"Mar Vermelho, em nome de Alá"
- NOVACULTURA.info
- 10 de jul.
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Segundo fontes ocidentais, uma aliança entre o grupo de resistência iemenita Anṣār Allāh (Partidários de Deus), mais conhecidos como houthis, pelo nome de seu fundador, Hussein Badreddin al-Houthi, e a organização terrorista somali Harakat aš-šabāb al-muŷahidīn (Movimento dos Jovens Mujahideens), ou simplesmente al-Shabaab (os rapazes), um dos braços mais letais da al-Qaeda na África, estaria sendo forjada — algo que teria sido filosoficamente impensável até pouco tempo atrás.
Apesar de ambos os grupos serem efetivamente muçulmanos, essa articulação inédita teria como objetivo comum atacar as embarcações que transitam pelo Mar Vermelho, através do estreito de Bab al-Mandab (Porta das Lamentações), que o conecta ao Golfo de Áden ao sul. Já ao norte, o Mar Vermelho se liga ao Canal de Suez, por onde passa cerca de 15% do comércio mundial e 10% do trânsito total de petróleo.
Caso esse acordo seja confirmado, o único motivo possível seria o de punir o Ocidente por permitir o genocídio a céu aberto que o ente sionista perpetra em Gaza e na Cisjordânia (Líbano? Síria?) desde 8 de outubro de 2023.
Os houthis surgiram em 1994 como uma força de autodefesa da marginalizada comunidade zaidita — uma escola própria do xiismo iemenita — e de outros setores da sociedade, como marxistas, sunitas pobres e cristãos, frente à expansão do wahabismo promovido por Riad durante as décadas de 1980 e 1990, e à instalação, em 2009, da Al-Qaeda na Península Arábica (AQAP), inimigos jurados do zaidismo.
O xiismo iemenita possui diferenças doutrinárias marcantes em relação ao Ithna Ashariyya ou imamismo, a vertente predominante no Irã, Paquistão, Iraque, Azerbaijão e Líbano. Desde então, os houthis têm sido protagonistas nos conflitos intensos do Iêmen, que, após as mudanças de governo provocadas pela Primavera Árabe, não conseguiu se estabilizar devido a sucessivas guerras civis. Esses conflitos motivaram a invasão da Arábia Saudita, apoiada por uma coalizão liderada pelos Emirados Árabes Unidos (EAU), Egito, Sudão e até mesmo Paquistão, além dos Estados Unidos, Israel e Reino Unido.
Após cinco anos de operações, essa coalizão não conseguiu romper a resistência iemenita, e a guerra — embora não oficialmente encerrada — entrou em um limbo em que os houthis saíram como vencedores, conseguindo conter e neutralizar as forças do príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman.
A proeza histórica dos houthis lhes garantiu o controle do norte do país, que possui costa no Mar Vermelho. Já no Sul, existe um governo fantoche de Riad, autodenominado Conselho de Liderança Presidencial (CLP), com um poder mais nominal do que real.
Por outro lado, o al-Shabaab — do outro lado do Golfo de Áden, às portas de Bab al-Mandab — adere ao wahabismo, a vertente mais retrógrada do sunismo. Essa escola foi criada sob medida para as necessidades da Casa Saud no século XVIII, e foi o que deu coesão àquela tribo, permitindo que, dois séculos depois, fundassem a atual Arábia Saudita. Com seus imensos recursos petrolíferos, o reino passou a difundir o wahabismo desde os anos 1980, por meio de mesquitas, madraçais e instituições religiosas, inicialmente no contexto da guerra antissoviética no Afeganistão, e depois pelo restante do Islã — chegando até comunidades muçulmanas no Ocidente.
O wahabismo — que leva o nome de seu criador, Muhammad ibn Abd al-Wahhab — também é conhecido como salafismo ou Salaf as-Salih (antepassados ou predecessores piedosos).
Fora do reino saudita, foi adotado no Egito pela Irmandade Muçulmana nas primeiras décadas do século passado, irradiando-se então para os setores mais reacionários do Oriente Médio.
Os milhares de mujahideens estrangeiros levados à guerra no Afeganistão pela Arábia Saudita e pela CIA — assim como os primeiros talibãs — absorveram a doutrina salafista. Ao retornarem aos seus países, argelinos, chechenos, malaios, bósnios ou filipinos, entre outros, levaram consigo o takfirismo (a jihad contra os apóstatas), considerando infiéis todos os que não são wahabitas, como se fosse um “souvenir” de guerra.
Por isso, é extremamente estranho que uma organização wahabita como o al-Shabaab possa se associar aos houthis, que, sob as estritas normas da sharia (lei islâmica), são considerados kuffar (infiéis). Em lugares tão distantes como Paquistão ou Nigéria, são comuns os massacres de comunidades xiitas acusadas de apostasia.
Um desafio ao império
Se essa improvável aliança se concretizar, será um desafio para Washington e para os aliados do regime sionista, que têm sido os principais alvos dos mísseis houthis desde o início do genocídio em Gaza.
A ofensiva já causou interrupções no transporte marítimo, forçando muitas companhias de navegação internacionais a modificar suas rotas vindas do Golfo Pérsico e da Ásia, elevando os custos em um momento em que o Canal do Panamá se aproxima do limite de sua capacidade operativa, em meio às tensões entre o governo do Panamá e Donald Trump, que já ameaçou tomar o canal à força.
A guerra entre o al-Shabaab e as forças federais de Mogadíscio, com apoio militar da União Africana, Turquia e Estados Unidos, está estagnada há mais de uma década. Cada ataque de um lado recebe rápida resposta do outro: emboscadas são respondidas com bombardeios; atentados explosivos, com incursões militares em aldeias controladas pelos mujahideens. A instabilidade na Somália impede vislumbrar um fim, mesmo a longo prazo.
Segundo informações de inteligência, o al-Shabaab estaria disposto a utilizar embarcações dos conhecidos “piratas” para desviar a atenção nas proximidades do estreito, permitindo o contrabando de armas e outros suprimentos para os portos iemenitas sob controle houthi.
O contrabando de armas, drogas e pessoas pelo Golfo de Áden tem raízes históricas profundas. Algumas fontes indicam que esse tráfego aumentou desde o início de 2024, o que é visto como indício de aproximação entre as duas organizações. Outro fator que dá veracidade à possível aliança é a troca de prisioneiros entre elas, bem como o apoio dos houthis a ataques da AQAP contra forças internacionais no sul do Iêmen, que dão suporte ao Conselho de Liderança Presidencial.
Fontes jornalísticas indicam que pelo menos duas reuniões entre houthis e al-Shabaab ocorreram em 2024. Acredita-se que os somalis receberam da insurgência iemenita carregamentos de armas leves, fuzis de assalto, metralhadoras leves e rifles de precisão.
Hoje, os tradicionais e lendários dhows — embarcações que há séculos monopolizam o comércio do Oceano Índico, das costas africanas ao sudeste asiático, e que levaram o Alcorão até lugares como Malásia e Filipinas — transformaram-se em risco aos interesses da principal potência mundial, os Estados Unidos. Pois em cada uma dessas embarcações podem estar sendo transportados, de um lado ao outro do Golfo de Áden, mísseis, drones e armas, ameaçando uma parcela significativa do comércio mundial.
Diante do novo contexto em que se encontra o Irã, após a breve guerra contra a coalizão sionista-norte-americana, e considerando o apoio histórico de Teerã à resistência iemenita, é provável que esse apoio tenha diminuído. Por isso, os houthis precisam estreitar novos vínculos para manter fechado o Mar Vermelho como resposta concreta ao genocídio em Gaza.
Prevendo essa perda de apoio por parte do Irã, líderes houthis viajaram à China em 2023 e 2024, em busca de um respaldo que já havia sido prometido em troca da permissão para que embarcações chinesas navegassem por suas áreas de controle. Como consequência, o Departamento do Tesouro dos EUA sancionou empresas chinesas por fornecerem aos iemenitas “bens de uso dual”.
Foi detectado que redes de contrabandistas que operam na África Oriental, a partir do Quênia e da Tanzânia, estão levando armamentos a alguns portos no leste da Somália sob controle do al-Shabaab, os quais também abastecem portos iemenitas.
Outras fontes apontam ainda que os iemenitas estariam colaborando com a filial do Daesh que atua no norte da Somália, na região autônoma da Somalilândia. Isso daria sentido à proposta inicial do al-Shabaab aos houthis: permitir a instalação de dois lançadores de mísseis no centro e sul da Somália, em Somalilândia — com um terceiro possível em Puntland, em acordo com a facção do Daesh que se fortaleceu nessa região semiautônoma — para lutar pela Palestina, em nome de Alá.
Por Guadi Calvo, no Línea Internacional
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