Desdobramentos do Golpe na Bolívia: perseguições políticas, violência e o decreto "Mordaça"
- NOVACULTURA.info
- 18 de mai. de 2020
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Atualizado: 21 de mai. de 2024

Desde o golpe de Estado perpetrado na Bolívia com o apoio do imperialismo ianque em novembro de 2019, segue continuada a escalada da fascistização no país. Se o processo do golpe esteve imbicado à violência contra os povos originários, contra os trabalhadores e ao terrorismo contra os dirigentes do MAS, no momento atual onde todos os povos do mundo enfrentam uma pandemia sem igual na história, a violência e a violação de direitos democráticos não diminui, mas se estende sob a patota de enfrentamento da crise sanitária.
Em 25 de março, foi anunciado o Decreto Supremo 4200, elaborado pelos ministros governamentais e firmado pela presidenta “transitória” golpista Jeanine Añez, que estabeleceu diretrizes para fazer frente no combate à COVID-19. Entre as medidas estabelecidas pelo Decreto estão a quarentena e alguns paliativos sociais, como a redução das tarifas dos serviços básicos e subsídios alimentícios. Entretanto, o Artigo 13 do Decreto, fugindo do teor do documento, em seu paragrafo II dispõe sobre uma medida relacionada ao controle de informações e estabelece que “as pessoas que incitem o não cumprimento do Decreto Supremo, desinformem ou gerem incertezas à população serão sujeitas às denúncias penais por supostos delitos contra a saúde pública”, sem especificar os atos que serão qualificados e enquadrados por este artigo, abrindo assim a possibilidade de processar penalmente trabalhadores da saúde, jornalistas ou líderes políticos que expressem opiniões críticas às políticas do Governo. Então, no dia 8 de abril, a Anistia Internacional enviou um pedido ao governo golpista da Bolívia, para que fosse revogado o artigo 13 do Decreto por este violar o direito à liberdade de expressão.
Em 15 de abril, o ministro de governo Arturo Murillo[1] fez um pronunciamento sobre a prisão e o processamento penal de 67 ativistas políticos acusados de participar de “movimentos de desestabilização, desinformação e de guerra virtual”, identificados através das “cyber-patrulhas” da Polícia do estado, sendo 37 destes já julgados e sentenciados à condenação através de processos abreviados. Não houve muita transparência sobre estas prisões e condenações. Por isso, no dia 17 de abril, a Anistia Internacional expressou sua preocupação diante da declaração pública do ministro, solicitando explicações do governo sobre os processos e se estes estariam baseados no Art. 13 do Decreto 4200, acrescentando também que, anteriormente ao Decreto, já existiam ameaças emitidas por autoridades do governo contra líderes políticos, jornalistas, defensores dos direitos humanos e trabalhadores da saúde, acusando-os de desinformação e sedição por denunciarem e criticarem medidas antidemocráticas do governo e a qualidade das políticas públicas adotadas.
Tendo em vista as denúncias e os pedidos de explicações de órgãos internacionais sobre o Art.13 do Decreto, recentemente, no dia 10 de maio – dia do jornalista na Bolívia –, parabenizando a todos os jornalistas, a presidenta golpista Añez anunciou que no dia 7 de maio foi promulgado o Decreto 4231, que modifica o texto do parágrafo II do Art. 13, com a intenção de especificar o que antes parecia genérico no artigo. Desta forma, acrescenta que “as pessoas que incitem o não cumprimento do Decreto Supremo ou difundam informações de qualquer índole, seja de forma escrita, impressa, artística ou por qualquer outro procedimento que coloquem em risco ou afetem a saúde pública, gerando incertezas à população, serão passíveis às denúncias pela comissão de delitos tipificados no Código Penal”. Essa mudança não altera em nada o teor do artigo, apenas escancara o que estava implícito no texto anterior, legitimando assim as perseguições políticas, prisões e as violações aos direitos democráticos do povo boliviano, uma espécie de AI-5 que sujeita à censura governamental qualquer manifestação política contra as medidas do governo, fato que já vem ocorrendo com as redes de televisão bolivianas desde o golpe. Na ocasião do golpe, vários jornalistas e trabalhadores deste ramo foram ameaçados por milícias e pela oposição golpista. Atualmente, muitos trabalhadores progressistas e contrários aos golpistas bolivianos dizem se informar da situação política, da violência e das perseguições na Bolívia, a partir de periódicos, sites e jornalistas argentinos.
A Associação de Periodistas da Bolívia, a Associação Nacional de Imprensa e outros órgãos da categoria pronunciaram seu rechaço ao Decreto, posto que este “estabelece uma severa restrição inconstitucional ao penalizar o direito humano e fundamental à liberdade de expressão” e demonstraram toda preocupação pelo conteúdo do Decreto 4231, que amplia as restrições contidas no Decreto anterior. O Comitê Executivo da Confederação Sindical de Trabalhadores da Imprensa da Bolívia exigiu na manhã do dia de hoje, 13 de maio, que o governo suspenda esse novo Decreto por ele passar por cima da Constituição Política do Estado.
O Governo tenta justificar o Decreto, além de outros ataques aos direitos democráticos e a Constituição da Bolívia, afirmando que a pandemia vem sendo politizada pelos opositores e demais críticos do governo golpista; que essas “minorias”, segundo o governo, buscam a desestabilização das instituições políticas do país e para isso fazem uso do momento de crise sanitária. Isso tudo sem levar em conta a enorme parcela da população que segue desassistida pelo Estado durante a pandemia e que, além disso, sofrem pelas perseguições e pela violência do braço armado reacionário do Estado. Desde o processo do golpe, as populações indígenas Quéchuas e Aymaras são alvos constantes de racismo, sendo chamados de “selvagens” pela presidenta golpista Añez e de “lobos em pele de cordeiro” pelo atual ministro fascista Murillo, que acusam os povos dessas etnias de formarem falsos movimentos sociais. No dia 1 de maio, passou a circular na internet um vídeo feito no dia 17 de abril, durante a detenção, baseada no decreto 4200, de pessoas acusadas de quebrar a quarentena em Senkata, El Alto – região com um grande número de moradores das etnias indígenas acima citadas –, onde uma mulher sofreu abusos sexuais por parte de policiais que foram registrados por filmagens e nenhuma medida foi tomada por parte do governo.
Uma série de protestos vêm acontecendo no país, principalmente nas cidades de Santa Cruz e Cochabamba, palco das ações paramilitares impulsionadas pelos comitês cívicos locais durante o golpe. Dias atrás, em Senkata, na cidade de El Alto, foram registrados bloqueios na ponte Vela e o denominado “petardazo” – queimas de fogos de artifícios e panelaços –, exigindo que aconteçam as novas eleições. Da mesma forma, foram registrados bloqueios na região de Ivirgarzama, em Cochabamba, onde os moradores protestavam exigindo doação de combustíveis. Em K’ara K’ara, zona sul de Cochabamba, desde segunda-feira, 11 de maio, há um bloqueio de pedras e paus feito por parte dos manifestantes, onde cerca de 200 pessoas protestam contra a corrupção das empresas estatais, contra o nepotismo no governo e a incompetência de lidar com a situação pandêmica, além de pedirem a renúncia imediata da golpista Añez e que novas eleições sejam marcadas e ocorram prontamente. Eles também exigem o abastecimento de água, denunciando que na região falta água até para lavar as mãos em tempos de pandemia. Houve, também, uma brutal repressão contra os manifestantes por parte da polícia, culminando com a detenção de alguns. Os governantes golpistas ameaçam os manifestantes por romperem a quarentena e prometem submetê-los aos processos penais que acharem cabíveis; além disso, acusam os dirigentes do MAS de serem os artífices das movimentações que visam polarizar o país e de politizarem o vírus.
Em 12 de maio, o ministro Murillo fez um pronunciamento dizendo que enviou uma carta a Evo Morales e a Luis Arce – candidato à presidência pelo MAS na eleição a acontecer – onde pede para que ambos deixem de incitar a violência, a divisão e o caos no país, acusando-os de estarem sedentos pela retomada do poder e para defender o narcotráfico. Vários dirigentes do MAS se posicionaram contra as acusações de Murillo, apontando que esses ataques ao MAS buscam encobrir a inanição do governo golpista diante da crise sanitária, posto que este não tem conseguido responder às demandas e às queixas da população. De acordo com Betty Yañíquez, deputada do MAS, “a corrupção no ministério de defesa e a repressão brutal em Cochabamba escancaram a violação dos direitos humanos dia a dia, o mal-estar das Forças Armadas e da Polícia e a falta de capacidade de enfrentar essa pandemia”, sendo esses alguns dos problemas que o governo golpista vem tentando ocultar.
Outros protestos aconteceram por parte da pequena-burguesia. Dirigentes da Confederação da Micro e Pequena Empresa da Bolívia saíram em manifestação no dia 5 de maio em El Alto, pedindo a destituição do diretor da Autoridade de Supervisão do Sistema Financeiro (ASFI), Gonzalo Romano, acusando-o de ser incapaz e de não conhecer as normas legais. Isso ocorreu após o comunicado emitido pelo órgão governamental, que diz que “as entidades de intermediação financeira ficam autorizadas a realizar a cobrança automática das dívidas correspondentes ao pagamento das amortizações de crédito de capital e interesse pelos meses de março, abril e maio”, instruindo os devedores a realizarem o pagamento das dívidas com os bancos a partir de 1 de junho, baseado no Decreto Supremo 4206; entretanto, segundo a lei, o prazo para o pagamento é de seis meses. Os dirigentes se posicionaram contra a medida afirmando que não pagarão nenhuma dívida aos bancos durante a quarentena, pedindo a revogação da mesma e prometendo novas manifestações caso a demanda não seja acatada. Recentemente, um processo foi aberto contra Gonzalo Romano para investigar os possíveis delitos contra a Constituição.
Ocorreu, também, um motim em uma penitenciária em Santa Cruz após a morte de um dos detentos por conta da COVID-19. As reinvindicações se tratavam da necessidade de atenção médica, posto que denunciaram serem eles próprios os responsáveis por cuidar das questões de saúde no presídio, além de não estarem recebendo medicamentos. Outra reinvindicação era uma auditoria judicial, um pedido que dizem fazer há anos, pois existem companheiros que já cumpriram suas sentenças e seguem encarcerados.
Desde o golpe, o caráter semicolonial na Bolívia vem se aprofundando, como nota-se no aumento da grilagem de terra e das queimadas criminosas; entretanto, um dos maiores passos para esse aprofundamento tem-se dado a partir do dia 1 de abril, por meio de um projeto de lei encabeçado por Añez, que solicitou ao Fundo Monetário Internacional (FMI) um empréstimo no valor de 327 milhões de dólares, solicitação aprovada pela Diretoria Executiva do FMI no dia 17 de abril. Como é sabido, estes empréstimos representam um grande passo ao endividamento das colônias e semicolônias, um artífice do imperialismo para subjugar as nações subdesenvolvidas aos seus interesses.
A demagogia dos golpistas que se colocam hoje como “combatentes da violência e defensores da vida” é desmentida ao analisarmos que os mesmos utilizaram, no processo do golpe, e utilizam nos dias de hoje a violência contra as classes trabalhadoras, os povos originários e todos aqueles que se coloquem contra as políticas antipovo e as violações dos direitos democráticos, demonstrando, assim, sua verdadeira posição de classe. Seguiremos denunciando o papel das classes reacionárias e do imperialismo ianque no ataque à vida das classes trabalhadoras de nossa América e dos povos explorados de todo o mundo.
NOTAS [1] Empresário e político ligado à intervenção militar contra os moradores de Senkata (La Paz) e Sacaba (Cochabamba) em 2019, denunciada pela Organização de Direitos Humanos, onde foram cometidos diversos delitos que culminaram no assassinato de mais de 30 pessoas; descendente de croatas fugidos de seu país após a Segunda Guerra Mundial, criadores de esquadrões da morte dirigidos pelo alemão Klaus Barbie, que se estabeleceram na Bolívia acolhidos pela ditadura militar da época.
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