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Entrevista com camponeses do Sul de Minas Gerais


No início do mês de março, um grupo de colaboradores do portal NOVACULTURA.info teve a oportunidade de se deslocar para o sul do estado de Minas Gerais para conhecer melhor a luta dos camponeses da região contra o latifúndio semifeudal e o patronato rural, pela conquista da terra e a reforma agrária. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), cuja presença na região já ultrapassa a marca de cerca de vinte anos, acumulou uma grande experiência na organização local dos camponeses e assalariados rurais. Após vinte anos de luta, o MST ainda segue organizando mais de quinhentas famílias de posseiros que ainda lutam pela posse da terra na sesmaria de mais de quatro mil hectares pertencente à falida Usina Ariadnópolis. No decorrer da luta, os camponeses foram despejados dezenas de vezes, com alguns dos golpes que certas vezes quase resultaram no fim do movimento camponês no sul de MG. Apesar disto, os lavradores já obtiveram formidáveis conquistas. Aproximadamente duzentas famílias camponesas receberam a posse da terra, tendo sido assentadas nos Assentamentos 1º do Sul e Nova Conquista, na zona rural do município de Campo do Meio, e no Assentamento Santo Dias, localizado na zona rural do município de Guapé. Os avanços dos camponeses na luta pela produção são notáveis. As quinhentas famílias posseiras nas terras de Ariadnópolis já atingem a cifra de produção anual de mais de cem mil sacas de milho, dezenas de milhares de sacas de feijão e arroz, milhares de litros de leite, etc. Apenas no Assentamento 1º do Sul, a atual produção de café atinge a marca anual de quatro mil sacas. Para nos inteirarmos melhor sobre a situação da região e a luta do campesinato local, entrevistamos o companheiro Sebastião Marques e o casal de camponeses Zé Carlos e Iraci. Sebastião Marques, conhecido como Tião, desde sua juventude se engajou na luta dos camponeses e assalariados rurais, tendo participado em diversos processos de lutas de organização de vaqueiros de fazendas de gado do sul de MG, como sindicalista rural. Tendo obtido ao longo de sua vida uma larga experiência também na luta dos assalariados rurais da colheita do café contra o trabalho semi-escravo e por melhores salários, o companheiro Sebastião Marques se apresenta como uma pessoa fundamental para explicar para os leitores da página NOVACULTURA.info um panorama da luta camponesa no sul de MG. O casal Zé Carlos e Iraci, ambos vindos de uma vida de privações e sofrimentos nas grandes cidades brasileiras como semi-proletários, hoje desfrutam das conquistas dadas pela reforma agrária, reflexo direto da luta da classe operária e dos camponeses pobres pelas transformações anti-imperialistas e antifeudais em nossa pátria.

NOVACULTURA.info: Gostaríamos que o companheiro comentasse melhor sobre a questão do histórico do conflito agrário na região, como se deu a luta pela terra e a dinâmica em torno do desenvolvimento deste processo.

Sebastião Marques: Nossa luta aqui na região se iniciou na década de 1990, a partir do ano de 1994. Naquela época, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, o país padecia de uma crise econômica muito grave. O país enfrentava uma situação muito difícil, com níveis elevados de desemprego. Na região, havia muitos trabalhadores que trabalhavam sob condições de escravidão. Então, com a crise, nosso sindicato realizava várias atividades de combate ao trabalho escravo na região, dado que havia muitas fazendas que empregavam a prática de escravizar as pessoas na colheita do café. Foi a partir daí que, em 1996, o MST veio para cá e começou a organizar o povo na região para levar a cabo ocupações de terras. Todavia, a luta contra o trabalho escravo na região começou mais pelo início dos anos 1990. Foi basicamente isso: a luta pela terra se iniciou com a luta pelo combate ao trabalho escravo na região.

NOVACULTURA.info: Poderia comentar mais sobre a questão da escolha da região, sobre quais foram as dificuldades enfrentadas no início? Como se deu o trabalho entre a população local? Por que a escolha do município de Campo do Meio como ponto de partida para o início das lutas?

Sebastião Marques: Certo. Naquela época, também estava havendo muitas falências entre as usinas de cana de açúcar, assim como diversas fazendas que estavam também abrindo falência por conta da crise. Então, haviam muitas terras improdutivas, paradas, e a fazenda da Usina Ariadnópolis possuía uma dívida muito grande com o banco, estando parada há mais de dez anos. Quando a Usina Ariadnópolis faliu, fizemos um trabalho de base entre os trabalhadores para que eles lutassem por seus direitos, pois haviam muitos cortadores de cana que estavam há mais de um ano sem receber seus salários. Propusemos aos trabalhadores que aceitassem as terras das usina em troca das dívidas trabalhistas da usina. Apesar de os mesmos não haverem aceitado, indicaram para nós esta fazenda – sobre a qual se encontra hoje o Assentamento 1º do Sul – que estava há mais de dez anos parada. Era uma fazenda muito própria para ser disponibilizada para a reforma agrária e para ser ocupada. Foi a partir daí que tivemos conhecimento desta área, e articulamos com o povo da região – que também, no geral, era explorado pelo trabalho escravo – para ocupar esta fazenda na data de 18 de novembro de 1996.

NOVACULTURA.info: (interrompendo) Foi a primeira ocupação, no caso?

Sebastião Marques: Sim, a primeira ocupação foi nesta fazenda, pois realmente fazia dez anos que a mesma estava improdutiva. Nossa luta então continuou, e em março de 1998 ocupamos as terras da Usina Ariadnópolis. Em 2004, fizemos uma ocupação de terras em outra usina localizada a cem quilômetros daqui, no município de Guapé, onde hoje está localizada o Assentamento Santo Dias, com 49 famílias camponesas assentadas. A partir daí, concluídas as ocupações, passamos a organizar as famílias em torno da luta pela produção. Inclusive, o Zé Carlos veio de Guapé para Campo do Meio para participar das primeiras ocupações. A Iraci veio de Campinas, em São Paulo, ficando primeiramente no acampamento, e no acampamento conheceu Zé Carlos, vindo então para o assentamento. [...] Seria bom que ela falasse um pouco a vinda dela para cá, a trajetória dela, não?

Iraci: A primeira ocupação da qual participei foi em São Paulo (mostra para nós fotos e panfletos da época da qual se engajou no movimento camponês). [...] Olha aí as fotos dos barracos. Foi a primeira ocupação que fizemos. De lá para cá, mapeava todas as ocupações pela qual passava, desde a data da entrada até a saída, até chegar a esta casa onde agora estou. Todo lugar entravamos e saíamos, entravamos e saíamos. Quando cheguei na ocupação da usina, mapeei também. Quando saí de lá do acampamento, fui morar com Zé Carlos aqui no 1º do Sul. Porém, antes de participar de ocupações de terras, eu morava no Paraná, e trabalhava como cortadora de cana. Vocês devem saber que o trabalho de cortar cana é algo difícil, não? Ainda mais para mulher. Quando saí de lá, fui primeiro para o município de Hortolândia, no interior de São Paulo, onde conheci o MST e a turma de Campinas que fazia ocupações de terras. Foi quando comecei a participar. De lá para cá, só venho acompanhando o MST. (mostrando as fotos) Aqui foi uma caminhada que fizemos para Brasília, tenho até hoje as fotos. Fomos de Ribeirão Preto – SP para Brasília. [...] Você não tem as fotos da época não, Tião?

Sebastião Marques: Não tenho.

Iraci: Eu guardo é tudo, Tião. (risadas) Até o jornalzinho.

NOVACULTURA.info: Podemos fotografar os materiais?

Iraci: Podem sim. Essa aí foi uma caminhada que fizemos. [...] Você não estava lá, Tião, quando estávamos nesta caminhada em que saímos de São Paulo? Foram vários dias a pé. Está marcado aí na folhinha quando foi que fizemos.

Sebastião Marques: Acho que é de 2005 isso aqui.

Iraci: Foi uma caminhada bem longa. Todo mundo cansou nisso aí.

NOVACULTURA.info: (dirigindo-se a Zé Carlos) Zé Carlos, você não teria nada a acrescentar? Algo a mencionar?

Zé Carlos: Ela praticamente já falou tudo, não? Eu vim foi de Guapé para cá. Antes de vir para cá, morei em Campinas também. Morava na Vila Formosa. Trabalhava na UNICAMP, como ajudante de legista. Sabe que a vida era meio corrida, né? Minha mãe morava aqui, eu morava lá. Passava muita tempo sem ver a velha. Então, resolvi vir aqui passear para visita-la. Quando cheguei em Guapé, me falaram que meu irmão estava aqui neste acampamento. Haviam ocupado essas terras recentemente, e naquela época, como não tinha muito costume de lidar com movimentos, até xinguei meu irmão. (risadas) Falei para minha mãe: “Não é possível de meu irmão ser um sem vergonha que rouba terra dos outros”. Afinal, não sabia como era o procedimento, né? Porém, minha mãe falou: “Ah, mas você vai lá visita-lo, não?” Aí eu fui visita-lo. Cheguei aqui, e acabou que se o que meu irmão fizesse realmente fosse roubo, eu teria virado ladrão (risadas). Pois cheguei aqui, gostei, e não voltei para Campinas. (risadas) Graças a Deus, estou aqui até hoje. Foi mais ou menos isso.

Sebastião Marques: É bom notar que houveram mudanças na vida de antes comparada com a de hoje, não?

NOVACULTURA.info: Poderiam falar então como era a vida de vocês antes e como ela está agora, após passarem pela ocupação e haverem sido assentados, tendo recebido um pedaço de terra para cultivar?

Sebastião Marques: A Iraci poderia falar um pouco.

Iraci: A diferença é muita. Antes, levantava às três horas da manhã para trabalhar, tinha duas filhas pequenas. A prefeitura nos pagava, pois eu saía às três, mas a creche abria apenas às sete da manhã.

NOVACULTURA.info: (interrompendo) Isso em Campinas?

Iraci: Não, isso foi no Paraná. Antes de eu entrar para os ‘sem terras’. A vida foi bem pesada. Após entrar para o MST, um ajudava o outro, entendeu? A turma de Campinas [...] até hoje somos bem unidos. Apesar de estarmos todos separados, quando nos encontramos é aquela coisa. Nos abraçamos e tudo mais. Então, como tinha duas filhas, ainda que houvesse um monte de gente, mas sem filho, eles construíam o barraco primeiro de quem tinha filho, ainda que ficassem morando nesse mesmo barraco. Cada um fazia o barraco de quem tinha criança. Então, ficavam lá até conseguirem construir o próprio barraco. Haviam três pessoas que sempre me ajudavam [...] o Otelino, seu Marcos, o Zé, eles sempre faziam o meu barraco primeiro para depois fazer o deles. Ainda assim, eu sempre os ajudava com alguma coisa, cavando buracos, apanhando bambu, essas coisas. Porém, construíam o meu primeiro. Era tudo assim. Construíam primeiro os barracos das mulheres que tinham filhos, para depois construir os barracos deles. Era sempre assim. Sempre quando éramos despejados, saíamos, nos ajudávamos, cada um apoiava o outro.

Zé Carlos: Mas eles querem é saber sobre a sua vida hoje. (risadas)

Iraci: Ah, a de hoje tá melhor. (risadas) Depois que eu vim com aquele aqui (referindo-se a Zé Carlos), nós plantamos café, mas tivemos que trabalhar também para outras pessoas para conseguirmos plantar mais café, para comprarmos as mudas. Então, começamos a plantar, a colher bem, aí conseguimos comprar carro, outras coisas para a casa. Nossa vida hoje melhorou bastante.

NOVACULTURA.info: Vocês trabalhavam, no caso, nas terras de outros camponeses daqui?

Iraci: Logo quando cheguei aqui, eu e eles comprávamos mais mudas para plantar café, pois ele tinha pouquinho. Tínhamos que apanhar café nas terras dos fazendeiros, mas então hoje em dia nós trabalhamos apenas para nós mesmos. Tínhamos que ganhar dinheiro para comprar mais.

NOVACULTURA.info: (interrompendo) Tinham que conseguir dinheiro para comprar a própria terra.

Iraci: Na verdade, o Zé Carlos já tinha sua própria terra aqui no assentamento. Quando vim morar com ele, já fazia nove anos que ele estava aqui. Porém, ele estava sozinho. Como eu também estava sozinha morando lá no acampamento da usina, nós nos encontramos, e com um mês de namoro já fui morar com ele. Fui para aquelas casas dos acampamentos da usina. Saí de Ribeirão Preto e fui direto para as casinhas. Fomos despejados e tivemos de reconstruir as casas em outras terras, e foi aí que o conheci.

Zé Carlos: Ela viu o negão aqui e não resistiu ao charme, né? (todos dão risadas)

Iraci: (ainda rindo) Mas aí hoje nós temos bastante café.

NOVACULTURA.info: A produção de vocês gira basicamente em torno do café então.

Iraci: É.

NOVACULTURA.info: Vocês sabem mais ou menos quantos hectares de café vocês possuem?

Zé Carlos: Eu sei. São nove hectares.

NOVACULTURA.info: Nove hectares de café. Vocês possuem mais hectares para outros cultivos?

Zé Carlos: Sim, temos pasto. Só café e pasto.

Sebastião Marques: Mas eles plantam feijão, plantam milho também.

Zé Carlos: Eu planto feijão, planto milho, planto hortaliças, mas tudo consorciado com o café.

NOVACULTURA.info: Podemos passar para a próxima pergunta, então. Vocês poderiam falar sobre os êxitos na produção, um ponto tão importante para a viabilização da reforma agrária? Poderiam falar sobre as dificuldades atuais, bem como, em termos de proporção da produção, o quanto fica para o consumo próprio das famílias, e o quanto vai para a venda?

Sebastião Marques: Certo. Nosso povo, quando chega numa terra, eles vêm das fazendas, com o costume do assalariamento. Ou seja, eles recebem da fazenda, e no final de semana vão no armazém e deixam tudo lá. Isso quer dizer que, quando passam pela reforma agrária, eles ainda não têm nada, não trazem nada. Então, o início do trabalho de um camponês assentado é muito difícil. É muito difícil, pois as lavouras para darem os frutos demoram um certo tempo. O café leva três anos. Uma vaca, para começar a dar leite, leva de dois anos e meio a três anos. O feijão leva noventa dias, a galinha para ficar no jeitinho de um frango leva de três a quatro meses. Então, imagina só. Imagina uma pessoa, quando chega na terra, ter que criar uma estabilidade nas condições em que viva apenas do trabalho da própria terra. Para criar esta estabilidade em que a família viva apenas da terra, é um mínimo de pelo menos três anos. De dois anos e meio a três anos. Então, até aí, é muito difícil. E a pessoa tem que ir construindo a casa, tem que ter a água encanada, energia elétrica. O início de um assentado, então, é muito difícil. Quando nós ocupamos a terra, o que o movimento mais orienta é que as famílias garantam a sua própria subsistência, para que plantem as hortaliças, criem frango, produzam leite, criem porco, plantem arroz, feijão, milho. Essas coisas básicas que são de uma produção mais rápida. E depois plantam essas culturas de ciclos mais longos. A outra questão é fazer o governo reconhecer o direito das famílias à posse da terra, pois ao chegarmos nas terras o conflito agrário é constante, dado que o dono imediatamente pede pela reintegração de posse, para expulsar o povo. Então aí se coloca a questão de segurar a terra, garantir a terra, contratar advogados e fazer a Justiça reconhecer os direitos das famílias. Tudo isso é o início. Então o início é muito complicado. O conflito do início é muito tenso. Temos de garantir que as crianças estudem, também, pois ao chegarmos aqui o prefeito da cidade não queria que nossas crianças estudassem nas escolas do município. Tivermos de fazer uma pressão muito grande sobre o prefeito. A própria cidade teve uma rejeição muito forte a nós, no início, no sentido de não reconhecer nossos direitos. Quando íamos para a cidade fazer compras, os comerciantes eram relutantes em nos vender até mesmo quando não pagávamos fiado. Mas veja bem, nossa insistência superou isso tudo. Hoje, neste assentamento, com quarenta famílias assentadas. [...]

NOVACULTURA.info: (interrompendo) O Assentamento 1º do Sul, no caso?

Sebastião Marques: Sim, o 1º do Sul. Hoje temos quarenta famílias assentadas, e mais dez filhos de assentados que se casaram e moram aqui. Então, temos cinquenta famílias, ou seja, umas cento e oitenta pessoas, entre crianças e adultos. Além disso, já criamos uma certa estabilidade de maneira que as famílias não precisam mais trabalhar para os outros para se manterem. Os recursos da própria produção já são suficientes para as famílias viverem. Nós temos também aqui uma associação que de início lutou por questões básicas, como água encanada, energia elétrica, reformas de algumas casas, nem todas, claro, mas uma boa parte das famílias receberam um crédito de dez mil e quinhentos reais para reformarem suas casas. A produção de café, de acordo com números do ano passado, já atinge cerca de 4 mil sacas (240 toneladas). Produzimos também leite [...]

NOVACULTURA.info: (interrompendo) A produção apenas do assentamento, no caso?

Sebastião Marques: Isso, só do assentamento 1º do Sul. Plantamos também muitas frutas, como bananas e outros tipos de frutas, além das hortaliças. Então aquela vida do assalariado rural de pegar o salário, deixar no comércio no final do mês e começar o mês sem nada mudou muito. Muitas de nossas famílias, por exemplo, vão no banco e são reconhecidas. Tomam empréstimos, e muitas vezes os próprios bancos oferecem empréstimos. No comércio de Campo do Meio, hoje em dia, temos uma aceitação muito grande, de maneira que vender para os camponeses do MST é prioridade, pois pagamos apenas à vista. É diferente do povo da cidade. Nosso povo não compra fiado, compra apenas à vista. A cidade também come um alimento bom que nosso povo produz. A cidade, por ser muito pequena, não consome a totalidade da nossa produção, de maneira que nossa produção excede em muito as necessidades da cidade. Nossos produtos agrícolas, assim, vão também para outras cidades, como os caminhões que levam nossas sacas de feijão para São Paulo. Nós estamos pensando em, no ano que vem, exportar café para a Venezuela. Estamos fechando um acordo com a Venezuela para que nosso café vá pra lá, para garantir um preço melhor. Então veja bem, avançamos muito em nossas conquistas, em nossa dignidade. Temos várias pessoas aqui que se formaram como técnicos agrícolas. Temos filhos de camponeses acampados e assentados que hoje estudam Direito. Inclusive, a própria filha da Iraci estuda para se formar como técnica agrícola numa universidade de uma cidade próxima daqui. Podemos ver, então, que a situação de hoje está muito melhor do que os momentos pelos quais passamos antes.

NOVACULTURA.info: (perguntando para Zé Carlos) Já que falamos da questão dos assentados, e você já é assentado há algum tempo, poderia falar como foi sua experiência como assentado no início e sobre como foi o progresso desde então? Tião falou muito sobre as dificuldades que um camponês assentado enfrenta ao iniciar a produção, poderia então falar sobre como se deu esse processo com você?

Zé Carlos: Comigo, o início foi difícil pois estávamos acostumados com a vida da cidade, recebendo salário todo mês, e eu tinha um salário até razoável lá. Então, quando vim para cá, sofri bastante no começo. Tínhamos que trabalhar para os fazendeiros para nos sustentarmos. Porém, foi questão de um ano ou dois – na época, morava apenas com minha mãe e meu irmão – para melhorarmos um pouco. No início, plantávamos arroz, feijão, milho, e partir disso nossa vida melhorou muito, até mais do que era na cidade, pois nas cidades comprávamos alimentos com conservantes, contaminados. Hoje em dia, compramos pouca coisa, a maior parte do que consumimos vem tudo daqui mesmo. Então temos um alimento mais saudável, sem aquele monte de química. Se formos comparar com a nossa vida na cidade, tivemos um avanço muito grande.

Iraci: Aqui nós colhemos o café, limpamos, eu mesma torro, e moo aqui mesmo. Produzo queijo e sabão aqui em casa mesmo.

NOVACULTURA.info: Outra pergunta que gostaríamos de fazer é a seguinte: como o movimento popular rural tem enxergado a questão da reforma da previdência? Poderia falar um pouco sobre quais seriam os impactos da reforma da previdência sobre os lavradores? Como o movimento camponês tem procurado lutar para enfrentar este novo ataque feito pelas classes dominantes reacionárias contra o povo trabalhador brasileiro?

Sebastião Marques: Essa questão da previdência é interessante. Interessante notarmos como a classe trabalhadora, na década de 1960, durante a ditadura, fez um grande enfrentamento para garantir os direitos de trabalho, horas de trabalho, horas-extras, direitos trabalhistas, salário digno. Naquela época, então, tivemos nossos direitos reconhecidos. E é interessante essa questão da aposentadoria: lembro-me, quando criança, de ver um senhor que saía pedindo ajuda para um e outro, pois os velhos de famílias muito pobres eram colocados em asilos, e ali a própria sociedade tinha de doar alimentos para mantê-los, pois muitas vezes as famílias não tinham condições de mantê-los em casa. Morria muita gente por falta de remédios, alimentos, etc. Então, surgiu esse direito da aposentadoria, mas de 1970 a 1988 a aposentadoria era de meio salário mínimo. De 1988 para cá, a aposentadoria passou a ser garantida como um salário mínimo completo. Nisso, melhorou demais a vida das pessoas por conta da aposentadoria. Hoje, quando uma pessoa velha vai para o asilo, o asilo só o aceita se o mesmo possuir um cartão de aposentadoria. Se ele não for aposentado, o asilo não tem como recebê-lo. E aquelas campanhas que eram anteriormente realizadas, pelas doações de mantimentos para asilos, antes de 1988, acabaram, pois a aposentadoria garante a subsistência. Aqui mesmo no assentamento, fiz uma pesquisa e concluí que aqui dentro entra vinte e sete mil reais todo mês de pessoas que recebem auxílios e aposentadorias da previdência. Então, imagina só, num assentamento de 50 famílias, possuirmos uma renda de vinte e sete mil reais por mês apenas da previdência. Isso é um complemento muito importante para a vida das famílias. Às vezes, um neto que não consegue se estabilizar na cidade, volta junto para o avô e a avó, e passa a usufruir dessa renda. É um filho que se desemprega na cidade, e volta para o interior para usufruir da renda. Agora, fico imaginando: isto não foi uma ajuda que nos deram. Foi direito conquistado, é lei. Como um Congresso, um governo e um Senado querem mexer nos direitos de quem já não tem nada, nos mais pobres? Então, fico imaginando como um ser humano tem coragem de fazer isso com o outro, para transferir essa renda para pessoas que já estão enriquecendo muito, tirando de quem já não tem nada. O movimento tem alertado a sociedade sobre essa covardia que estão querendo fazer, pois o governo tem feito a propaganda de que a retirada da aposentadoria vai gerar mais dinheiro, vai gerar mais empregos. Como vai gerar empregos e melhorar a nossa situação se tira direitos? Essa reforma vai é empobrecer mais. Não há como melhorar se se retiram direitos, se retiram recursos. Precisamos alertar de imediato a sociedade, o povo das cidades, a classe trabalhadora em geral, do campo e da cidade. Segundo pesquisas já realizadas, há cerca de 5 mil pequenos municípios que dependem destes recursos da aposentadoria que, com a retirada da mesma, irão falir. Não é só o povo que vai se empobrecer, são também várias cidades que irão acabar com o fim da aposentadoria. Desta maneira, esta é uma luta que precisamos enfrentar, e enfrentar com urgência, para garantirmos também o direito da aposentadoria para a juventude, que chegará aí no futuro com um direito seu retirado.

NOVACULTURA.info: (perguntando para Zé Carlos) O companheiro gostaria de acrescentar algo mais sobre isso? Falando da questão da reforma da previdência, gostaríamos de perguntar-lhe: você é aposentado? Irá se aposentar em breve? A reforma da previdência tem lhe trazido medo?

Zé Carlos: Ainda faltam seis anos para eu me aposentar. Isso é uma coisa que causa sim medo na gente, pois trabalhamos e lutamos até agora para chegarmos na hora de nos aposentar e não termos uma aposentadoria? De não termos um direito que é nosso e sofremos para conseguir? Eu mesmo não estou aguentando mais trabalhar, só trabalho porque preciso. Tenho medo disso não só por mim, mas também pelos meus filhos, pois chegará uma hora em que eles também dependerão desta aposentadoria e não terão. Se para nós já será difícil, para eles será muito pior. Então, tenho medo disso sim. Acho que já está mesmo na hora de arregaçarmos as mangas e cairmos pra cima desta governo, não podemos deixar isso barato.

NOVACULTURA.info: Os companheiros poderiam explicar como se dá o trabalho de educação realizado nos acampamentos e assentamentos? E no que diz respeito à formação político-ideológica?

Sebastião Marques: A questão da educação é prioridade número um para nós, pois a educação que existe nas cidade é uma educação capitalista, individualista e assistencialista. Não é uma educação social. Apenas prepara o cidadão para prestar serviços para o capital, para vender sua força de trabalho para o capital. Não traz desenvolvimento para a própria pessoa, e apenas ajuda quem tem muito dinheiro. Assim, esta educação que existe nas cidades não nos serve. Ela prejudica nossa classe trabalhadora, e o movimento possui sua própria escola, nossos educadores possuem uma pedagogia diferente daquela que é colocada nas cidades e nas universidades, que prepara o cidadão para ser escravo. Nossa escola é uma escola que vem para libertar as pessoas, destas formas de domínio. Nossos educadores são preparados para que ensinem os outros a ler e escrever dentro de sua própria realidade. Por exemplo, ao invés de fazermos uma matemática que, na escola convencional, ensina as crianças a trabalhar num escritório ou num posto de gasolina, nossa ensina quantos sacos de feijão ele tem, quantas galinhas, quantas vacas, ou seja, dentro da realidade em que vive, de uma forma que o liberte e o eduque dentro de sua realidade. É necessário que através da educação demos aos alunos uma formação que os ensine que não é necessário que vendam sua força de trabalho, e de que possam viver do próprio trabalho. Então nossa escola é totalmente diferente. Temos por exemplo a Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, São Paulo. Aqui, nos acampamentos, conseguimos nas escolas a Educação de Jovens e Adultos (EJA), para as pessoas que não conseguirem estudar na juventude, em turmas de 1ª a 4ª série, e de 5ª a 8ª série, na escola próxima à usina. Temos lá quarenta pessoas estudando. E estamos lutando para a construção de uma universidade no acampamento. Estamos reivindicando isto junto ao governo do Estado, para que nenhum filho nosso saia daqui para estudar numa escola do capitalismo, que para nós não nos favorece em nada.

NOVACULTURA.info: (perguntando para Zé Carlos e Iraci) Vocês poderiam comentar sobre como foi a experiência de vocês com essa questão da educação dada pelos acampamentos e assentamentos? Quais são as diferenças que notaram com relação à educação que receberam na cidade?

Iraci: Aqui, com relação à educação, acho que quem mais teve oportunidades foi a Jaque (filha de Iraci). Ela está estudando técnica agrícola em Machado-MG. Pena que hoje ela não pode falar nada, está doente.

Zé Carlos: Acho que a respeito da educação, nem sou a pessoa mais indicada para falar, pois sou analfabeto (risadas), não tive chance de estudar. Mas é claro que o ensinamento do movimento é totalmente diferente daquele das escolas. Não ensinam só a ler e escrever, ensinam a plantar um pé de café, um pé de feijão, milho, como colhê-los, etc. Então não é só aprender a ler. Ensinam como a pessoa viver, viver em sociedade. É muito produtiva a educação que dão aqui no movimento, apesar de eu não ter nenhum estudo, apenas escrevo meu nome.

NOVACULTURA.info: Poderiam falar sobre a formação política?

Sebastião Marques: Essa questão de formar a consciência, de possuir uma forma de entender o mundo em que vive, é importante, pois o sistema que explora a classe trabalhadora, que domina a consciência do povo, o domina desde sua infância. Quando uma pessoa chega e adquire uma terra, não há como progredir se o mesmo não possui uma consciência acerca do que é Movimento Sem Terra, quais seus objetivos. Se não dermos a ele esta visão, para nossa classe trabalhadora, homens, mulheres e crianças, ele se mantém sustentando a classe dominante lá fora. Então, nosso trabalho é mudar a forma de a pessoa ver o mundo em que vive. Temos a tarefa de dar esta consciência para a pessoa. Nos embates que os camponeses fazem para resistir na terra, com a chegada da polícia, com a negociação com os juízes, na luta contra os fazendeiros, já se começa a despertar a consciência de que há um inimigo, de que este mundo que ele vive aqui dentro do movimento é diferente do mundo que ele viveu lá fora. Quando à leitura e os estudos, deve-se estudar os documentos que favoreçam sua consciência. Não é estudar uma Veja, um Jornal Nacional. É ler um jornal redigido pela cooperativa, pelo movimento. Um jornal que venha a melhorar sua consciência, nossos próprios materiais, escritos por nós e nossos parceiros. Com o tempo, a população aprender a viver melhor, e muitos aprendem inclusive a abrir mão dos vícios que possuem na cidade, como o individualismo, o consumismo. Com o despertar da consciência, a população abre mão dos costumes de trazem da cidade. Então, a formação política é muito importante.

NOVACULTURA.info: Como o movimento camponês do sul de MG avalia a maneira como o governo estadual, de Fernando Pimentel, vem tratado a questão agrária? O Governo Pimentel tem sido um fator de entrave ou de melhora das negociações?

Sebastião Marques: O governo do Estado não é um governo parceiro. Simplesmente não é. Não é um governo que reconhece a reforma agrária como prioridade, nada disso. Um governo do Partido dos Trabalhadores, ao chegar no poder, faz mudanças, mas são mudanças assistencialistas, não mudanças revolucionárias que trazem a transformação social e enfrentam a burguesia. São mudanças assistencialistas. Então, este governo de Minas Gerais tem atendido a algumas demandas, porém sob pressão, não de forma espontânea. Tem sido melhor que o governo das direitas, do PSDB, mas não é um governo que traz a transformação social, nada disso. Algumas coisas tem melhorado. Algumas áreas que ocupamos já estão sob negociação para serem desapropriadas. Estamos com projetos de instalação de energia elétrica, alguns outros projetos menores. Porém, não é o governo que queríamos que fosse.

NOVACULTURA.info: O governo do Estado tem favorecido mais os latifundiários, que têm sido os principais inimigos de vocês?

Sebastião Marques: O Partido dos Trabalhadores, até mesmo quando Lula e Dilma eram presidentes, os governos estaduais, e até mesmo as prefeituras do PT, são governos de coalizão. Tentam atender aos dois lados. Apesar de que os golpes que o partido sofreu têm sofrido de alerta. Porém, o poder do PT é muito pequeno diante do poder econômico, diante do Judiciário, dos meios de comunicação, etc. Se formos fazer uma avaliação, se atende mais ao lado econômico, da burguesia, que o lado da classe trabalhadora. Por exemplo, a CEMIG (Companhia Elétrica de Minas Gerais), que possuía um potencial importante, que era do PT, hoje sob pressão já é do PSDB. Várias secretárias que poderiam ser dirigidas pelos pequenos e médios agricultores estão sob o poder da classe econômica. Se formos ver, se atende mais ao lado da burguesia do que o lado da classe trabalhadora.

NOVACULTURA.info: Há algumas semanas, fizemos com o companheiro uma reunião em Campo do Meio. Recebemos a informação de que os militantes do MST consideram que as áreas de acampamentos da usina já estão na condição de pré-assentamentos. Gostaríamos de saber como o movimento tem enxergado a perspectiva de estes acampamentos se tornarem assentamentos, e de os lavradores realmente obterem a propriedade sobre a terra que cultivam?

Sebastião Marques: Eu avalio esta questão como, em parte, positiva, e em parte, negativa. Pois devido ao avanço do capitalismo no mundo, bem como a interferência do capital no Brasil e na própria política de esquerda nos deixa muito preocupados. O Congresso, o Senado e a Presidência serem deles nos preocupa muito. Temer, um golpista, está seguindo as orientações do capital plenamente. Embora as áreas dos acampamentos já sejam pré-assentamentos, a força com a qual hoje se persegue os partidos de esquerda e os movimentos sociais pode atrapalhar nossas conquistas futuras, e até mesmo com as perseguições dentro dos assentamentos. Os projetos, que quase não haviam, já foram todos cortados. As mudanças que estão sendo feitas por Temer, com as MPs, de municipalizar a reforma agrária, tirando do governo federal a responsabilidade de desapropriar as terras e fazer investimentos, deixando-a para os municípios, mesmo sabendo que os municípios não possuem quaisquer recursos para viabilizar estes feitos, levam na prática ao enterro da reforma agrária. Isso irá trazer problemas para os assentamentos e para as áreas de pré-assentamentos, como os acampamentos da usina. Estamos numa etapa de conquistas, é fato. Nossa avaliação, até aqui, é positiva. Porém, estamos muito preocupados com o que poderá vir pela frente, com essas MPs que Temer tem baixado. Só poderemos dar uma resposta mais positiva quando a conjuntura for favorável para a classe trabalhadora. Aí poderemos dar uma resposta melhor. Atualmente, porém, as coisas estão muitos inseguranças diante dos ataques que estão sendo colocados sobre a classe trabalhadora.

NOVACULTURA.info: O companheiro explicou acerca do histórico do conflito agrário de Campo do Meio-MG. Gostaríamos de saber, todavia, sobre como estão os conflitos mais recentes na região e no município. O companheiro poderia explicar sobre como se deram os conflitos mais recentes? Você poderia falar sobre o grande despejo de 2009, que praticamente destruir o movimento camponês local? Como foi o processo de reconstrução e reorganização das famílias após este baque temporário?

Sebastião Marques: O conflito aqui em Campo do Meio foi tenso durante muito tempo, e ainda não acabou, continua tenso, pois as áreas estão decretadas. O governo não tomou posse, não desapropriou as áreas, e o proprietário ainda está na justiça pedindo as áreas de volta. Não sabemos como estão as decisões da justiça, se o governo irá desapropriar as áreas, etc. Então, o conflito ainda continua. Já sofremos vários despejos, e sim, o despejo que mais nos marcou foi o de 2009, quando foram despejados vários acampamentos, várias famílias, foram destruídas muitas casas, muitas lavouras, muitas famílias foram embora. O despejo de 2009, assim, foi muito tenso. Com este despejo de 2009, porém, retornamos com ainda mais força que já tínhamos. Nem mesmo eles imaginavam que iríamos derrota-los depois do despejo que impuseram sobre nós. Voltamos, retomamos todas as áreas que foram despejadas, retomamos áreas que ainda não haviam sido ocupadas, e ocupamos. Ocupamos o parque industrial da usina. Conseguimos o decreto. Construímos a escola. Demos um salto após o despejo de 2009, conseguimos repor o prejuízo que tivemos, e com muita sobra ainda. É isso. Porém, as coisas ainda não estão definidas. O conflito ainda está em aberto. Não sabemos o que seremos daqui pra frente, o que poderá acontecer. Não temos uma leitura do que pode acontecer.

NOVACULTURA.info: (perguntando para Zé Carlos e Iraci) Vocês gostariam de acrescentar mais sobre essa questão dos conflitos mais recentes, do despejo de 2009? Como vocês lidaram com isso, como foi para a família de vocês?

Zé Carlos: Para nós foi constrangedor, pois no despejo de 2009 os policiais atiraram em cachorros, matavam na base das correntadas, passaram tratores em cima de tudo. Um rapaz estava com uma porca à beira de dar cria, e só deu o trator passando por cima dela, com os leitões saindo para fora da porca. Com as lavouras já prestes a serem colhidas, a polícia passou com o trator sobre tudo. Deixaram todos sem moradia. Aqui mesmo na minha casa, acolhemos muitas das famílias. Um velhinho do acampamento veio morar aqui com a gente até retornar para a área novamente. Outras famílias, sem lugar para ficar, ficaram no casarão, nas casas dos vizinhos. Então, foi um baque muito grande para nós, mas é como o Tião falou: conseguimos dar o troco à altura. Conseguimos voltar, e voltar com muito mais força. Até agora, estamos conseguindo vencer.

NOVACULTURA.info: No ano de 2008, um lavrador de um dos acampamentos de Ariadnópolis foi entrevistado, e uma das coisas que ele fala é que, entre a população de Campo do Meio, principalmente na cidade, predominava um sentimento, no geral, anticomunista, avesso ao MST e ao movimento popular rural. Inclusive, como você já havia nos falado, os fazendeiros sempre manipulavam as opiniões dos moradores em benefício próprio, para coloca-los contra o movimento camponês. Como o movimento camponês lidou com tal situação? O que tiveram de fazer para a população no geral ser mais receptiva com vocês?

Sebastião Marques: A Usina Ariadnópolis tapeava os trabalhadores do município com a promessa de gerar empregos. Isso é o que sabiam fazer na cidade: enganar os outros, falando que gerariam empregos. Com o tempo, fomos mostrando para a população de Campo do Meio que este grupo, a Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo – a CAPIA –, proprietária da usina Ariadnópolis, é um grupo profissional em saquear bancos. Ao chegar numa cidade, busca uma usina 100% produtiva para compra-la. Ao adquiri-la, recebe um documento que representa o título de terra de toda a fazenda. Em seguida, subdivide estas imensas terras em vários títulos. Tivemos acesso à documentação da área de mais de 4 mil hectares da usina Ariadnópolis, toda subdividida em glebas de 10, 20 ou 30 hectares. Com o documento de uma gleba de 10 hectares, vão num banco e tiram cem mil reais. Com o mesmo documento, vão noutro banco e tiram mais cem mil. Vão noutro, tiram mais cem, e assim por diante. Ou seja, se aquela gleba de 10 hectares valia cem mil, eles faturaram duzentos mil além do que valia a terra. E este dinheiro é desviado para outras regiões, outros lugares. Eles saqueiam bancos. Onde puderem saquear, eles saqueiam. Para vocês terem uma ideia, o governo quer desapropriar esta área do acampamento de 4 mil hectares por 57 milhões de reais, ainda que a dívida da CAPIA com esta área esteja próxima de 400 milhões de reais. [...]

NOVACULTURA.info: (interrompendo) Se o governo quer desapropriar a área por 57 milhões, com uma dívida de 400 milhões, poderiam desapropriar a terra de graça, apenas para saldar parte da dívida.

Sebastião Marques: Sim. Na verdade, o governo para desapropriar a área não precisa tirar um centavo do bolso sequer, pois a empresa já deve muito para o governo. Então, este grupo chamado Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo, a CAPIA, é um grupo profissional em saquear bancos, roubar bancos de forma legalizada. Após saquearem os bancos, não recolhem FGTS, INSS, e tiram o que tiver na terra, no caso a cana, e produzem álcool e açúcar. Após isto, não adubam mais as terras de cana, e as deixam ao relento. Deixam a usina acabar. Vendem os caminhões, as peças da usina. Quando a mesma abre falência, deixam um testa de ferro na Justiça, protocolando processos para enrolar e manipular a mesma. Buscam apoio entre a bancada ruralista, que possui uma influência muito grande na política. Para vocês terem uma ideia, nosso atual conflito agrário já dura há dezesseis anos, por conta deste testa de ferro que fica manipulando a Justiça. Com estas manobras, a população de Campo do Meio passou a conhecer o que é a CAPIA, o que é esta empresa. Se em nosso país houvesse justiça, esse pessoal todo já era para estar na cadeia há muito tempo. Deveriam estar presos. Então, a população reconheceu isso. Por conta da alimentação barata aqui produzida que chega na cidade, produtos saudáveis, e de nossa produção exceder as necessidades da cidade, a população passou a nos enxergar com bons olhos. Por conta dos assentamentos e dos acampamentos, o comércio da cidade aqueceu muito. Em qualquer lugar que você for do comércio de Campo do Meio e perguntar o que acham dos sem-terras, todos irão falar bem, pois nosso pessoal compra muito e paga à vista. Então, crescemos muito dentro da cidade de Campo do Meio. Temos um sindicato na cidade. Temos professores do movimento que dão aula nas escolas. Eu mesmo sou vereador, na Câmara da cidade. Pode-se dizer que parte da cidade, nos dias de hoje, é nossa.

NOVACULTURA.info: (perguntando para Zé Carlos e Iraci) Vocês gostariam de acrescentar alguma coisa? Notaram alguma mudança com relação ao pensamento que as pessoas da cidade tinham sobre os sem-terras?

Zé Carlos: No começo, o povo nos rejeitava bastante. Parece que tinham até um pouco de medo dos sem-terras. Depois, com o tempo, passaram a se acostumar conosco, com nós levando verduras para a cidade com um projeto que fizemos. Foi a partir daí que passaram a se acostumar mais, a ficarem mais próximos de nós. Saíamos nas ruas distribuindo verduras do assentamento de graça. Muito trabalho de base entre as pessoas da cidade foi feito também. Foram nos reconhecendo, e o povo da cidade hoje em dia é tudo amigo, e são a favor de nós.

Iraci: O povo da cidade acaba ficando cismado com os sem-terras porque não os conhecem. Por exemplo, tenho uma irmã que mora em São Paulo que vivia falando “Como assim, você no meio dos sem-terras?” Porém, pela primeira vez que veio aqui, gostou tanto que dentro de quinze dias voltou, e voltou de novo dentro de outros quinze dias. Tive agora em dezembro em São Paulo com ela, de novo, e agora minha irmã quer acampar na usina.

NOVACULTURA.info: Certo. Queremos fazer duas perguntas dentro de uma pergunta. De que maneira a crise econômica pela qual nosso país vem passando desde o ano de 2015, com o aumento do desemprego, pode ser um momento favorável para o avanço do movimento camponês? A partir disto, qual a perspectiva da integração de mais pessoas na luta pela conquista da terra?

Sebastião Marques: Sabemos pela história do capitalismo que esta crise atual é uma crise que acontece a cada dez anos. É uma crise que o capitalismo promove, para retirar direitos e enriquecer os patrões. É uma crise estrutural. As grandes empresas automobilísticas estão inundadas de carros, não há para onde escoar esta produção do capital. O capitalismo promove a crise para destruir o que eles mesmos produziram, saquear o dinheiro do Estado, com o dinheiro que o povo paga, e para retirar direitos. Pensamos então que a crise irá nos prejudicar, dando a desculpa de que os projetos em assentamentos terão que ser cortados, que a reforma agrária deverá ser municipalizada, que não há mais dinheiro para a desapropriação de terras, Esta crise então nos trará prejuízos muito grandes. É muito visível. Porém, há outra pergunta nisso que vocês colocaram. Direitos estão sendo retirados. Por exemplo, direitos da juventude com a PEC 55, com vários cursos que foram cortados. O salário mínimo não terá mais aumentos reais. Recursos sociais do SUS, com a PEC 55, também serão retirados. Há também a questão da previdência, da perseguição sobre os movimentos. Tudo isso trará revoltas entre a classe trabalhadora, e a partir disso o povo irá descobrir que a saída está na terra. Há outra coisa: num mundo onde as máquinas fazem tudo, não há solução para a questão do emprego fora disso. Por mais que semeiem ilusões nas cabeças das pessoas, os capitalistas não conseguirão manter esta situação por muito tempo. Creio que a partir disto poderemos avançar na questão de ocupação de terras e desapropriação de terras. No futuro, talvez possam aparecer resultados positivos.

NOVACULTURA.info: O movimento camponês possui perspectivas para a atuação no seio do sindicalismo rural? Sabemos que nosso país possui uma realidade em que, infelizmente, a grande massa dos lavradores e trabalhadores rurais não conseguem manter suas condições de existência apenas com a agricultura. Sempre têm que vender o braço como assalariados rurais, ou na construção civil. O movimento possui perspectivas para defender os lavradores para além dos assentamentos e acampamentos, quando se tornam assalariados?

Sebastião Marques: Essa da questão do sindicato, que representa a classe trabalhadora rural e urbana, temos uma avaliação ao mesmo tempo positiva e negativa. Sabemos que há muitos sindicatos que possuem o nome de “sindicato dos trabalhadores”, mas que na verdade defendem os patrões. Temos conhecimento disto. Porém, ainda assim, mesmo com os sindicatos desta maneira, ainda é melhor do que se eles não existissem. Ainda assim, eles ajudam a classe trabalhadora. O Movimento Sem-Terra teve o papel de trabalhar pela mudança do caráter do sindicato. Por exemplo, em Campo do Meio, possuímos o Sindicato da Agricultura Familiar, onde nós mesmos o coordenamos. A política do sindicato que hoje coordenamos é uma política da classe trabalhadora, que mostra as saídas para os pequenos agricultores acampados e assentados no que diz respeito a direitos da previdência, projetos agrícolas, energia elétrica. O projeto de energia elétrica, por exemplo, custará cerca de seis milhões de reais, e é o sindicato quem o está coordenando. Então, o sindicato que realmente está do lado dos trabalhadores possui uma representatividade muito grande. Nossa tarefa no sul de MG consiste também em contribuir com a organização dos assalariados rurais, onde atuamos em conjunto com diversos parceiros nossos da região principalmente na luta para denunciar a prática de trabalho escravo nas fazendas de café, que ainda não acabou. Temos também o compromisso de ajudar os sindicatos na luta por melhores salários para os empregados rurais, principalmente para os que trabalham na colheita do café. Essa é a demanda da região, e também a nível nacional.

NOVACULTURA.info: Quais são as perspectivas de luta do movimento camponês do sul de MG para o ano de 2017?

Sebastião Marques: A primeira tarefa é conquistar a desapropriação, por parte do governo federal, dos 4 mil hectares da Usina Ariadnópolis. É a prioridade número um para nós. Para isto, já estamos preparando nossos acampados e assentados para o enfrentamento até mesmo contra o governo, caso o mesmo não apresente alguma solução. Vizinho aos nossos acampamentos e assentamentos, está um fazendeiro que é o maior plantador de café da América Latina, nosso inimigo número um aqui da região. É ele quem está financiando o advogado que atualmente é testa de ferro da Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo. Estaremos organizando nos próximos dias uma ação contra ele, pelo papel que ele está tendo de atrapalhar a vida das mais de 500 famílias que hoje têm casa, energia elétrica, e uma imensa produção que se situará no ano de 2017 na casa de mais de 100 mil sacas (6 mil toneladas) de milho, com uma grande produção de feijão, leite, etc. Contra o golpe de Estado dado pelo governo Temer contra a presidente Dilma e contra os direitos da classe trabalhadora, organizaremos a partir do início de abril uma grande marcha que sairá daqui até Belo Horizonte. A partir de agosto, o movimento camponês estará organizando a nível nacional outra marcha que sairá de todas as capitais do país rumo a Brasília. 2017, então, será um ano de muita luta e muita mobilização entre a população das cidades, entre os bairros, igrejas, sindicatos, partidos políticos, associações de bairros, etc. É um ano de conversarmos com o povo, ouvirmos o povo e mostrarmos para o povo as saídas para toda essa situação que se apresenta sobre nosso país.

NOVACULTURA.info: As perguntas da entrevista, assim, já foram concluídas. Apenas para finalizarmos, gostaríamos que os companheiros fizessem uma saudação ao portal NOVACULTURA.info e a todos nossos leitores. Gostaríamos também de agradecer pelo tempo disponibilizado por você, companheiro Tião, para essa entrevista, e também a seu Zé Carlos e dona Iraci pela recepção na casa.

Sebastião Marques: Em nome da direção regional do Movimento Sem Terra, dos quarenta coordenadores, e das quinhentas famílias acampadas, gostaríamos de agradecer a vinda de vocês para cá, bem como a preocupação que vocês têm com a transformação da sociedade. Quero dizer para vocês que o MST não vive sozinho, não tem essa força toda caso não tenha os parceiros nas cidades como vocês, que reconhecem nossa luta. Ele não seria nada se não tivéssemos vários movimentos em países do exterior que nos apoiam. Sem o grande reconhecimento por parte das universidades, escolas e entidades sociais, também nada seriamos. Em nome do movimento, então, agradecemos de coração pela vinda de vocês, e as portas estão abertas para qualquer dia que quiserem vir, inclusive trazendo mais pessoas, para se somarem conosco na luta pela transformação social. Muito obrigado a todos vocês.

Zé Carlos: Gostaria de dizer obrigado a vocês, agradecer a vinda de vocês. Estamos de braços abertos para acolher vocês todas as vezes que quiserem vir. É isso aí.

NOVACULTURA.info: Apenas concluindo, agradecemos a seu Zé Carlos, dona Iraci e principalmente ao companheiro Tião por ser tão receptivo durante nossa estadia aqui. Agora é tocar o pau na luta mesmo. Obrigado.

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