"Índia, a hora dos oportunistas"
- NOVACULTURA.info
- 26 de jun.
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No momento em que todos seguimos atônitos com as primeiras salvas do conflito entre Irã e Israel, e nos confunde a possibilidade – até agora distópica – de uma guerra civil nos Estados Unidos; enquanto permanecem ativos os múltiplos focos de conflito cada vez mais intensos na África e na Ásia – continua a fogueira birmanesa, segue pendente a questão da Caxemira entre Índia e Paquistão, e os atritos fronteiriços entre Camboja e Tailândia aumentam –, na Europa não se extingue o já entediante jogo de gato e rato na Ucrânia.
Como um ladrão ao entardecer, Narendra Modi, encorajado por seu partido, o Bharatiya Janata Party (BJP), aproveita para aprofundar sua eterna campanha contra os muçulmanos da Índia.
Bangladesh acaba de denunciar a Índia pela deportação ilegal de centenas de cidadãos indianos, majoritariamente muçulmanos, acusados por Nova Delhi de serem imigrantes ilegais oriundos de Bangladesh.
As múltiplas investidas da polícia indiana, centradas no estado nordeste de Assam, violaram os direitos dessas pessoas, ao privá-las de defesa legal e enviá-las imediatamente para Bangladesh, forçando-as a cruzar a fronteira em plena noite.
Desde Daca, denunciou-se que Nova Delhi não realizou o devido processo legal obrigatório, expulsando especialmente muçulmanos e membros das castas mais desprotegidas de seu país. O Ministério das Relações Exteriores de Bangladesh afirmou ter solicitado às autoridades indianas que cessassem as deportações sem consulta nem investigação prévia – sem até o momento obter qualquer resposta da Índia.
Soube-se que, durante as deportações forçadas – que incluíam muitos cidadãos indianos “caçados” seletivamente –, ao tentarem resistir, foram ameaçados com armas de fogo para que entrassem nos veículos das Forças de Segurança de Fronteira da Índia (BSF).
Em resposta, as autoridades fronteiriças de Bangladesh já devolveram à Índia cerca de 200 cidadãos indianos, que foram obrigados a retornar a pé, sem qualquer proteção legal ou sanitária, dada a descoordenação na fronteira. Foram forçados a atravessar florestas e cruzar rios, ao mesmo tempo que tinham de se esconder da BSF, temendo ser novamente deportados ou diretamente assassinados. Mais tarde, descobriu-se que alguns dos muçulmanos detidos pela polícia em Bombaim e deportados eram, na verdade, cidadãos indianos oriundos do estado de Bengala Ocidental.
Sabe-se que, no contexto dessas perseguições, ao menos 100 pessoas detidas encontram-se desaparecidas.
Os repatriados relataram que as autoridades bengalesas os detiveram em um acampamento improvisado. De lá, em poucas horas, foram colocados em caminhões e levados até a fronteira. Abandonaram-nos ali, sem nenhum tipo de documentação ou controle.
A repressão cada vez mais ativa contra o que o governo indiano denomina “bangladeshianos ilegais” tem como pretexto a recente escalada armada na Caxemira entre Nova Delhi e Islamabad, após os ataques contra turistas indianos em maio passado.
As detenções se intensificaram ao mesmo tempo em que o exército indiano lançava a operação Sindhoor contra posições paquistanesas.
Toda essa perseguição enquadra-se na polêmica Lei da Cidadania (CAA) de 2019, pela qual apenas os muçulmanos devem comprovar que nasceram na Índia ou chegaram antes de 1971, enquanto hindus, sikhs e membros de outras religiões foram isentos dessa obrigação.
Nesse contexto, o Ministro-Chefe (Governador) de Assam, membro do partido de Modi (BJP), informou que: “será intensificada e acelerada a política estadual de expulsão automática de estrangeiros ilegais”.
Enquanto isso, da capital, Nova Delhi, e de estados como Gujarat, Rajastão e Maharashtra, relatam-se mais deportações de muçulmanos. Somente em Gujarat, onde Modi foi Ministro-Chefe entre 2001 e 2014, detiveram-se cerca de sete mil supostos bangladeshianos. Após milhares deles serem exibidos pelas ruas para sua humilhação pública, soube-se que menos de quinhentos estavam em situação irregular.
Na semana passada, a guarda fronteiriça de Bangladesh devolveu quatro homens muçulmanos detidos pela polícia em Bombaim e deportados, após descobrir-se que eram trabalhadores migrantes indianos do estado de Bengala Ocidental.
Outra fronteira quente
Pode-se dizer que, ao menos na era moderna, Myanmar e Índia têm uma origem comum. Ambas as nações fizeram parte do Império Britânico e se tornaram independentes dele com poucos meses de diferença: agosto de 1947, Índia; janeiro de 1948, Myanmar. Após uma intensa luta anticolonial, essa experiência forjou intensas relações políticas e econômicas entre as jovens repúblicas.
Essas relações foram alteradas a partir do novo cenário birmanês de guerra civil entre o Tatmadaw (exército) e um amplo espectro de guerrilhas étnicas, religiosas e políticas, que se estendem por todo o país há quase quatro anos, com repercussões também na fronteira com a Índia.
Trata-se de uma região montanhosa de difícil acesso, habitada por múltiplas etnias e tribos estabelecidas de ambos os lados da linha fronteiriça – com mais de 1.600 km – que atravessa os estados indianos de Arunachal Pradesh, Nagaland, Manipur e Mizoram.
Essa característica permite que os grupos rebeldes que se apoiam nessa fronteira indiana nos estados birmaneses de Chin, Sagaing, Kachin, contem com apoio de seus irmãos indianos – o que também gerou tensões entre Naypyidaw e Nova Delhi.
Isso obrigou Modi a ajustar suas políticas com a junta militar birmanesa, tentando certa aproximação com os grupos rebeldes, ao mesmo tempo em que intensificou os controles fronteiriços – particularmente no comércio e na ajuda indiana a populações próximas da fronteira – além de conter o fluxo de refugiados birmaneses que fogem da guerra.
Os novos planos de Nova Delhi em relação à atual situação fronteiriça com Myanmar a obrigam a repensar o que fazer com o comércio informal que sustenta a economia de milhares de pequenos produtores de ambos os lados da fronteira. Ao mesmo tempo em que busca evitar repercussões para sua própria segurança, a Índia precisa continuar com os objetivos traçados por Modi em 2014: tornar-se foco de influência no Sudeste Asiático por meio da Política de Agir para o Leste (Act East Policy), com foco na diplomacia, economia e geopolítica – onde Myanmar funciona como porta de entrada para a região.
Após o golpe de 1º de fevereiro de 2021, a Índia esforçou-se para atrair a atenção do general Min Aung Hlaing, que emergiu como novo presidente, considerando a forte influência política e comercial da China com o governo deposto do presidente Win Myint (que era controlado nos bastidores por Aung San Suu Kyi). Estima-se que Pequim tenha investido cerca de 20 bilhões de dólares no Corredor Econômico China-Myanmar, que conecta o sudoeste birmanês à costa do estado de Rakhine, sendo esta a única rota terrestre possível da China ao oceano Índico.
A Índia, historicamente, buscou influência na Birmânia, apoiando operações de contrainsurgência contra grupos separatistas em seus estados do nordeste – contando com o fato de que alguns desses grupos tinham bases em território birmanês.
Narendra Modi cometeu um erro de cálculo ao apostar nos golpistas de Naypyidaw, sem considerar a reação das forças políticas expulsas do poder e sua imediata aliança com os grupos insurgentes. Diante dessa nova realidade, Delhi busca maior aproximação com as forças rebeldes, ao mesmo tempo em que – como também faz Pequim – tenta manter equilibrada sua relação com os militares. As generosas doações indianas após o terremoto de março passado são prova disso.
Desajeitadamente, o governo indiano, cego pelos princípios fundamentalistas da Hindutva e prevendo o que poderia acontecer, impôs uma série de restrições ao longo da fronteira birmanesa. Incluindo a possibilidade de cercar a fronteira, limitar o Regime de Livre Circulação que permitia o trânsito de residentes de ambos os lados, e implementar um registro biométrico de refugiados com o objetivo posterior de sua repatriação.
No novo contexto internacional, no qual o mundo muçulmano pode ser absolutamente reconfigurado após a guerra Irã-Israel – o que também terá consequências para o restante do planeta –, Modi espera ter muito a ganhar na hora dos oportunistas.
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