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Vieira Pinto: "Inconveniência do pensamento formal"


A racionalidade da consciência crítica exprime-se na compreensão dialética do processo da realidade. Excluindo como ilusórias as atitudes místicas, intuitivistas, anti-racionais, e como falsos os esquemas da lógica meramente formal, a consciência crítica cultiva o modo de pensar dialético como o único que lhe permite interpretar corretamente os fatos que testemunha e o estado da realidade que deseja modificar. Nem a postura intuitiva nem o formalismo das teorias lógicas abstratas lhe seriam úteis para entender devidamente o processo em cujo desenrolar quer exercer voluntária intervenção com o fito de encaminhá-lo para obter os fins que tem em vista. De fato, são imprestáveis ambas essas atitudes intelectuais; uma, porque, negando a natureza racional da realidade, a considera campo devoluto às fantasias da imaginação e aos delírios intelectuais mais improfícuos; outra, porque, apegando-se a esquemas formais imobilizadores do curso real do processo histórico, pretende, por via abstrativa, traduzir em conceitos imóveis a contínua mobilidade da realidade. Esta última maneira de pensar é particularmente imprópria, porquanto impede o descobrimento das leis efetivas que regem a mudança das situações sociais, deixando-as sem explicação plausível ou entregando-as a doutrinas inadequadas, que postulam a invariabilidade de princípios absolutos, captados pela razão por meio de suposta evidência intelectual. Traduzindo o movimento da realidade em um universo de conceitos estáticos, é claro que este modo de pensar estabelece um equívoco inicial insanável e se constitui, desde a origem, em método inábil para explicar as incessantes variações da realidade. Conduz tais enganos idealistas mais infecundos, fazendo crer que a mobilidade da realidade se deve enquadrar nos esquemas de uma lógica válida somente para exprimir relações entre coisas ou ideias imóveis. Conduz à teoria das verdades eternas, dos valores absolutos, das leis abstratas, enfim, a todas essas ilusões que transviam o espírito da justa intelecção do movimento da realidade. Faz crer que as leis do mundo são derivadas do espírito, não passam de articulações lógicas entre conceitos retirados, por via abstrativa, da existência exterior. A racionalidade do mundo não pertenceria portanto ao mundo em si mesmo, mas ao espírito que apreende os fenômenos, os encadeia e interpreta segundo relações constantes que lhes impõe, de acordo com as condições em que os conhece. A racionalidade do mundo consistiria, pois, em submeter-se ao espírito, possuidor exclusivo da razão, a qual, no ato do conhecimento, seria outorgada às coisas e aos acontecimentos. A razão constituiria, assim, uma faculdade do espírito e daí é que reverteria à realidade exterior, à medida que essa realidade se submete às condições da inteligência que a conhece. A racionalidade, por conseguinte, não pertenceria originariamente ao mundo, mas ao pensamento que se ocupa do mundo. Não nos devemos alongar na análise deste assunto, que inclui o essencial do problema epistemológico; desejamos apenas apontar a inconveniência do pensamento formalizador para a consciência do país subdesenvolvido, que forceja por se entender a si mesmo e por fazer do trabalho intelectual um de vencer as condições limitantes de sua existência. Deixando de lado numerosas outras incorreções, indiquemos apenas uma, de ordem prática: esse modo de pensar conduz a assumir atitude passiva diante do processo objetivo. Qualquer que seja o estado de miséria e sofrimento que constitua a realidade da existência, o pensamento abstrativo e formalizador impede o indivíduo de se empenhar na luta coletiva por transformá-lo, pois, estando convencido de que a intelecção da natureza e da sociedade se faz por meio de esquemas abstratos, lhe será sempre possível ter delas nova compreensão, que as apresente como diferentes, bastando para isto retocar o sistema formal de que se serve, introduzir distinções cavilosas e acréscimos abstratos, de tal maneira que parece substituir a teoria geral, quando na verdade conserva-lhe as bases e apenas a amplia e adapta aos fatos originais. A consciência conservadora não se mantém graças à substituição de ideias, mas pelo retoque e adaptação daquelas que nunca se despoja. Para levar adiante este procedimento, tem de pairar no domínio do abstrato. Se a realidade é desfavorável, mais fácil é recondicionar o sistema de ideias que a apresentam como desfavorável do que alterá-la objetivamente por ações revolucionárias. Se a lógica é formal, se o critério da verdade é a simples coerência entre as ideias, vale mais produzir novo sistema conceitual, em função do qual o mundo se apresente com outro sentido, se submeta a outros valores, conservando no entanto os fundamentais, e desperte outras esperanças, do que atacar o trabalho difícil e incerto de transformá-lo nas suas condições materiais. O conceito formal da razão, considerando-a propriedade exclusiva do espírito, abandona o mundo à própria sorte e impõe ao homem apenas a tarefa intelectual de organizar racionalmente, isto é, coerentemente, à vista do grupo de postulados ou princípios escolhidos na base de suposta intuição, ou de modo arbitrário, os dados da experiência. Desencoraja o homem do esforço ingente de revolucionar as condições de sua existência, convidando-o apenas ao ameno trabalho intelectual de encontrar o sistema de ideias que apresente como racional o estado de coisas existente. Eis porque dizíamos que essa atitude se torna desencorajante para a consciência emergente do país atrasado, cuja missão capital é proceder à transformação do seu contorno vital. Vemos portanto que não somente as atitudes irracionais, navegadoras do valor da razão, as que entorpecem a atividade criadora da consciência em luta contra o subdesenvolvimento econômico. Igualmente nocivas são as teorias que, embora justificando-se como maneiras racionais de pensar, porque se equivocam nos princípios metodológicos adotados, conduzem a um comportamento passivo, intelectualista, imobilizante em face da realidade, impedindo a consciência de se tornar fonte de iniciativas modificadoras. Não basta, portanto, defender em sentido geral o caráter de racionalidade do mundo para acreditar que, só com isso, assumimos a consciência crítica eficaz; é preciso especificar a maneira pela qual entendemos essa racionalidade. Porque, se for de natureza normal, isto é, abstrata e meramente configurativa dos dados da experiência, de nada vale para enfrentar o trabalho que a realidade vivida nos impõe. É preciso, assim, encontrar outro conceito da razão e a ele nos vincularmos, para proceder de maneira não apenas justa na tarefa de interpretar o mundo, mas sobretudo eficaz no afã de modificá-lo. Essa nova concepção da racionalidade é a de caráter dialético. Escrito por Álvaro Vieira Pinto Fonte: Subseção i "Inconveniência do pensamento formal" do capítulo 3 "A categoria de racionalidade" da obra "Consciência e Realidade Nacional - Volume 2, a consciência crítica. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1960. pg. 62-64.

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