Fanon: "Fundamentos Recíprocos da Cultura Nacional e das Lutas de Libertação"

O domínio colonial, por ser total e simplificador, tende imediatamente a desintegrar de forma espetacular a existência cultural do povo submetido. A negação da realidade nacional, as relações jurídicas de novo introduzidas pela potência ocupante, a recusa à periferia pela sociedade colonial, dos indígenas, as expropriações, a submissão sistemática de homens e de mulheres, tomam possível essa obliteração cultural.
Há três anos demonstrei, no nosso primeiro congresso, que o dinamismo é substituído muito depressa, na situação colonial, por uma substantivação das atitudes. A área cultural é delimitada então por muros, por postes indicativos. São outros tantos mecanismos de defesa do tipo mais elementar, assimiláveis por mais de um motivo ao simples instinto de conservação. O interesse deste período é que o opressor chegue a não se contentar já com a inexistência objectiva da nação e da cultura oprimida. Fazem-se todos os esforços para levar o colonizado a confessar abertamente a inferioridade da sua cultura transformada em condutas instintivas, a reconhecer a irrealidade da sua nação e, em último caso, o carácter desorganizado e não elaborado da sua própria estrutura biológica.
Em face desta situação, a reação do colonizado não é inequívoca. Enquanto as massas mantêm intactas as tradições mais heterogêneas a respeito da situação colonial, enquanto o estilo artesanal se solidifica num formalismo cada vez mais estereotipado, o intelectual lança-se freneticamente numa aquisição furiosa da cultura do ocupante, preocupando-se em caracterizar pejorativamente a sua cultura nacional, ou limita-se à enumeração circunstanciada, metódica, passional e rapidamente estéril desta cultura.
O caráter comum dessas duas tentativas é que desembocam uma e outra em contradições insuportáveis. Desertor ou substancialista, o colonizado é ineficaz porque precisamente a análise da situação colonial não é realizada com rigor. A situação colonial paralisa, quase totalmente, a cultura nacional. Não há, não poderia haver cultura nacional, vida cultural nacional, inventos culturais ou transformações culturais no quadro de uma dominação colonial. Aqui e além, surgem por vezes intenções audazes de reanimar o dinamismo cultural, de reorientar os temas, as formas, as tonalidades. O interesse imediato, palpável, evidente desses sobressaltos é nulo. Mas, levando as suas consequências ao extremo limite, percebe-se que se prepara uma despacificação da consciência nacional, uma impugnação da opressão, uma abertura sobre a luta de libertação.
A cultura nacional é, debaixo do domínio colonial, uma cultura destruída de maneira sistemática e muito rapidamente condenada à clandestinidade. Esta noção de clandestinidade é percebida imediatamente nas reações do ocupante, que interpreta a complacência nas tradições como uma fidelidade ao espírito nacional, como uma negação a submeter-se. Esta persistência de formas culturais condenadas pela sociedade colonial é já uma manifestação nacional. Mas esta manifestação obedece às leis da inércia. Não existe ofensiva, não existe nova definição das relações. Há crispação num núcleo cada vez mais estreito, cada vez mais inerte, cada vez mais vazio.
No fim de um ou dois séculos de exploração, produz-se um verdadeiro empobrecimento do panorama cultural nacional. A cultura nacional converte-se num acervo de hábitos motrizes, de tradições de vestimenta, de instituições despedaçadas. Percebe-se a escassa mobilidade. Não existe verdadeira criatividade, não há efervescência. Miséria do povo, opressão nacional e inibição da cultura, são uma e a mesma coisa. Através de um século de domínio colonial, encontra-se uma cultura rígida em demasia, sedimentada, mineralizada. A deterioração da realidade nacional e a agonia da cultura nacional mantêm relações de dependência recíproca. Por isso, é essencial seguir a evolução dessas relações no decorrer da luta de libertação. A negação cultural, o desprezo pelas manifestações nacionais motrizes ou emocionais, a proscrição de qualquer especialidade de organização, contribuem para engendrar condutas agressivas no colonizado. Mas esses comportamentos são de carácter reflexo, mal diferenciadas, anárquicas, ineficazes. A exploração colonial, a miséria, a fome endêmica empurram cada vez mais o colonizado para a luta aberta e organizada. Progressivamente e de maneira imperceptível a necessidade de um afrontamento decisivo torna-se urgente e é experimentada pela grande maioria do povo. As tensões, antes inexistentes, multiplicam-se. Os acontecimentos internacionais, o desmoronamento em grandes pedaços dos impérios coloniais, as contradições inerentes ao sistema colonialista sustentam e fortalecem a combatividade, promovem e dão força à consciência nacional.
Essas novas tensões, presentes em todas as fases da realidade colonial, repercutem-se no plano cultural. Na literatura, por exemplo, existe relativa superprodução. De réplica menor do dominador que era, a produção autóctone distingue-se e converte-se em vontade particular. Essencialmente consumidora durante o período de opressão, a intelligentzia torna-se produtora. Esta literatura limita-se em princípio, voluntariamente, ao gênero poético e trágico. Parece existir uma espécie de organização interna, uma lei de expressão que quer que as manifestações poéticas escasseiem à medida que se definem os objetivos e os métodos da luta de libertação. Os temas renovam-se fundamentalmente. Na realidade, cada vez se encontram menos essas recriminações amargas e desesperadas, essas violências abertas e sonoras que, em definitivo, tranquilizam o ocupante. Os colonialistas, no período anterior, encorajaram essas tentativas, facilitaram a sua existência. As denúncias exacerbadas, as misérias evidentes, a paixão expressa são, com efeito, assimiladas pelo ocupante numa operação de catarse. Facilitar essas operações é, em certo sentido, evitar a dramatização, aliviar a atmosfera.
Mas esta situação não pode ser senão transitória. Na verdade, o progresso da consciência nacional no povo modifica e define as manifestações literárias do intelectual colonizado. A coesão persistente do povo constitui para o intelectual um convite para ir mais além do grito. O lamento dá a vez à acusação e à chamada. No período seguinte, aparece a palavra de ordem. A cristalização da consciência nacional transformará os gêneros e os temas literários e, simultaneamente, criará um novo público. Enquanto no princípio o intelectual colonizado produzia exclusivamente para o opressor, seja para o atrair ou para o denunciar através de categorias étnicas ou subjetivistas, adota progressivamente o hábito de se dirigir ao seu povo.
Somente a partir desse momento se pode falar de literatura nacional. Existe, no plano da criação literária, reformulação e clarificação dos temas tipicamente nacionalistas. É a literatura de combate propriamente dita, no sentido em que convoca o povo inteiro para a luta pela existência nacional. Literatura de combate, porque informa a consciência nacional, dá-lhe forma e contornos e abre-lhe novas e ilimitadas perspectivas. Literatura de combate, porque se responsabiliza, porque é vontade temporalizada.
Noutro nível, a literatura oral, os contos, as epopeias, os cantos populares antes transcritos e decorados, começam a transformar-se. Os contistas que recitavam episódios sem vida, animam-nos e introduzem modificações cada vez mais fundamentais. Existe o propósito de atualizar os conflitos, de modernizar as formas de luta evocadas, os nomes dos heróis, o tipo das armas. O método alusivo faz-se com mais frequência. À fórmula: «Há muito tempo», substitui-se outra mais ambígua: «O que vamos contar passou-se em qualquer lado, mas poderia passar-se aqui hoje ou amanhã». O exemplo da Argélia é significativo a este respeito. A partir de 1952-53 os narradores de contos, estereotipados e fatigantes para os ouvintes, transformaram totalmente os seus métodos de exposição e o conteúdo dos seus relatos. O público, antes escasso, aparece agora em maior número. A epopeia, com as suas categorias de tipificação, reaparece. É um autêntico espetáculo que recupera valor cultural. O colonialismo não se enganou quando, desde 1955, procedeu à prisão sistemática destes narradores.
O contacto do povo com a nova atitude, suscita um novo ritmo respiratório, tensões musculares esquecidas e desenvolve a imaginação. Cada vez que o narrador expõe perante o seu público um episódio novo, assistimos a uma verdadeira invocação. Revela-se ao público a existência de um novo tipo de homem. O presente não está já fechado sobre si mesmo, mas aquartelado. O narrador liberta a sua imaginação, inventa, faz obra criadora. Sucede até que figuras mal preparadas para esta transmutação, bandidos de grandes caminhos ou vagabundos mais ou menos insociáveis, sejam recolhidas e reformadas. Deve seguir-se passo a passo, num país colonizado, o aparecimento da imaginação, da criação nas canções e nos relatos épicos populares. O contista responde por aproximações sucessivas à expectativa do povo e marcha, aparentemente sozinho, mas na realidade apoiado pela sua ajuda, em busca de modelos novos, de modelos nacionais. A comédia e a farsa desaparecem ou perdem o seu atrativo. Quanto à dramatização, não se situa já no plano da consciência em crise do intelectual. Perdendo os seus sintomas de desespero e de rebeldia, converteu-se na sorte comum do povo, em parte de uma ação em preparação ou já a decorrer.