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"Ghouta e o bombardeio midiático"



Bombas explodem em um subúrbio de uma capital árabe; mais que uma capital árabe, uma das grandes cidades da humanidade. Damasco é a capital da Síria e Ghouta Oriental o subúrbio que passou os últimos anos dominado por grupos armados que lutam contra o governo de Bashar al-Assad. As forças do exército sírio, controlado pelo governo, somam esforços neste momento para retomar a região, que forma um cinturão em volta da capital. Os rebeldes recorrem a um histórico de dominância de Bashar al-Assad e autoritarismo na Síria para se valer da posição de combatentes da liberdade que lutam contra um ditador. Assad se firmou como defensor do secularismo e da diversidade frente a militantes radicais e fundamentalistas. As forças auto-proclamadas revolucionárias contaram e contam com apoio dos Estados Unidos e seus aliados, França e Inglaterra na Europa, Arábia Saudita, Qatar e Turquia no quadro regional. Assad resistiu aos ventos iniciais de sua derrubada e encontrou aliados no Irã, na Rússia e no Líbano (o poderoso partido nomeado Hezbollah). A guerra em breve completará oito anos, e nada disso é novidade. A parte oriental de Ghouta já está ocupada por rebeldes há muito tempo, com a diferença de que a hoje são um resto de uma rebelião desmoralizada e derrotada – o único outro pedaço de terra relevante com bandeiras “revolucionárias” é uma parte do norte de país ocupada pela Turquia e pela Al-Qaeda. Pessoas já escreveram e reescreveram sobre essa guerra, se posicionaram uma vez e se posicionaram de novo. Mas 2018 veio sim com uma aparente novidade: a comoção foi geral por causa de Ghouta Oriental. Governos, grande mídia e principalmente internautas passaram a chorar as dores da ofensiva do exército sírio contra o enclave rebelde. Não podemos criticar como as pessoas se sentem, é claro. O que temos aqui, no entanto, é mais do que subjetividade; é uma grande orquestra sentimental conduzida por uma fábrica política, um verdadeiro espetáculo. Espetáculos nós podemos criticar e isso não está muito longe da pretensão contra-hegemônica de nosso espaço. Somos críticos de espetáculos; antes críticos de espetáculo do que transmissores de informação. A potência global comandada por Trump está fazendo exigências sobre a Síria, grupos de interesse pró-intervenção ganham força e a ONU teve sua atenção desviada para o problema. Não é difícil desconfiar da existência de forças poderosas que buscam manipular a opinião pública mundial, interessadas em, ao menos, jogar lenha na fogueira – olhando para alguns fatos se passa da mera desconfiança. Dizem que a verdade é a primeira vítima da guerra. Em oito anos, a verdade é vítima faz tempo, mas aqui a verdade mais uma vez é violentada.

Novidade, mas nem tanto Desde o início dos conflitos na Síria, o apoio dos Estados Unidos aos rebeldes implicou na articulação midiática internacional de costume que é promovida por esse país toda vez que seus interesses estão em jogo. A política norte-americana – bem como de europeus, sauditas, qataris e turcos – era a de que Assad must go; Assad deve sair. No momento inicial tudo estava bem colocado para uma narrativa perfeita. Não era necessário forçar muito, já que o romantismo de uma revolução contra um ditador tirano exerce muita atração. O foco era criar uma opinião pública favorável aos rebeldes e a um comitê que os representasse, comitê bem controlado pelos estrangeiros (o Conselho Nacional Sírio). Foco narrativo: “Revolução Síria” – qualquer intervenção estrangeira era portanto um auxílio a uma luta pela liberdade. Nessas condições seria mais fácil de justificar um ataque contra a Síria, uma no fly zone contra os aviões do governo e bombardeios internacionais. Isso também justificava o fluxo de armas para a Síria (armas que podiam muito bem cair na mão do Estado Islâmico, como caíram). Surgiram problemas para essa narrativa: muitos rebeldes eram adeptos de ideologias que até então o Ocidente sempre chamou de “fundamentalismo islâmico”. As pessoas observavam a profundidade do poço em que a Líbia tinha se enfiado depois de uma revolução parecida. Essas filiações passaram a pesar mais na medida em que os rebeldes começaram a cometer crimes e atos de terrorismo, tendo como vítimas preferenciais as minorias religiosas, mas também executando pessoas por motivos diversos, desde os mais ideológicos até as vinganças mais baixas. Para isso já existia uma carta preparada, a dos “rebeldes moderados”. Todo tipo de reacionário islamista, especialmente aqueles da Irmandade Muçulmana (que na Síria tem uma longa rivalidade contra os Assad e o partido nacionalista árabe governante), estava sob um guarda-chuva chamado “Exército Sírio Livre”. Existiam também grupos puramente criminais, extorsionistas e hooligans usando essa bandeira, que eventualmente foram em sua maioria suprimidos pelos movimentos islamistas mais disciplinados e que eventualmente assumiram nomes mais no estilo “Frente Islâmica” (alguns se juntaram prematuramente à Turquia na fronteira). Depois de um longo período, que terminaria em um racha nos rebeldes que deu origem ao ISIS/”Estado Islâmico”/Daesh, a etiqueta “rebeldes moderados” foi caindo em desuso. O objetivo desse texto não é fazer uma grande árvore das centenas de grupos e frentes nas quais eles se organizaram, sempre mudando de nome, porém é importante esclarecer que essa desordem toda nos nomes e rótulos tem um motivo específico. Esse motivo se resume numa alta dependência de patrocínio do exterior e, o que é pior, de patrocinadores diversos e que competiam entre si. Por exemplo, um contato entre uma rede turca com uma rede saudita pode gerar uma frente unida dentre os grupos dessas redes em uma determinada localidade, daí é um novo nome, um novo comando e, mais importante, um novo marketing. Além disso, os combatentes, muitos deles estrangeiros, tendiam a migrar de um grupo para outro, com a remuneração sendo a principal motivação, atuando então como mercenários – é ponto pacífico hoje que não podemos entender o “Estado Islâmico” sem entender isso: eles pagavam bem e pagavam à vista, fizeram um verdadeiro takeover no mercado terrorista. Nessa competição de patrocinadores, até mesmo norte-americanos se digladiavam entre si. Entidades estatais como a CIA e o Departamento de Estado apostavam em caminhos discrepantes, como numa corrida, enquanto o Pentagóno e o exército preparavam uma terceira via. McCain não estava no executivo, mas usou sua influência de senador. Os intervencionistas mais radicais perderam um pouco de poder quando Hillary Clinton foi retirada do Departamento de Estado precisamente por conta de fracassos na Síria, mas eles seguiam fazendo o possível e contando que uma virada no exterior melhorasse suas posições na política. No meio dessa confusão e na multiplicação dos crimes, cada vez mais a palavra-chave “moderado” parecia confusa e equivocada, então era natural que eventualmente morresse. Ela não morreu antes de lutar sua última batalha, no entanto, e essa batalha foi em Aleppo. Uma parte da maior cidade da Síria estava dominada por esses grupos armados, principalmente pela franquia da Al-Qaeda no país. Depois de conseguir vitórias importantes por todo país, o governo começou a avançar sobre Aleppo: os intervencionistas começaram a ver sua estratégia para derrubar Assad desmoronar, enquanto os terroristas entravam em pânico. A aposta então foi pintar a ofensiva em Aleppo como uma operação genocida e criminosa de um tirano sanguinário contra o seu povo. Diziam absurdos e compartilhavam história sem verificação de fontes não só interessadas, mas suspeitas, com acusações nebulosas. Inclusive usaram videos de propaganda da Al-Qaeda: chegaram a realizar uma grande campanha onde “moradores” faziam videos-selfie dizendo que “é o fim, o exército vai nos matar”, “não sei o que será de mim”, sempre com o mesmo discurso e estilo. A acusação de genocídio aéreo e por artilharia, “querem destruir a cidade inteira”(sequer esclareciam que era só uma parte da cidade), deu lugar a imagem de grupos de extermínio, “homens e meninos estão desaparecendo” (evocando a questão do genocídio na Bósnia, para quem pudesse lembrar), depois tropas que iam de casa em casa executando as pessoas – os mais fanáticos enfatizavam que se tratavam de “xiitas” para estimular o ódio religioso e sectário. Pouca atenção deram para os esforços de mediação por parte da Rússia e para a criação dos corredores humanitários. Muita gente conseguiu evacuar para o lado do governo, outros não conseguiram porque os rebeldes não queriam permitir. Outros ainda seguiram por um corredor que dava passagem segura para território rebelde ao norte, em Idlib – incluindo nesses outros os próprios rebeldes que defendiam a cidade, muitos deles armados. O discurso exagerado se desmanchou no ar. Como não se interessaram por Aleppo quando ela foi oprimida por fundamentalistas e ignoraram que a maioria dos habitantes da cidade logo no início fugiu para o lado governo, também não se deram ao trabalho de cobrir como quase que imediatamente a cidade voltou a viver, principalmente do ponto de vista da pluralidade religiosa e do secularismo, após sua libertação. Também não foram atrás de confirmar suas histórias, porque não havia nada para confirmar: os jornalistas que já estavam lá não reportavam nada do tipo desde o início, mas a mídia tão pouco quis dar follow up. Eles podiam ir para a cidade sem assédio do governo, mas se o problema é esse (alguns vão dizer que é) sequer se preocuparam em formular uma narrativa de “sobreviventes” recorrendo aos rebeldes – Aleppo virou uma vergonha. Os “desaparecidos” que podiam alimentar tanto uma campanha dramática para os muçulmanos em nome dos mártires como para os ocidentais em nome dos direitos humanos são inexistentes – de alguma maneira era possível acusar o governo de crimes menores e expor os massacres dos rebeldes, até do Estado Islâmico, mas o genocídio de uma cidade inteira não. Deixaram quieto. Aleppo ainda serviu para alguma coisa: os sauditas solidificaram a unidade dos grupos que apoiam, a Al-Qaeda se firmou como principal força militar da “oposição” e a Turquia passou a intervir mais diretamente contra Assad. O discurso que estão fazendo em cima de Ghouta agora é uma repaginação cansada e mal feita da campanha de Aleppo. É uma impostura em que repetem o que foi aplicado antes. Como antes, dão pouca ou nenhuma atenção aos grupos que dominam a região. Como antes, valorizam mais o choque do que a informação ou a matéria de qualidade. Dificilmente mencionam que os rebeldes bombardeiam Damasco diariamente. Como antes, usam fotos de outros lugares. Em Ghouta, temos esse caso como o mais famoso:

Disseram que é em Ghouta, mas são duas fotos de dois lugares diferentes. A do homem com o filho é de 4 de março de 2017, em Mosul, no Iraque, bombardeada pelos Estados Unidos. A outra é uma imagem sem data de Gaza creditada à EPA, mostrando um bombardeio israelense. Na época de Aleppo, usavam fotos da Palestina, do Líbano (atacado por Israel) e do Iraque.


“Wow. Vídeo marcante da Síria de um jovem garoto fingindo lesões duas vezes para salvar uma garota: o regime sírio ataca crianças.”

É bom lembrar que na Síria temos um histórico de montagens de propaganda sendo expostas, encenações. Algumas foram desmentidas nas redes sociais, mas houve até o caso de um video de uma criança “desviando de balas de snipers“, tão absurda que a mentira teve de ser corrigida nos meios corporativos do Ocidente (esse caso teve a particularidade de ser filmado por um europeu). Esforços russos para uma resolução pacífica vêm sendo ignorados de forma precipitada e desonesta, quando os esforços dos russos tem um grau de legitimidade, mesmo que interessados (como todo projeto de paz em um conflito). Ao invés disso, uma carta patrocinada por turcos e sauditas fala de “genocídio”, posição que é replicada pelo The Guardian por um articulista particularmente favorável a intervenção e que compara diretamente a situação com o Massacre de Sbrenica, na Bósnia. Como em Aleppo, uma narrativa coordenada na mídia internacional dá a impressão de que o regime só bombardeia hospitais. O governo de repente passa a combater contra hospitais, quase que exclusivamente – o governo bombardeia civis mas “alguma coisa” o impede de avançar depois de bombardear. Essa é uma técnica simples de guerra de informação. Não subestimem o poder da mídia: ela produz narrativas e emoções numa escala global. Não se trata simplesmente da mídia que reporta as organizações internacionais, mas das organizações internacionais que podem ser pautadas pela mídia. Hipocrisia? Existe uma ofensiva do governo contra as forças rebeldes, e essa ofensiva tem bombardeios. É claro que existe violência, destruição e derramamento de sangue, incluindo, infelizmente, a morte de civis. As fotos falsas indicam um pouco mais do que uma desinformação inerente ao caos da rede; elas dão dicas de uma campanha coordenada. Mesmo assim, existe destruição real para registrar. Destruição como em Raqqa, Mosul e em Sanna. Ainda que os bombardeios norte-americanos em Raqqa e principalmente em Mosul tenham sido maiores e mais brutais, mais destruidores e menos cuidadosos, foram ignorados. No Iêmen nós não vimos só a destruição na capital do país, mas uma nação cair no maior desastre humanitário de 2017 devido aos bombardeios sauditas. Ignorada. Tratam-se de cidades grandes, com população considerável. Não é a toa que essas imagens de bombas nesses lugares sejam mais apelativas do que as bombas caindo em pequenos assentamentos num subúrbio rural (como é Ghouta). Quando falou-se de Mosul, mesmo as organizações que criticaram a campanha de retomada da cidade fizeram questão de enfatizar interesses dos terroristas e uma estratégia de usar escudos humanos. Como disse o correspondente americano Dan Cohen em resposta ao comentário de um jornalista que fazia comparações com o Holocausto: “Ghouta é como o holocausto, mas Mosul era um ‘grande evento jornalístico’ onde as forças guiadas pelos Estados Unidos tomaram ‘muito cuidado’ para enterrar pelo menos 3200 civis no entulho.” Os números em Mosul nunca foram uma grande preocupação para a mídia ocidental, assim é que não se importaram quando surgiram disparidades nos números que tinham em mãos. A AP disse em dezembro de 2017, ao final da ofensiva, que “o preço que os residentes de Mosul pagaram em sangue para ver sua cidade liberada foi de entre 9 mil e 11 mil mortos”. Reparem bem: as vítimas dos bombardeios foram um “pagamento em sangue” que os residentes deram pela libertação da cidade. Isso é dito tranquilamente, mas quando uma jornalista independente na Síria que está em campo em Ghouta diz que estão mentindo sobre Ghouta e acusa os terroristas, ela é difamada e tratada como “aliada de Assad” – no entanto não é visto como “politicamente parcial” cerrar fileiras com os Estados Unidos. Claro que nesse caso esses jornalistas da grande mídia usam sua posição para cobrar mais intervencionismo do governo norte-americano. É até irônico que uma máquina milionária com vínculos claros e comprovados com o sistema (inclusive com o Departamento de Estado), com um histórico de mentir para justificar guerras (vide Iraque), ataque uma jornalista independente como se ela fosse a propagandista. O exército sírio está no solo lutando uma guerra de várias frentes, ameaçando a totalidade do seu povo, coisa que não foi experimentada pelos Estados Unidos. Quando são eles que matam e fazem bombardeios, quando eles transformam Mosul em um monte de ruínas, é moral e necessário, os civis que morrem são um “preço de sangue”, um “dano colateral”; quando é a força aérea do governo sírio é massacre, holocausto, atrocidade. Essa não é só a ideologia do governo americano, mas a ideologia retratada e incorporada na mídia ocidental. Nem em Raqqa e nem em Mosul cobraram negociações com salafistas radicais ou a evacuação de civis. O bombardeio indiscriminado passou batido, quando não foi louvado. Esses grupos “rebeldes” não são tão diferentes do Estado Islâmico – no fundamental, são a mesma coisa. A mídia dá espaço para uma “carta aberta internacional” chamando a ofensiva de Ghouta de genocídio. O The Guardian fez uma comparação com os acontecimentos de Sbrenica, na Bósnia. Essa circulação só ocorre por conta de um interesse da Casa Branca, do Departamento de Estado, engrossada não só pelo lobby e a propaganda dos grupos armados, mas seus patrocinadores diretos da Arábia Saudita e da Turquia. Não importa se em algum momento passam a dizer que “todos estão errados” se o resultado prático dessa campanha for uma intervenção internacional e especialmente uma no fly zone. Essa “neutralidade” é particularmente inconsistente quando vem de ativistas e jornalistas com histórico de apoiar os rebeldes e o intervencionismo na Síria – sendo este intervencionismo raiz da violência. Quem tem poder articula os poderosos. O Secretário Geral da ONU não fez questão de se dirigir ao Conselho de Segurança para expressar preocupação sobre Raqqa, sobre Mosul ou sobre Sanaa. Isso não é como em outras tragédias da vida e do cotidiano, onde nós podemos alegar que é um problema de informação, “que tudo está mal”. Isso é uma diferenciação política deliberada, que atende a interesses específicos, faz parte de uma estratégia. Dentro da estratégia norte-americana, a Síria é uma prioridade desde os anos 50. Os governos dos Estados Unidos queriam Assad fora do poder já em 2003 e a partir de 2006 esse objetivo se tornou uma prioridade. Ademais, há uma guerra psicológica contra a Rússia e um mercado de notícias em torno do inimigo russo. Em um certo momento chegaram a mencionar mais aviões americanos, em notícias falando de como, por exemplo, caças americanos bombardearam mais a Síria sob o curto período de Trump do que na Era Obama. O único objetivo aqui é engrossar o bom negócio de atacar o figurão. A campanha aérea só começou no final da administração Obama, com apoio dessa mesma mídia que aplaudiu o avanço em Mosul. É até bom nos lembrarmos que diversas vezes os aviões norte-americanos ajudaram o Estado Islâmico “sem querer”, em situações em que precisamente prejudicariam o exército sírio. Lembrem-se que o ISIS enviou um comboio gigante no meio de uma estrada do deserto de Mosul até Raqqa, na Síria, para garantir sua guerra contra Bashar Al-Assad e os Estados Unidos nada fizeram contra esse alvo fácil, exposto, em terreno aberto, sem capacidade anti-aérea – muito diferente do zelo com o qual destruíram Mosul. Tudo questão de interesse: era do interesse da política deles que Assad caísse e que os terroristas anulassem o Estado sírio (o que faz parte de uma estratégia de sobrevivência de Israel). Jogando nossa memória para mais longe e para a infelicidade de uma nação inteira, que é o caso da Líbia, pelo menos temos o comentário de Seumas Milne no The Guardian sobre como a intervenção da OTAN naquele país não protegeu civil nenhum, só aumentou o número de vítimas. Apesar dessa voz dizer isso em um grande meio, não vimos na época uma campanha generalizada de comoção e condenação contra o intervencionismo – pelo contrário, eram justificativas e mais justificativas. Pessoalmente, tendo presenciado a destruição no Leste da Ucrânia, também não posso esquecer o silêncio da mídia internacional para os bombardeios indiscriminados e punitivos que o Estado ucraniano fez no início e no decorrer da guerra civil. Ser aliado dos Estados Unidos é a condição para ser livre de críticas. Na Síria, como vemos, o tom é muito diferente. Até as exigências desse “jornalismo profissional” relaxam no grande jogo da hipocrisia. Qualquer fonte é válida. Mesmo depois dos vídeos de Aleppo, agora oferecem o vídeo de uma menina de 15 anos falando “que todos os dias morrem crianças” (essa menina, por fim, saiu no corredor humanitário dos russos a despeito do discurso radical que proferiu em vídeo, possivelmente “incentivada”). A BBC admitiu a Peter Hitchens a utilização de “material de propaganda” sem verificação. O “Observatório Sírio de Direitos Humanos” (SOHR) continua sendo uma fonte citada sempre, mesmo que já tenha sido exposto até na grande mídia: é uma organização de um homem só com uma televisão e um celular na Inglaterra, ligados com os rebeldes, que não vai a Síria a mais de 15 anos, que começou fundamentalmente recebendo vídeos amadores em que ele conta o número de vezes que vê o corpo – isto é, se ele recebe cinco vídeos de um mesmo cadáver em ângulos diferentes, esse cadáver vira cinco. Não que o SOHR não fosse uma boa fonte na medida em que servia de porta-voz dos rebeldes. Nesse cenário, os chamados “Capacetes Brancos” (White Helmets) fazem lobby por uma intervenção internacional. Criação publicitária para apresentar uma “defesa civil” coerente com as acusações contra Assad e com o intervencionismo, o grupo não só cria peças de propaganda como tem um histórico de envolvimento com os grupos armados, especialmente com aqueles vinculados à Al-Qaeda. Têm uma agência publicitária, são financiados pelo Ocidente, estão envolvidos no escândalo de desvio de caridade britânica e têm membros participantes em atrocidades gravados em vídeo. “Na Síria eles sabem como intervir, eles sabem como manipular a mídia. Nós temos os capacetes brancos: um completo constructo de propaganda – eles sabem como intervir no discurso público diariamente, na política diariamente”, disse o famoso jornalista investigativo John Pilger (escritor prolífico, mas autor de diversos documentários, incluindo temas como a Guerra do Vietnã, a revolução na Nicarágua e o intervencionismo norte-americano na América Latina). Tudo que seja um pouco diferente ou até mesmo próximo de Assad (como a associação russa para a conciliação que atua em campo na Síria) é automaticamente acusado de “parcialidade”, mas do outro lado tudo é tolerável, ninguém se importa com vínculos com rebeldes, com Arábia Saudita, com Turquia ou o que for. Como disse, não é como se não houvessem fotógrafos reais em campo, a exemplo de um que vem alimentando a France Press. A desconfiança se constrói na medida em que o tal jornalista se casa com a narrativa que nós já conhecemos. É legítimo, inclusive, que ele apoie os rebeldes e ainda assim trabalhe como fotógrafo, porém nós temos que ter isso claro. Ele vive com capacetes brancos e faz uma narrativa precisa dos acontecimentos – tudo isso com foto dos heróis de capacete com uma criança no colo, enquanto ele transita com tranquilidade ao lado dos rebeldes. O que é quase uma tortura para nós, críticos, é que já são anos de de desgaste desse discurso, nós já conhecemos as figurinhas como o Observatório Sírio de Direitos Humanos, e justo quando achamos que não vão apelar mais para mentiras e exageros, eles atacam de novo e puxam os velhos discursos de volta.

Os rebeldes Em Ghouta, no ano de 2015, civis de religião alawita estavam enjaulados nas ruas para servir como escudos humanos. O grupo fez isso sem vergonha e com orgulho, não se importando com aparências humanitárias. Boa parte das vítimas¹ foram sequestradas pelo grupo e a mídia da oposição compartilhou os vídeos em forma de ameaça e triunfo. O sequestro é uma prática comum desses grupos desde o início do conflito e que motivou a adesão de vilarejos habitados por minorias religiosas a uma rede de milícias ligadas ao governo de Bashar al-Assad. O grupo Jaish al-Islam admitiu usar armas químicas contra bairros curdos em Aleppo, enquanto contas de apoiadores do grupo faziam piadas mórbidas nas redes sociais. Esses ataques contra comunidades específicas não são impressionantes quando sabemos que o líder do Jaish al-Islam, Zahran Aloush, fez declarações defendendo a limpeza étnica de minorias religiosas. Aloush também foi um líder unificado dos rebeldes em Ghouta. O grupo realiza execuções espetaculares, inclusive já fizeram vídeos no estilo Estado Islâmico. Apesar da fragilidade apresentada nas notícias, eles não deixaram de demonstrar força em uma parada militar com tanques de guerra e armas de artilharia. A aparição dssas armas de artilharia foi o que provocou a retomada do conflito: bombardearam o distrito cristão da cidade velha, Bab Touma. Nove civis morreram em outro ataque (incluindo uma criança de três anos). Falando em execuções, o segundo maior grupo em Ghouta Oriental é o Faylaq al-Rahman, que é aliado com o Hayat Tahir al-Sham – o nome mais recente da Al-Qaeda na Síria (ficou famoso no passado como Jabhat al-Nusra, Frente Nusra). Dentro dessa aliança e na zona estão também os grupos Anhar al-Sham e o Nour al-Din al-Zenki. Alguém se lembra do al-Zenki? Esse recebia armas (mísseis TOW) diretamente dos Estados Unidos e causou grande constrangimento a seus patrocinadores quando lançou o vídeo de seus militantes animados decapitando um menino de 13 anos assustado, a golpes de faca mal-afiada – o menino era um civil palestino refugiado. Ainda que seja plausível argumentar que o Zinki não tem originalmente raízes em Ghouta (era mais forte em Aleppo), o fato é que este grupo e o Anhar al-Sham se uniram em 2018 sob o mesmo nome: Frente Revolucionária Síria. O grupo Jaish al-Islam boicotou conversações de paz internacionais e multilaterais. Para saber mais sobre os rebeldes em Ghouta, temos um artigo descritivo feito em 2016. A jornalista Vanessa Beeley questionou: “Nós devemos perguntar se essas facções estão esfomeadas, como eles dizem. De onde eles recebem os suprimentos para continuar atingindo civis na cidade de Damasco? De onde recebem as munições e os mísseis? Então eu penso que essa história, em comparação com Srebenica, a comparação com o Dia do Juízo, do Armageddon, a eventos apocalipticos, é só outra maneira da mídia ocidental clamar por guerra, pela escalada do conflito, pela proteção dos seus recursos em campo, o que inclui os Capacetes Brancos, que nós sabemos que são afiliados a al-Qaeda e são financiados, primariamente, pelo escritório de relações exteriores da Grã Bretanha.”

Civis impedidos de sair? Militantes do Jaysh al-Islam dispersaram com tiros mais de 300 civis que tentaram passar pelo corredor humanitário na região nordeste das proximidades de Duma, para sair de Ghouta Oriental. Usaram até mesmo morteiros. A freira Agnes-Mariam de la Croix descreveu a mesma situação e as dificuldades de voluntários do monastério e do Crescente Vermelho em ajudar na evacuação de civis que ficam sob fogo dos militantes. A agência RT gravou em campo o depoimento de duas crianças. O The Independent, famoso pelo seu trabalho histórico no Oriente Médio, fez uma matéria entrevistando um professor que exemplifica o drama dos que querem fugir de Ghouta mas são impedidos pelos rebeldes. O professor de árabe tem três filhos menores de 15 anos. Com Ghouta Oriental dividida pelos grupos armados de oposição, nem mesmo o trânsito para uma zona de outro grupo é permitida: “Você deveria ficar aqui e apoiar a nossa luta contra o regime, você não deveria sequer mandar sua esposa e seus filhos embora. Se nós mandamos nossas famílias embora, nossa moral vai cair e nós iremos perder.” O grupo também usou prisioneiros e civis para construir posições de fogo no perímetro do corredor humanitário. Ainda que questionem a veracidade dessas alegações, não seria a primeira vez que os grupos armados fazem coisas do tipo, com sua disposição de grupo terrorista. No fim das contas, somente no dia 13 de março civis conseguiram sair pelo corredor humanitário. No dia 4 de março já existia um centro em Al-Dwair, interior de Damasco, para receber refugiados de Ghouta. Muita coisa já está demonstrada pelos últimos sete anos de conflito. As pessoas são recursos importantes para os rebeldes, tanto do ponto de vista econômico como político. O regime por sua vez já demonstrou maior interesse em evacuações do que em massacres – ele não está, por exemplo, tentando fazer limpezas étnicas em zonas disputadas para afirmar a supremacia de um grupo ou tentando arrasar uma região para desabitá-la (como Israel fez no sul do Líbano e na própria Nakba que expulsou cerca de 700 mil palestinos no fim dos anos 50). Eles preferem ficar sob cerco porque sabem que isso gera a pressão internacional. Essa estratégia é muito eficiente quando se têm apoiadores de fora do país. Eles conseguem comer e se comunicar. Mais importante, conseguem manter a causa viva e atender a objetivos políticos. Nada impede que eles liberem os civis e muito menos que façam como já fizeram seus “primos” de Aleppo e Hama: pegar a passagem segura para Idlib. O regime tem como um de seus troféus políticos o fato de ter o maior parte da população em seu território e a maioria dos refugiados internos. Não é só um troféu político, mas um dado que devemos observar sempre que falarmos da guerra na Síria. Vamos recapitular o sentido estratégico dos rebeldes: – Existe interesse em manter as pessoas lá para manter a situação internacional. – Esvaziar a região pode implicar em um massacre para os militantes. – Eles atuam como contras, pouco preocupados com um largo projeto de poder, o apoio popular ou assumir o governo. A “revolução” já não existe há muito tempo. Demonstram falta de interesse em cumprir as resoluções de cessar-fogo, o que não é feito sem um cálculo estratégico. Vão continuar as provocações (como os bombardeios contra Damasco). A morte de pessoas é um preço pequeno a pagar dentro de uma ideologia que enfatiza o martírio religioso. Já faz tempo que estão criando uma situação em que a Al Qaeda na Síria se torna o grupo mais forte da oposição armada. Do lado de fora, vozes que exigem a intervenção norte-americana o fazem por uma consideração pró Israel e anti-iraniana. É uma maneira de pressionar o presidente Trump, como no caso dos mísseis tomahawk disparados contra a Síria. Como em Aleppo e Homs, provavelmente não haverá follow up em Ghouta Oriental. Claro, até agora as reportagens estão mais cuidadosas, apesar de um e outro ter falado em “genocídio”.

Entre cercos e reféns A vitória de Assad em Ghouta vai selar a derrota dos rebeldes e levar a paz para a capital Damasco. Mas a guerra não acabou. Os velhos rebeldes e alguns ex-militantes do ISIS estão agora retomando a bandeira da “Síria Livre”(verde, branca e preta) atuando como mercenários para os turcos no norte do país. Israel continua ocupando Golan com uma postura cada vez mais agressiva. Os Estados Unidos já possuem tropas e aeroportos dentro da Síria, além de fomentar tropas curdas a seu favor. A Arábia Saudita continuará financiando redes de terroristas e a Al-Qaeda segue sendo o grupo mais forte em terra. O verdadeiro cerco não está em Ghouta, mas é um cerco contra toda a Síria, que contempla ataques, sanções e bloqueios contra aquele país. A barreira das mentiras e da desinformação também é uma cortina de ferro contra um país assolado por terroristas e pela destruição. Não existe “projeto revolucionário” ali, o único projeto fora da Síria secular (governada por um Assad que já cedeu muito em seus poderes) é uma não-Síria dividida e rifada entre terroristas e estrangeiros. O governo sírio deveria abrir mão de seus direitos soberanos e abrigar inimigos externos, isto é, grupos mercenários pagos e até preenchidos por sauditas? (Homens condenados à morte na Arábia Saudita, inclusive por estupros, tiveram penas comutadas para lutar na Síria.) A história de Ghouta vai acabar em breve, talvez dentro de poucas horas (no momento em que encerro este texto). Aleppo voltou para a vida normal, há coexistência pacífica e pluralista entre as pessoas sob um Estado secular. Eles não vão observar nem verificar nada em Aleppo porque criaram uma torrente de mentiras fabricadas por associados de terroristas. Ghouta também voltará a ter uma vida normal e, mesmo que diversos habitantes possam apoiar os terroristas, muitos outros aguardam ansiosos o exército sírio – os dois tipos voltarão às suas vidas comuns. Não vamos aceitar a imposição de narrativas toscas por “profissionais da informação” e arranjos enganosos de autoridade. Aqui o autor assume a responsabilidade dos questionamentos. Não escrevo nos tons de uma pseudo “verdade oficial”. Nós sabemos que os terroristas do Jaysh al-Islam controlam o bolsão. Nós sabemos que esses terroristas impõem a Sharia numa parte da Síria secular através de punições draconianas. Nós sabemos que os rebeldes massacraram civis alawitas e inclusive usaram eles em Ghouta como escudo humano. Nós sabemos que já mentiram antes sobre a Síria – e nós sabemos dos interesses das potências que espalham as mentiras. Assad pode ser autoritário, pode ter usado de violência, mas sua lógica de violência estatal não se aproxima da violência sectária dos terroristas, que na primeira chance vão criar um Estado salafista na Síria, eliminar as outras religiões e quem pense diferente (um pseudo Estado, como já fizeram em várias partes, sendo o caso mais famoso o do “Estado Islâmico” com capital em Raqqa). Isso não é prioridade e nem preocupação para os interesses internacionais que estão tendo sua voz projetada na mídia corporativa. A “preocupação humanitária” é mobilizada como verniz para um projeto intervencionista de desagregação da Síria. Cobertura seletiva não é por acaso, nem por momento. A verdade, além disso, é que a possibilidade de Assad estar exagerando na força enquanto libera a localidade, aterrorizando uma parte do seu povo e aumentando danos colaterais, não é efetivamente pior do que uma intervenção imperialista – situação que diversas vezes causou mais dano e mortes do que aquelas que diziam prevenir (como ocorreu na Líbia – para impedir Kadafi de talvez bombardear uma cidade, bombardearam pelo menos oito). Rania Khalek é um exemplo de jornalista árabe que mudou de posição, denunciou a campanha mentirosa sobre Aleppo e agora denuncia a espetacularização de Ghouta. Khalek não se vendeu, ela só foi atrás de olhar honestamente para o povo sírio e de dar uma boa olhada nos terroristas que o perturbam. Ela entendeu a jogada de países como a Arábia Saudita e qual é o caminho mais sangrento – a “Revolução” é uma enganação. Existe uma diferença entre aceitar que o governo de Assad caia em uma grande ventania revolucionária, mesmo que essa inclua alguns custos materiais, e promover uma guerra fraticida de quase uma década conduzida por grupos paramilitares extremistas, cuja única função é arrastar o conflito no tempo, aumentar a destruição e o derramamento de sangue. responder a poderes tenebrosos como o da Arábia Saudita, atender interesses como os de Israel que querem ali uma zona sem Estado, um espaço caótico demais para ter uma entidade soberana de verdade e com influência regional. Ao mesmo tempo, a participação russa se insere num cenário internacional em que a Rússia não é exatamente o adversário perfeito, mas uma pedra no sapato dos Estados Unidos. Ghouta vem sendo especialmente explorada para atender uma campanha de desmoralização dos russos. Não se dá espaço na mídia para os esforços russos pela paz e pela conciliações. A exemplo recente, é notável como os ingleses mantém uma postura vacilante (tanto é que a falta de apoio por uma intervenção no parlamento sabotou as intenções intervencionistas dos Estados Unidos). Por isso, é notável que semana passada o embaixador russo Aleksandr Yakovenko tenha pedido a colaboração da Inglaterra no sentido deste país servir como um intermediário ou um sinalizador para os grupos armados alojados em Ghouta. Até o conselheiro de Obama para assuntos de Oriente Médio reconhece: “encorajar os rebeldes a acreditar que poderiam derrubar Assad prolongou a guerra”. Mais do que isso, ele reconhece que os russos não “controlam” a Síria ao mesmo tempo que tem uma posição mais influente ali do que os norte-americanos, e aponta a questão central da ansiedade israelense frente a uma vitória de Assad. Sobre a indústria de sentimentos e de manipulação da opinião pública, devemos manter um pé atrás com seriedade. Um dia eu vou encontrar um autor francês de estudos em comunicação para o termo certo para isso (ou quem sabe um alemão com o termo perfeito), mas por enquanto podemos dizer: você é observante-participante de uma guerra informacional, ideológica e psicológica. Na época das redes sociais você não deixa de ser um tipo especial de protagonista, mesmo que você não controle as cordas como os senhores do dinheiro e do canal. Não obstante o poder dos poderosos, você ainda pode recusar o veneno que o dragão oferece, você ainda pode desvelar a guerra ideológica, mais do que isso: se eles querem te dominar dentro da sua própria mente, personalidade, comportamento, é com ela que você pode responder. A simples atitude de desconfiança já levanta um escudo. É acima de tudo curioso ver a esquerda aderindo a essas campanhas midiáticas. Muitos dos que se lamentaram o falecimento de Moniz Bandeira ignoram o trabalho desse pesquisador e pensador que investigou largamente os acontecimentos e os interesses do conflito na Síria (vide suas obras “Segunda Guerra Fria” e “Desordem Mundial”) – tudo isso recorrendo às “notícias oficiais” e aos documentos publicados. Se o leitor casual não pode, não tem tempo de ler, alguém vai ter que ler: militantes, jornalistas, precisam de tempo para estudar essas obras e acompanhar, como tarefa profissional ao invés de posar de revolucionário ou jornalista arrojado. O neoconservador Eliot Higgins, que se estiliza como um especialista em Síria e apoiador de longa data dos rebeldes, declarou em tom condenatório que questionamentos como os nossos são “perigosos.” Se é o caso, devemos viver perigosamente.

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