dos abolicionistas mais avançados contra o monopólio da terra objetivando a facilitar a industrialização do país. Mais uma vez o regime latifundiário era preservado em prejuízo de um setor adiantado da economia e, portanto, em prejuízo da nação.

Assistimos e vivemos agora a mais importante etapa da luta que se trava entre o latifúndio semifeudal e o progresso do Brasil. Existem todas as condições objetivas e subjetivas, para a derrota completa do latifúndio semifeudal. Aí está sua irremediável decadência econômica, sua comprovada incapacidade de acompanhar o ritmo atual de desenvolvimento do conjunto da economia brasileira e atender às necessidades de crescimento do nosso mercado interno. Aí está a correlação de forças flagrantemente contrária ao latifúndio, em posição de derrotá-lo. Temos finalmente um bom início de organização de forças capazes de travar a batalha final contra o latifúndio.

Isto não significa que esta batalha só possa ser ganha por meios violentos, de que alguns choques armados no Paraná e em Goiás constituem indícios recentes. Ela pode ser vencida também, ainda por meios pacíficos, inclusive através do Parlamento. Senão desse Parlamento que há bem pouco se submetem a um grupelho militar e político reacionário e reformou em algumas horas a Constituição para resolver um impasse de caráter político, de um Parlamento novo que se eleja em outubro de 1962 e para cuja escolha poderá ser decisiva a definição de cada candidato: a favor ou contra a reforma agrária?

6) Certos interesses pretendem fazer crer que a reforma agrária é um bicho de sete cabeças. São os interesses contrários a ela. A reforma agrária se efetua em cada país conforme a estrutura agrária desse país. Que caracteriza principalmente no Brasil a atual estrutura agrária? Não só a existência, mas o predomínio do latifúndio semifeudal. Então, o objetivo básico da reforma agrária, quaisquer que sejam os seus múltiplos complementos, é acabar com o latifúndio semifeudal. E a maneira mais simples e direta que existe nas condições presentes para liquidar o latifúndio semifeudal é dividir suas terras hoje incultas ou quase inaproveitadas — em geral à espera de valorização especulativa— entre habitantes do campo que queiram cultivá-las e não tenham terra ou possuam apenas minifúndios antieconômicos. Não vale a pena distribuir uma parte das terras do latifúndio e manter o seu núcleo central. Isto seria como pretender a existência de um regime de liberdade conservando-se o instituto da escravidão. Não pode haver reforma agrária frutífera ao lado do latifúndio semifeudal. Este tenderia sempre a reconstituir-se nos seus antigos limites, a absorver todas as iniciativas econômicas, a obstar o progresso social.

Mas se devemos dar a terra a quem não possui terra, precisa-se saber ainda para que a terra. Não, de certo, unicamente para garantir a subsistência do camponês e de sua família. A terra deve ter uma função eminentemente social, que não tem hoje. Interessa ao camponês, como interessa vitalmente à coletividade, fazer com que a terra produza com fins mercantis. Para isso, é claro, partindo-se também da situação atual em que a imensa maioria dos brasileiros do campo não dispõe de recursos para uma agricultura de mercado, é imperiosa a ajuda direta e multilateral do Estado. Ao Estado compete ajudar o camponês a organizar sua economia através do crédito barato, facilitar-lhe máquinas, e implementos agrícolas, adubos e sementes, garantir o escoamento de sua produção, etc. O que hoje o Estado faz com uma minoria de privilegiados grandes proprietários rurais, financiando permanentemente suas iniciativas com bilhões dos cofres públicos, poderá fazê-lo de maneira benéfica à coletividade, prestando auxilio ao pequeno agricultor, pelo menos nos seus primeiros passos.

7) Fica assim compreendido — mas é necessário frisar — que seria um retrocesso do ponto de vista econômico e social dividir as grandes economias agrícolas organizadas à maneira capitalista e nas quais predomina o trabalho assalariado. Estas podem ser a base das grandes fazendas de produção do futuro, nas quais é muito mais fácil o racional emprego dos métodos modernos de cultivo, portanto com muito mais capacidade produtiva.

Representaria também um retrocesso a distribuição pela reforma agrária das terras públicas, as terras do estado, que perfazem a mais extensa área de solos do País, sabendo-se que pouco mais de vinte por cento da área territorial se incluí atualmente nas propriedades agrícolas. As terras nacionais devem ser cuidadosamente preservadas como um fundo de reservas para o futuro.

8) Outros problemas — numerosos — devem naturalmente ser resolvidos simultaneamente no campo, tais como a extensão da legislação trabalhista ao assalariado agrícola, a regulamentação dos arrendamentos, etc. Mas a medida básica, inicial, o ponto de partida é aquele: remover o maior entrave ao pleno desenvolvimento econômico e social do País — latifúndio semifeudal. Porque, uma vez liquidado este peso morto na vida econômica do Brasil, novas forças econômicas e sociais despertarão no campo, ajudando a impulsionar vigorosamente o nosso progresso.

Notas

[1] Denominação antiga dos chineses e outros povos asiáticos que emigravam para trabalhar como assalariados

[2] José Bonifácio, Discursos Parlamentares, Rio, 1880, p. 99.

[3] Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, São Paulo, 1938, p. 182/183: “... A chamada grande propriedade exige fretes de estrada de ferro à sua conveniência, exposições oficiais de café, dispensa de todo e qualquer imposto direto, imigração asiática, e uma lei de locação de serviços que faça do colono alemão, ou inglês, ou italiano, um escravo branco. Mesmo a população nacional tem que ser sujeita a um novo recrutamento agrícola.” Nabuco escrevia em 1883. Na mesma época, André Rebouças (Diário e Notas Autobiográficas, Rio, 1938, p. 330) dizia pessoalmente ao Imperador ser “a abolição do latifúndio complemento inseparável da abolição do escravo”. Batia-se na imprensa em favor da “elevação do negro pela propriedade territorial, único meio de impedir a sua reescravidão”. Suas cartas do exílio estão cheias de referências ao problema da terra. Prega incansavelmente a divisão dos latifúndios e o que chamava a “democracia rural”. Fustiga os monopolizadores da terra, os landlords, como os chamava, e chega a advogar a “nacionalização da terra”. E que Rebouças traduzia um estado de espírito dominante pelo menos nos setores mais avançados da intelectualidade do fim do Império, prova-o o fato de consignar em suas memórias que um candidato a Ministro, Taunay, impõe ao Imperador, entre outras condições para aceitar o cargo: “Imposto territorial — Parlamento das terras — Pequena propriedade”.

Publicado na revista Estudos Sociais, a dezembro de 1961

Rui Facó

Nota dos editores: nem todas as posições expressas neste texto condizem necessariamente e/ou integralmente com a linha política de nosso site ou da União Reconstrução Comunista.

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