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"Massas em Luta e Multidões a partir Coisas"


Curzio Malaparte, autor de extrema-direita do período de entre-guerras, escreveu nos anos 30 um livro insólito chamado Técnica do Golpe de Estado. Nele adentramos numa série de episódios da conturbada história europeia que se estendem do fim da I Guerra Mundial à ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, e confrontamo-nos com uma série de coisas singulares: revolucionários de esquerda a tentarem tomar o poder à frente de divisões do exército, e a serem detidos por greves operárias convocadas pelo Governo; revolucionários comunistas a serem rechaçados de arma em punho por trabalhadores que ouvem o terço pela rádio; camponeses a atacar enraivecidamente piquetes de greve por serem “socialistas”, em nome do ressurgimento e da expansão imperialista da “nação proletária”; um sem-número de coisas. Pouca literatura será tão elucidativa para desmantelar na cabeça de alguém o fetiche de que a direita é ineremente defensora da ordem, a esquerda necessariamente impermeável à lógica do sentido de Estado e da responsabilidade institucional, que a dialética entre meios e fins pode ser reduzida a uma linearidade simplista em que as ações militares nunca são boas, as greves estão sempre corretas, há muitas verdades gerais, e a teoria revolucionária não tem materialidade histórica, só um conjunto de slogans mais ou menos aditivados da boa vontade idealista de fazer coisas. Quem olha para a história dos anos 30 fetichizando a imagética das massas em andamento, sem marxismo a enquadrar essa observação, facilmente será arrastado para as conclusões mais erradas. E os tempos de hoje, em que novos movimentos de massas saem à rua em França, exigem ser observados através desse arsenal científico, sob pena de nada percebermos e, hoje como há 80 anos, propormos soluções erradas que nos tragam de volta à casa de partida.

Referindo-se aos primórdios do movimento operário, Marx dizia que nesse então “a coesão maciça dos operários não é ainda a consequência da sua própria união, mas a consequência da união da burguesia, a qual, para atingir os seus objetivos políticos próprios, tem de pôr em movimento o proletariado todo, e por enquanto ainda o pode. Neste estádio os proletários combatem, pois, não os seus inimigos, mas os inimigos dos seus inimigos, os restos da monarquia absoluta, os proprietários fundiários, os burgueses não industriais, os pequenos burgueses. Todo o movimento histórico está, assim, concentrado nas mãos da burguesia; cada vitória assim alcançada é uma vitória da burguesia”. Posto que na história nada acontece sem o risco de retrocessos dramáticos, e sendo sabido que a organização operária construída a duras penas e que dotou por muitas décadas a classe de uma capacidade de iniciativa política independente da burguesia foi desde o pós-guerra ciosamente destruída na Europa pelo trabalho burocrático, rotineiro, pela redução do sindicalismo a um serviço prestado e não numa estrutura organizativa e consciencializadora dos trabalhadores, e dos partidos de esquerda a máquinas eleitorais de vistas curtas, em 2018 a burguesia pode, não ainda mas de novo, através de um arsenal de aparelhos de conformação ideológica muito mais afinados do que os que tinha - e já funcionavam - em 1848, pôr a classe trabalhadora a servir de sua tropa de choque com recurso a expedientes demagógicos e a propostas tonitruantes que explorem o seu desarmamento crítico e político.

Recordar a caracterização do fascismo feita pelo VI Congresso da Internacional Comunista (o tal de que os trotskistas já não gostam), como “um sistema que recorre a uma forma peculiar de demagogia (antissemitismo, diatribes ocasionais contra os usurários, gestos de impaciência contra as “discussões inúteis e palavrosas” dos parlamentos), de modo a encarrilar o descontentamento da pequena burguesia, dos intelectuais, e certos sectores do proletariado”, do fascismo que procura “por todos os meios, recrutar para as suas fileiras os sectores mais despolitizados do proletariado instrumentalizando o seu descontentamento, aproveitando a inação da social-democracia”, é de extrema importância aqui chegados. É isso que nos permite compreender o absoluto mecanicismo de achar que de cada vez que há um movimento de massas na rua a atitude deve ser a de correr a “disputar o processo” de modo a ganhar a direção do movimento e o encaminhar para objetivos políticos justos. Essa tese pode ter aplicabilidade em contextos em que a burguesia tem um domínio tão frágil sobre a classe trabalhadora e uma organização tão fraca da sua própria classe que se revela incapaz, sequer, de derrubar a autocracia feudal e instaurar um regime demoliberal sem alimentar com isso a criação de inúmeros e instabilíssimos órgãos de poder popular. Transpor mecanicamente esse contexto histórico para a análise de fenómenos de agitação de massas dinamizados por classes e fracções de classe com sólida implantação social, organizações políticas fortes, prestígio entre as massas e real capacidade de influir e revolver as estruturas do poder, é propor anticientificamente uma receita mágica em que “ir lá disputar” é sempre a resposta, e a teoria revolucionária é uma perda de tempo. Trata-se de desvio movimentista, e como todo o movimentismo é profundamente idealista no plano das ideias. É preciso conhecer mais sobre os movimentos antes de se deixar seduzir pela imagem de pneus a arder e polícias a fugir da multidão.

Não é a primeira vez que a França tem insurreições antifiscais lideradas pela pequena burguesia que escalam a um ponto de grande conflitualidade com o aparelho de Estado. Nem sequer é a primeira vez desde 1945. O movimento poujadista (nome derviado do seu líder, Pierre Poujade), que de 1953 a 1958 assaltou repartições de finanças, incendiou edifícios públicos, confrontou as forças policiais, e nem 15 anos volvidos da derrota nazi-fascista voltou a pôr em cima da mesa uma ruptura pela direita com o regime demoliberal, era um movimento de pequenos comerciantes contra a exacção fiscal. Ao mesmo tempo, provando que tal como no início do séc. XX os períodos longos de desenvolvimento pacífico do capitalismo são propícios à disseminação de ideias reformistas em amplos sectores da classe trabalhadora, sobretudo se recebem administrativa e regularmente o seu aumento salarial por obra e graça do poder burguês e “aprendem” a confiar nas instituições para fazerem política por elas, a esquerda francesa foi, ao longo dos últimos 50 anos consolidando as suas posições em torno de ideias eurocomunistas as mais escabrosas, que nenhuma retórica “insubmissa” à Jean-Luc Mélenchon permite disfarçar. O período que vem de 1945 aos nossos dias é portanto de um cioso esforço da extrema-direita para se constituir como a grande alternativa de regime à ordem demoliberal, ao lado de uma esquerda que, não sem alguma histeria por vezes, se gaba de ser a primeira e principal defensora dessa mesma ordem demoliberal, quantas vezes até mais do que os elementos liberais e conservadores dos partidos burgueses, que vacilam entre os princípios e o fascismo. Não é aqui o momento de esmiuçar como é ingênua a suposição de que os liberais “vacilam”, e não se limitam a perceber que se a metamorfose necessária à prossecução do modo de produção é o fascismo eles não se deixarão “amarrar a cadáveres” como propunha Salazar aos monárquicos. Mas assim se percebe como a esquerda surge crescentemente associada a uma ordem odiosa que oprime e o fascismo a uma ruptura que pode trazer algo de novo, como a esquerda deseduca e abandona a tarefa de elevar a consciência política das massas enquanto o fascismo explora e cresce à conta desse desarmamento político. Penso ser inútil voltar a abrir o debate sobre as eleições brasileiras de este ano.

Pela própria lógica das coisas, porque um movimento desta escala, com esta capacidade de enfrentamento e longevidade não cai do céu aos trambolhões nem nasce da espontânea cólera moral e cidadã de uma consciência coletiva forjada magicamente por viralizações de redes sociais, como pretendem as explicações infantis do fenômeno dos gilets jaunes com o fito evidente de que quem efetivamente quer transformar a sociedade se socorra destes métodos e falhe, é evidente que se não foi a esquerda pacifista e ordeira a levantá-lo foi por inerência a Frente Nacional. Com os mesmos métodos da demagogia fascista, a mesma conversa primária contra os políticos que roubam e os banqueiros mundialistas, as mesmas propostas xenófobas de dar aulas de educação cívica aos refugiados em França e de expulsar quem não puder atestar manifestamente que está a refugiar-se de uma guerra, setores intermédios da sociedade francesa trazem atrás de si um número considerável de trabalhadores que à falta de melhor coisa se envolvem num movimento onde lhe enchem menos os ouvidos com a conversa eurocomunista do movimento sindical e onde esperam ter a mão um pouco mais desembaraçada do que nas manifestações da CGT. O que faremos perante isto? Vamos para as fileiras do movimento que a FN levantou tentar esclarecer os trabalhadores que o seu lugar não é ali? Que destino nos reserva isto? Quem, em seu perfeito juízo, diria que a estratégia para evitar a ascensão do nazismo devia ter sido ir para as fileiras das SA convencer os caceteiros que por lá andavam da bondade de uma sociedade socialista?

A nossa tarefa é montar a organização popular revolucionária que foi destruída por décadas de reformismo. Essa tarefa exige efetivo trabalho de enraizamento popular, mobilização, consciencialização política das massas, não havendo “disputas” nem curto-circuitos possíveis nesse trajeto. O nosso objetivo é dotar a classe trabalhadora da organização que lhe permita erguer-se em luta contra o capitalismo e derrubá-lo, instaurando uma ordem socialista que ela construiu plenamente consciente das tarefas históricas que se lhe colocam. Existimos para levar as massas à luta, e entregamos de bom grado o papel de participar no movimento das multidões a partir coisas a quem bem entender.

Por João Vilela

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