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"O Povo Brasileiro: O Destino Nacional"



AS DORES DO PARTO

O Brasil foi regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino de um proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. Os interesses e as aspirações do seu povo jamais foram levados em conta, porque só se tinha atenção e zelo no atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora. O que se estimulava era o aliciamento de mais índios trazidos dos matos ou a importação de mais negros trazidos da África, para aumentar a força de trabalho, que era a fonte de produção dos lucros da metrópole. Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo‐lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para nutrir‐se, vestir‐se e morar. Essa primazia do lucro sobre a necessidade gera um sistema econômico acionado por um ritmo acelerado de produção do que o mercado externo dela exigia, com base numa força de trabalho afundada no atraso, famélica, porque nenhuma atenção se dava à produção e reprodução das suas condições de existência.


Em consequência, coexistiram sempre uma prosperidade empresarial, que às vezes chegava a ser a maior do mundo, e uma penúria generalizada da população local. A sociedade era, de fato, um mero conglomerado de gentes multiétnicas, oriundas da Europa, da África ou nativos daqui mesmo, ativadas pela mais intensa mestiçagem, pelo genocídio mais brutal na dizimação dos povos tribais e pelo etnocídio radical na descaracterização cultural dos contingentes indígenas e africanos.


Alcancam‐se, assim, paradoxalmente, condições ideais para a transfiguração étnica pela desindianização forçada dos índios e pela desafricanização do negro, que, despojados de sua identidade, se vêem condenados a inventar uma nova etnicidade englobadora de todos eles.

Assim é que se foi fundindo uma crescente massa humana que perdera a cara: eram ex‐índios desindianizados, e sobretudo mestiços, mulheres negras e índias, muitíssimas, com uns pouquíssimos brancos europeus que nelas se multiplicaram prodigiosamente.


O núcleo luso, formado por muito poucos portugueses que aqui entraram no primeiro século, e por mulheres mais raras ainda, que aqui vieram ter, olhando a todos os mais desde a altura do seu preconceito de reinóis, da força das suas armas, operacionava sua espoliação econômica, querendo impor a todos sua fôrma étnica e sua cara civilizatória. Ocorre, surpreendentemente, que esse povo nascente, em lugar de uma Lusitânia de ultramar, se configura como um povo em si, que luta desde então para tomar consciência de si mesmo e realizar suas potencialidades.


Essa massa de mulatos e caboclos, lusitanizados pela língua portuguesa que falavam, pela visão do mundo, foram plasmando a etnia brasileira e promovendo, simultaneamente, sua integração, na forma de um Estado‐Nação. Estava já maduro quando recebe grandes contingentes de imigrantes europeus e japoneses, o que possibilitou ir assimilando todos eles na condição de brasileiros genéricos.


Alguns, sobretudo japoneses, guardando marcas físicas indisfarçáveis de suas origens, têm, em conseqüência, certa resistência à plena assimilação ou ao reconhecimento dela quando já está plenamente cumprida. Não deixam nunca de ser nisseis, porque trazem isso na cara. Outros imigrantes, como os italianos, os alemães, os espanhóis, apesar de brancarrões e de

portarem nomes enrolados, foram mais facilmente assimilados, sendo sua condição de brasileiros plenamente aceita. Alguns até exacerbam, como o caso do general Geisel, brasileiro de primeira geração, que nunca entendeu por que os índios, aqui há tantos séculos, teimam em não ser brasileiros.


Os árabes são os imigrantes mais exitosos, integrando‐se rapidamente na vida brasileira, participando das instituições políticas e alcançando posições de governo. Até esquecem de onde vieram e de sua vida miserável em seus países de origem. Cegos para o fato de que seu êxito se explica, em grande parte, pelo desgarramento que faz com que eles vejam e atuem

sobre a sociedade local armados de preconceitos e incapazes de qualquer solidariedade, desligados de qualquer lealdade, de obrigações familiares e sociais, para só se concentrarem no esforço de enricar.


A atitude desses imigrantes é frequentemente de desprezo e incompreensão. Sua tendência é considerar que os brasileiros pobres são responsáveis por sua pobreza e de que o fator racial é que afunda na miséria os descendentes dos índios e dos negros.


Afirmam até que a religião católica e a língua portuguesa contribuíram para o subdesenvolvimento brasileiro. Ignoram que aqui chegaram a partir de crises que os tornaram excedentes, descartáveis, da mão-de-obra de suas pátrias, e que aqui encontraram um imenso país já aberto, de fronteiras fixadas, regendo autonomamente seu destino.


Afortunadamente nenhum desses contingentes tem consistência suficiente para se apresentar como uma etnia disputante ao domínio da sociedade global, ou pretendentes a uma autonomia de destino.


Ao contrário do que sucede com outros países, que guardam dentro do seu corpo contingentes claramente opostos à identificação com a macroetnia nacional, no Brasil, apesar da multiplicidade de origens raciais e étnicas da população, não se encontram tais contingentes esquivos e separatistas dispostos a se organizar em quistos.


O que desgarra e separa os brasileiros em componentes opostos é a estratificação de classes. Mas é ela que, do lado de baixo, unifica e articula, como brasileiros, as imensas massas predominantemente escuras, muito mais solidariamente cimentadas como tal, que enquanto negro retinto ou branco de cal, porque nenhum desses defeitos é insanável. O porta‐voz mais brilhante dessa visão deformada de certos descendentes de imigrantes foi o sábio Hermann von Ihering. Na sua paixão por defender seus conterrâneos alemães, que estavam em guerra contra os índios que viveram desde sempre nos terntórios doados para colonizar, emprestou seu prestígio científico para duas campanhas. A de pedir ao governo o extermínio dos índios como requisito do progresso e da civilização, e a de acusar a gente brasileira, que tinha feito esse país que o abrigava, como incapaz de qualquer empreendimento.


"Os actuaes índios do Estado de S. Paulo não representam um elemento de trabalho e de progresso. Como tambem nos outros Estados do Brazil, não se póde esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados e como os Caingangs selvagens são um impecilio para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não ha outro meio, de que se possa lançar mão, senão o seu exterminio. A conversão dos indios não tem dado resultado satisfactorio; aquelles índios que se uniram aos portuguezes immigrados, só deixaram uma influencia malefica nos habitos da população rural. É minha convicção de que é devido essencialmente a essas circunstâncias, que o Estado de S. Paulo é obrigado a introduzir milhares de immigrantes, pois que não se póde contar, de modo efficaz e seguro, com os serviços dessa população indigena, para os trabalhos que a lavoura exige (Ihering 1907:215)."


Outros intérpretes de nossas características nacionais vêem os mais variados defeitos e qualidades aos quais atribuem valor causal. Um exemplo nos basta. Para Sérgio Buarque de Holanda seriam características nossas, herdadas dos iberos, a sobranceria hispânica, o desleixo e a plasticidade lusitanas, bem como o espírito aventureiro e o apreço à lealdade de uns e outros e, ainda, seu gosto maior pelo ócio do que pelo negócio. Da mistura de todos esses ingredientes, resultaria uma certa frouxidão e anarquismo, a falta de coesão, a desordem, a indisciplina e a indolência. Mas derivariam delas, também, certo pendor para o mandonismo, para o autoritarismo e para a tirania.


Como quase tudo isso são defeitos, devemos convir que somos um caso feio, tamanhas seriam as carências de que padecemos. Seria assim? Temo muito que não. Muito pior para nós teria sido, talvez, e Sérgio o reconhece, o contrário de nossos defeitos, tais como, o servilismo, a humildade, a rigidez, o espírito de ordem, o sentido de dever, o gosto pela rotina, a gravidade, a sisudez. Elas bem poderiam nos ser ainda mais nefastas porque nos teriam tirado a criatividade do aventureiro, a adaptabilidade de quem não é rígido mas flexível, a vitalidade de quem enfrenta, ousado, azares e fortunas, a originalidade dos indisciplinados.


Fala‐se muito, também, da preguiça brasileira, atribuída tanto ao índio indolente, como ao negro fujão e até às classes dominantes viciosas. Tudo isto é duvidoso demais frente ao fato do que aqui se fez. E se fez muito, como a construção de toda uma civilização urbana nos séculos de vida colonial, incomparavelmente mais pujante e mais brilhante do que aquilo

que se verificou na América do Norte, por exemplo.


A questão que se põe é entender por que eles, tão pobres e atrasados, rezando em suas igrejas de tábua, sem destaque em qualquer área de criatividade cultural, ascenderam plenamente à civilização industrial, enquanto nós mergulhávamos no atraso.


As causas desse descompasso devem ser buscadas em outras áreas. O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade.


O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.


CONFRONTOS

Que é o Brasil entre os povos contemporâneos? Que são os brasileiros?


Enquanto povo das Américas contrasta com os povos testemunhos, como o México e o altiplano andino, com seus povos oriundos de altas civilizações que vivem o drama de sua dualidade cultural e o desafio de sua fusão numa nova civilização.


Outro bloco contrastante é o dos povos transplantados, que representa nas Américas tao‐só a reprodução de humanidades e de paisagens européias. Os Estados Unidos da América e o Canadá são de fato mais parecidos e mais aparentados com a África do Sul branca e com a Austrália do que conosco. A Argentina e o Uruguai, invadidos por uma onda gringa que lançou 4 milhões de europeus sobre um mero milhão que havia devassado o país e feito a independência, soterrando a velha formação hispano‐índia, são outros transplantados. Só é de perguntar por que, com a economia igual e até mais rica de produção de cereais, de carnes e de lãs, não conseguem a prosperidade da Austrália e do Canadá, que se enriqueceram com muito menos?


Será o velho Cromwell e a institucionalidade por ele criada, que ainda regem o norte, que fazem a diferença?


Os outros latino‐americanos são, como nós mesmos, povos novos, em fazimento. Tarefa infinitamente mais complexa, porque uma coisa é reproduzir no alem‐mar o mundo insosso europeu, outra é o drama de refundir altas civilizações, um terceiro desafio, muito diferente, é o nosso, de reinventar o humano, criando um novo gênero de gentes, diferentes de quantas haja.


Se olhamos lá para fora, a África contrasta conosco porque vive ainda o

drama de sua europeização, prosseguida por sua própria liderança libertária, que tem mais horror à tribalidade que sobrevive e ameaça explodir do que à recolonização. São ilusões! Se os índios sobreviventes do Brasil resistiram a toda a brutalidade durante quinhentos anos e continuam sendo eles mesmos, seus equivalentes da África resistirão também para rir

na cara de seus líderes neoeuropeizadores. Mundos mais longínquos, como os orientais, mais maduros que a própria Europa, se estruturam na nova civilização, mantendo seu ser, sua cara. Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de se‐lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na rünguendade. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando‐os, ouvindo‐os, é fácil perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e sangue negro.


Com efeito, alguns soldados romanos, acampados na península Ibérica, ali latinizaram os povos pré‐lusitanos. O fizeram tão firmemente que seus filhos mantiveram a latinidade e a cara, resistindo a séculos de opressão de invasores nórdicos e sarracenos.


Depois de 2 mil anos nesse esforço, saltaram o mar‐oceano e vieram ter no Brasil para plasmar a neo‐romanidade que nós somos. É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma língua, sem dialetos. Não abrigam nenhum contingente reivindicativo de autonomia, nem se apegam a nenhum passado. Estamos abertos é para o futuro.


Nações há no Novo Mundo ‐ Estados Unidos, Canadá, Austrália ‐ que são meros transplantes da Europa para amplos espaços de além-mar. Não apresentam novidade alguma neste mundo. São excedentes que não cabiam mais no Velho Mundo e aqui vieram repetir a Europa, reconstituindo suas paisagens natais para viverem com mais folga e liberdade, sentindo‐se em casa. É certo que às vezes se fazem criativos, reinventando a república e a eleição grega. Raramente. São, a rigor, o oposto de nós.


Nosso destino é nos unificarmos com todos os latino‐americanos por nossa oposição comum ao mesmo antagonista, que é a América anglo‐saxônica, para fundarmos, tal como ocorre na comunidade européia, a Nação Latino‐Americana sonhada por Bolívar. Hoje, somos 500 milhões, amanhã seremos 1 bilhão. Vale dizer, um contingente humano com magnitude suficiente para encarnar a latinidade em face dos blocos chineses, eslavos, árabes engobritânicos na humanidade futura.


Somos povos novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante.


Na verdade, das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a se‐lo também por sua criatividade artística e cultural.


Precisa agora se‐lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.


Capítulo final da obra “O Povo Brasileiro” de Darcy Ribeiro, cujo centenário se completa em 2022

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