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"Como a África se desenvolveu antes da chegada dos Europeus"



Demonstrou-se atrás que, em termos comparativos, a África é hoje uma região subdesenvolvida em relação à Eu­ropa Ocidental e a algumas outras regiões do Mundo; e que a atual situação se deve não a uma evolução separada – África por um lado, Europa por outro – mas à exploração. Como é sabido, a África manteve intensas e prolongadas relações com a Europa e é fato incontroverso que os contatos entre as duas sociedades alteram os seus respectivos rumos de desenvolvi­mento. Para prossecução dos objetivos deste livro serão ne­cessárias quatro operações: a) reconstituir o caráter do de­sen­volvimento africano anterior à chegada dos europeus; b) reconstruir o caráter da evolução registrada na Europa antes da expansão; c) analisar o contributo da África ao desenvolvi­mento presente da Europa; d) analisar o grau de responsabi­li­dade da Europa no atual subdesenvolvimento africano.


O segundo ponto foi exaustivamente tratado pe­la lite­ratura europeia de modo que apenas ligeiras referências lhe serão feitas; os outros serão sujeitos a exame mais apu­rado.


O continente africano revela plenamente os efeitos da lei do desenvolvimento desigual das sociedades. Há diferenças marcantes entre o Império Etíope e os caçadores pigmeus da floresta do Congo, ou entre os impérios do Sudão Ocidental e os caçadores-coletores do deserto do Kalahari. Há, além dis­so, contrastes marcantes dentro de cada região geográfica. O império Etíope incluía os doutos senhores feudais Amharic, simples Kaffa, agricultores e pastores Galla. Nos im­périos do Sudão Ocidental, sofisticados, educados burgueses Mandin­gas, pequenas comunidades de pescadores Bozo e pas­tores nômades fulas. Mesmo entre clãs e etnias, absolutamente se­melhantes à primeira vista, havia diferenças consideráveis. Contudo era possível distinguir o que era unicamente “afri­cano” e o que era universal no sentido de característico de todas as sociedades humanas em um determinado grau de desenvolvimento. É preciso reconhecer também o processo dialético de passagem das formas mais baixas, às mais aper­feiçoadas de organização social; e, ao apreciar formações so­ciais mais avançados poderemos medir (avaliar) as potencia­lidades do continente como um todo e tentar adivinhar a di­reção do processo de mudança.


Neste momento, em que se levanta o problema do pas­sado pró-europeu de África, vários indivíduos se empenham, pelas mais díspares razões, a investigar sobre a existência de civilizações africanas. A alguns move o móbil de estabelecer comparações com civilizações europeias. Não é este o lugar adequado para se apreciar do mérito das chamadas civiliza­ções europeias. Bastará referir de passagem o comporta­men­to da Europa capitalista, da escravidão ao colonialismo, fas­cismo e guerras de genocídio na Ásia e na África. Esses atos de pura barbárie fazem duvidar da justeza do emprego da pa­lavra “civilização” para descrever a Europa Ocidental e a Amé­rica do Norte. No tocante a África antiga, será preferível falar-se de culturas em vez de civilizações.


Cultura é o modo global de vida. Engloba o que o povo come e o que veste; a sua maneira de andar e o seu modo de falar, a sua maneira de encarar a morte e sua satisfação face a um nascimento. É óbvio que, se encararmos pormenoriza­da­mente o todo social, se encontrarão fatores peculiares em qualquer formação social. Em contrapartida, a África ao Sul do Saara constitui uma extensa comunidade onde as seme­lhan­ças são facilmente identificáveis. Por exemplo, a música e a dança desempenham papéis-chave na sociedade africana “não contaminada”. Marcam a sua presença nos nascimen­tos, no luto, na iniciação, no casamento e, também, em mo­mentos de divertimento. África é o continente dos tambores e da percussão. Os povos africanos atingiram o máximo do a­perfeiçoamento nesse particular.


Por causa da colonização e do imperialismo cultural (serão discutidos mais tarde), europeus e os próprios africa­nos descuraram a análise dos aspectos específicos da cultura africana. Esses aspectos contêm um valor próprio que não pode ser eclipsado pela cultura europeia no período compa­rá­vel antes do século XV e nos séculos subsequentes. Não po­dem ser eclipsados, pois se trata de fenômenos não com­pa­ráveis. Quem neste mundo é competente para julgar se uma valsa austríaca é melhor do que um Ngoma Makonde? Outros sim, mesmo naquelas esferas culturais que podem ser mais facilmente comparáveis, por exemplo as “belas artes”, é sa­bido que as realizações africanas do período pré-colonial se erguem como uma das mais belas contribuições para o pa­tri­mônio artístico humano. A arte egípcia, sudanesa, etíope, era conhecida desde os tempos mais remotos. A do resto de África tem vindo a ser paulatinamente descoberta e redes­co­berta por europeus e africanos contemporâneos. É conhecido o ve­redito dos historiadores de arte sobre os bronzes de Ife e Be­nin. Visto datarem dos séculos XIV e XV tem importância es­pecial em qualquer discussão do desenvolvimento africano de antes das relações com a Europa. Não podem ser con­sidera­das manifestações de caráter excepcional, exceto no que se re­fere ao material sobre o qual se realizaram as es­culturas. A mesma perícia e sensibilidade foram aplicadas em esculturas e outras obras de arte em materiais facilmente perecíveis, es­pecialmente a madeira.


A dança e a arte africanas estiveram sempre de uma maneira ou outra ligadas indissoluvelmente a uma visão re­li­giosa da vida. Como é bem sabido, práticas religiosas tra­dici­onais existem em grande variedade em África e deve também recordar-se que o Cristianismo e o Islamismo encontraram ambos aceitação no continente desde os seus primeiros dias. Os elementos básicos das religiões africanas desempenharam um papel importante na individualização das culturas africa­nas no contexto dos outros continentes, mas para nosso es­tudo interessa investigar o que religiões africanas têm em co­mum com as religiões não africanas de que maneira isso pode utilizar-se como índice do nível de desenvolvimento em África anterior ao impacto europeu no século XV.


A religião é um aspecto da superestrutura da sociedade que é determinado em última instância pelo grau de controle e compreensão do mundo material. Contudo, quando o ho­mem pensa em termos religiosos, toma como ponto de par­tida o irreal e não a realidade material, que ultrapassa o seu entendimento. Por tal razão, desenvolve-se uma forma meta­fí­sica, não científica, de pensar o mundo que entra em conflito com a visão científica materialista e com o próprio desenvol­vimento social. As antigas religiões africanas não eram nem melhores nem piores que outras religiões do seu tempo. Po­rém, no final do feudalismo, europeus começaram a pôr em causa a hegemonia da religião sobre vários setores da vida humana. A política, a geografia, a medicina etc., libertam-se das cadeias religiosas. Para libertar esses assuntos do domí­nio religioso argumentou-se que a religião tinha os seus pró­prios domínios e as coisas do mundo tinham a sua própria esfera, a secular. A secularização da vida acelerou o desenvol­vimento do capitalismo e, em uma segunda fase, do socia­lismo. Em contrapartida, a religião continuava a avassalar a vida africana de antes da vinda dos brancos, da mesma ma­neira que dominava outras sociedades pré-feudais, como os Maoris, na Austrália, os Afegãos do Afeganistão ou os Vikings na Escandinávia.


Como aspecto da superestrutura, a religião pode de­sempenhar papel simultaneamente positivo e negativo. Em determinados momentos históricos da África Antiga, a reli­gião contribuiu para mobilizar largas camadas de massas que constituíram os Estados. Em outras ocasiões, a religião for­neceu conceitos úteis na luta por uma maior justiça social. Os seus aspectos negativos residem, sobretudo, na tendência de permanecer dogmaticamente imutável por períodos extrema­mente longos, principalmente quando as técnicas de produ­ção evoluem muito vagarosamente. Esse foi o caso das soci­edades africanas e de todas as outras sociedades pré-capita­listas. Concomitantemente as crenças religiosas reagem so­bre o modo de produção atrasando ainda mais seu progresso em certos aspectos. Por exemplo, acreditar na oração, na in­tervenção de antepassados ou deuses quaisquer podem ser facilmente substitutos de inovações destinadas a controlar o impacto do tempo e do meio ambiente.


As mesmas relações bifacetadas existem no tocante à técnica de produção e aos padrões sociais que vão tomando forma no processo de trabalho. Antes do século XV as relações sociais dominantes em África eram a família e parentesco as­sociados ao Comunitarismo. A posição de cada membro den­tro da sociedade era definida em relação à sua mãe ou ao seu pai. Em algumas sociedades relevavam os laços maternos, noutros a linguagem paterna. Esses pormenores tinham uma importância fundamental no dia a dia de um membro da so­ciedade africana, pois a terra (o principal meio de produção) pertencia a grupos como a família e o clã – o chefe dos quais era responsável pela terra, em nome de todos os parentes, in­cluindo os anteriores e os nascituros. Teoricamente essas re­lações queriam significar que os residentes de dada comuni­dade eram todos descendentes diretos da pessoa que primei­ro ocupou a terra.


Os novos grupos que chegavam pretendiam também, muitas vezes, ter antepassados que habitaram essa terra ou asseguravam que as famílias mais antigas do grupo continu­avam a realizar cerimônias relacionadas com a terra e as águas da região.


Semelhantemente, o trabalho era, na maior parte das vezes, recrutado em base familiar. Uma unidade familiar cul­tivava a sua própria porção de terra, mas também participava em atividades agrícolas conjuntas com os outros membros da família extensa ou clã. A comunidade familiar e a aldeia orga­nizavam também caçadas e pescarias anuais. Nas sociedades matriarcais, como a do Bemba (Zâmbia), o noivo passava al­guns anos trabalhando para o pai da noiva. E muitos jovens que se casavam com irmãs da mesma casa organizavam-se muitas vezes em equipes de trabalho para se ajudarem.

No Daomé, o jovem pretendente não ia viver junto da família da noiva, mas em seu dokpwe, seu grupo de trabalho, destacava um filho para contribuir no desempenho de certas tarefas para o pai da esposa. Em ambos os casos o direito de adquirir trabalho por parte dos sogros e o correlativo dever de o fornecer por parte do genro baseavam-se em laços fami­liares. Isto contrasta flagrantemente com o sistema capita­lista, em que o dinheiro compra a força de trabalho ou com o feudalismo, onde o trabalho é fornecido pelo servo da gleba para que possa desfrutar de uma parte da terra que pertence ao senhor feudal.


A colheita, sendo produzida por trabalho familiar em terra que era propriedade da família, era distribuída em base familiar. Se o fruto do trabalho de um homem era destruído por uma calamidade inesperada, os seus parentes da mesma comunidade o auxiliavam. Se a desgraça atingia a comuni­dade inteira, seus membros iam viver com familiares em outra área onde a comida não escasseava. No país do Akan (atual Gana), o sistema de clã era tão bem-organizado que um ho­mem Brong podia visitar os Fante, a muitas centenas de mi­lhas de distância e receber alimentação e alojamento de ele­mentos completamente desconhecidos, mas que pertenciam ao mesmo clã.


Abundam exemplos que podem provar a dominância dos laços familiares na fase comunal do desenvolvimento a­fricano. Esses laços determinavam os dois principais fatores de produção – terra e trabalho – assim como o sistema de distribuição dos bens. Os antropólogos europeus que se de­bruçaram sobre as sociedades africanas, fizeram-no, na mai­oria, com perspectivas viciadas por preconceitos racistas, mas as suas pesquisas mesmo assim podem fornecer fatos abun­dantes para uma abordagem da evolução da família-lar à fa­mília extensa – incluindo membros que passaram a pertencer a ela por associação em vez de nascimento ou casamento – e às linhagens e clãs que estenderam os aços e alianças às mais diversas regiões. Podem encontrar-se instituições similares a essas entre os Gauleses da França do século XI e entre os Viet da Indochina da mesma data; e, ressalvando diferenças de pormenor, virtualmente por todo o mundo, em um ou outro momento histórico – pois que a comuna primitiva foi uma fa­se pela qual passaram todas as sociedades humanas.

Nas sociedades africanas dos tempos primitivos o in­divíduo, em cada fase da sua vida, tinha uma série de deveres e obrigações para com os outros membros da sociedade e um leque de direitos: ou seja, coisas que ele ou ela podiam espe­rar ou pedir dos outros indivíduos. A idade era o fator deter­minante na extensão dos direitos e das obrigações. Os mem­bros mais velhos da sociedade eram mais respeitados e des­frutavam de maior autoridade. O respeito pelos mais velhos refletia-se na existência de grupos de idade e direitos de idade na maioria das sociedades africanas. A circuncisão significava maturidade e iniciação à vida social. A partir desse momento o homem e a mulher eram colocados nos seus próprios gru­pos de idade. Existiam usualmente três grupos de idade que correspondiam à juventude, à meia idade e à velhice.


Na maior parte da Europa, a derrocada do comuna­lis­mo deu lugar a um alargamento da escravidão como nova for­ma de mobilização do trabalho. A escravidão prolon­gou-se na idade média europeia servindo a Guerra Santa en­tre cristãos e mouros como desculpa para a escravização do trabalho. A escravidão deu o seu lugar à servidão em que o tra­balhador, associado à gleba, não podia ser vendido ou transferido. A transição do Escravismo ao Feudalismo durou muitos anos e assim era comum encontrar escra­vos nas sociedades feudais. Um número considerável de es­cravos existiu em vastas re­gi­ões da China, Burma e Índia à medida que o Comunitarismo era ultrapassado, mas ne­nhuma época histórica houve em que a escravidão tenha sido o modo de produção dominante na Ásia. Nas sociedades africanas existiam alguns escravos, mas não existiu o Escravismo. A maior quantidade de escra­vos encontrava-se no Norte da África ou em outras sociedades de origem muçul­mana, pois nestas um homem e sua família podiam conservar o estatuto de escravos por várias gerações, apesar de o Feudalismo ser o modo dominante. Por todo o continente afri­cano as formações sociais entendiam que os estrangeiros lhes pertenciam quando prisioneiros de guerra. Em uma primeira fase tais prisioneiros tinham estatuto muito desvanta­joso, comparável ao dos escravos, mas de­pres­sa tais cativos e seus descendentes se tornavam membros de pleno di­reito da sociedade, pois não havia razão nenhuma para a ex­ploração perpétua do homem pelo homem em sistema que não feudal nem capitalista.


Marxistas e não marxistas, por motivos distintos, cha­maram a atenção para o fato de os modos de produção que existiram na Europa não terem correspondentes históricos em África. Em África, a derrocada do comunitarismo não con­duziu por evolução interna à escravidão. O próprio Marx re­conheceu que os estágios do desenvolvimento asiático pro­duziram formas sociais que não podiam ser facilmente enqua­dradas pelos moldes europeus. A isso chamou “modo de pro­dução asiático”. Seguindo essas pegadas, grande número de marxistas discutiu recentemente se a África se enquadraria nas categorias asiáticas ou se teria ela própria o seu próprio modo de produção africano. As implicações dos argumentos são muito importantes, pois partem da análise das condições concretas das sociedades africanas e não de preconceitos im­portados da Europa. Mas estudiosos parecem especial­mente interessados em determinar um conceito único que abranja o variado leque de formações sociais que existiram em África desde o século V depois de Cristo até à chegada do colonia­lismo. A doutrina dominante defende que a maioria das soci­e­dades africanas de antes de 1.500 viviam em um es­tado de transição entra a prática da agricultura (bem como a pesca e caça) em comunidades familiares e a prática das mes­mas ati­vidades dentro das estruturas sociais comparáveis às do feu­dalismo.


Em certo sentido, a História não passa da evolução de um estágio a outro, mas certas situações históricas têm evi­denciado no seu evoluir características mais facilmente qua­lificáveis que outras. Assim, não havia classes na comuna pri­mitiva; o acesso à terra era igual a todos e havia igualdade na distribuição – a um nível muito baixo de tecnologia e de pro­dução. O feudalismo introduziu grande desigualdade na dis­tribuição da terra e do produto social. A classe dos senhores feudais e a sua burocracia controlavam o poder estatal e ser­viam-se dele como um instrumento de repressão sobre os camponeses, servos, escravos e mesmo marinheiros e comer­ciantes. A passagem do comunalismo ao feudalismo durou muitos séculos nos vários continentes e, em certos casos, a travagem da evolução interna nunca permitiu o amadureci­mento do processo. Não resta a mínima dúvida que em África o número de sociedades em que vigorou o sistema Feudal foi muito reduzido. No processo de formação da sociedade feu­dal, verificou-se a coexistência de elementos feudais com ele­mentos comunitários com algumas particularidades devidas à especificidade das condições africanas. A transição caracte­rizava-se também pela variedade de formações sociais: havia agricultores e pastores, pescadores e comerciantes, caçado­res e nômades. Todas se encaminhavam progressivamente para um outro sistema de relações para com a terra, para com os outros e para com o Estado, devido à expansão das forças produtivas e o alargamento das malhas da distribuição. Nas sociedades feudais e os das classes camponesas e, mais tarde, os dos senhores feudais e os das classes mercantis. No capi­talismo europeu a contradição é a que opõe os interesses do proletariado aos da burguesia. Essas hostis relações de classe constituíam a força motriz das respectivas sociedades. Nas sociedades comunitárias africanas, as diferenciações sociais mais importantes eram as dos grupos de idade e as que opu­nham os membros ordinários e os líderes religiosos, como os fazedores de chuva. Contudo, tais relações de exploração não eram antagônicas. O conceito de classe como força mo­tora de desenvolvimento social não se enraizara ainda; e nas so­cie­da­des comunitárias, torna-se absolutamente fundamen­tal anali­sar as forças determinantes da produção para com­pre­ender o processo de mudança.

Usando uma certa metodologia e um certo tipo de con­ceitos torna-se possível definir o porquê do relaxamento das relações familiares à medida que aumentava a produção so­cial. Pode considerar-se, por exemplo, a preponderância dos grupos etários como uma resposta à necessidade de maior solidariedade social, visto que desfalcava as unidades famili­ares solicitando-lhes os seus membros. Da mesma forma, a necessidade de uma maior eficiência levou ao desenvolvi­men­to dos grupos de trabalho comunitários. Os dokpwe acima men­cionados, grupos de trabalho do Daomé, desempenha­vam um papel importantíssimo ao serviço da comunidade in­terna na realização das tarefas mais pesadas, tais como a abertura de clareiras, a construção de habitações etc. Com a oferta de al­gum alimento e bebida, ou vinho de palma, podia mobilizar-se um grupo de trabalho em qualquer comunidade africana em um espaço de tempo relativamente curto, inclu­indo as dos Berberes, peles claras do norte da África.


Embora a organização do trabalho ajude a produzir mais, é evidente que a principal mudança nas forças produti­vas é a provocada pela introdução de novas técnicas, usando-se a palavra no seu sentido mais amplo, o que inclui não só ferramentas e métodos de intervir sobre o meio ambiente co­mo também a introdução de novas plantas e espécies ani­mais. Um requisito prévio a qualquer atuação sobre o meio ambi­ente é o seu perfeito conhecimento. Nos meados do sé­culo XV os africanos de todo o continente haviam conseguido uma ra­zoável compreensão da sua ecologia – os solos, o clima, os animais e as plantas, nas suas múltiplas interrela­ções. A a­pli­cação prática desse conhecimento verificava-se no confi­na­mento dos animais, na construção de casas, na pro­dução de utensílios, na descoberta de técnicas médicas e, acima de tudo, no delinear de esquemas agrícolas.

A agricultura era a atividade dominante no continente nos séculos que precederam o contato como os europeus. Em todas as comunidades agrícolas sedentárias o povo observava as especificidades do seu ambiente e tentava dali deduzir as técnicas apropriadas para o seu domínio em uma perspectiva racional. Em algumas regiões seguiam-se métodos muito a­van­ça­dos como a construção de terraços, rotação de cultu­ras, estrumação, drenagem de pântanos. A mais importante ino­vação tecnológica no desenvolvimento da agricultura afri­cana foi a introdução de instrumentos de ferro, nomeada­mente o machado e a sacola, que substituíram os utensílios tradicio­nais de pedra e madeira. Foi com base na utilização desses utensílios que novas técnicas foram sendo progressi­vamente introduzidas não só na agricultura, mas também em outros ramos da atividade econômica.


A introdução do ferro, o alargamento do cultivo dos cereais e a cerâmica são fenômenos estreitamente interde­pendentes. Na maior parte do continente africano essas ino­vações tiveram lugar ainda antes do início da era cristã. Com o decorrer dos séculos o ritmo de mudanças mostrou-se bas­tante acelerado. Selecionaram-se o trigo e o arroz a partir de plantas selvagens e ampliou-se o cultivo do inhame a partir de raízes selvagens previamente selecionadas. A maioria das so­ciedades africanas passou a cultivar as belas artes a partir da matéria-prima que lhes estava particularmente disponível. Mes­mo um sistema de cultivo mais vulgarizado, que consistia na escavação profunda do solo, não era tão infantil como su­puseram os primeiros colonos europeus. Essa forma tão sim­ples de cultivo baseava-se na avaliação correta do potencial do solo que não era tão grande como aparenta pela sua cer­rada vegetação. E quando os colonialistas começaram a utili­zar o sistema de se cavar unicamente a flor do solo os resul­tados foram desastrosos.


O que acima se disse mostra que o estrangeiro que chegue a uma determinada região, ainda que seja detentor de técnica mais apurada, nem sempre atuará tão eficazmente co­mo aqueles que se familiarizaram com o meio durante mui­tos séculos. E o recém-chegado fará figura tanto mais ridícula se for tão arrogante para pensar que nada tem a aprender dos ‘nativos’. Não se quis sugerir, porém, que a antiga agricultura africana era superior à dos outros continentes. Muito pelo contrário, os níveis africanos de economia agrícola e social não eram tão elevados quanto os praticados na maior parte da Ásia e da Europa. O ponto fraco de África parece ter sido a ausência de interesse profissional na procura de maior co­nhecimento científico e na produção de utensílios que aligei­rassem o peso do trabalho e que transformassem ambientes hostis em áreas salubres para o trabalho humano. No tocante à economia europeia, esse profissionalismo foi assumido pe­las classes mais interessadas na agricultura – senhores feu­dais, em uma primeira fase, agricultores capitalistas depois.


Destacou-se anteriormente que o desenvolvimento era determinado pelas relações sociais de produção: ou seja, as relações que se desenvolvem no processo de produção da ri­queza. Quando a propriedade da terra é exclusiva de uns e a maioria nela trabalha, é esta própria situação in­justa, em um estágio particular do desenvolvimento histórico que obriga os poucos a concentrar e a melhorar suas terras. Contrariamen­te, o comunalismo assegurava a cada africano a terra sufici­ente para a satisfação das suas necessi­dades pelo simples fato de ser membro efetivo da comuni­dade. Por tal motivo, e por­que a terra era relativamente abundante, poucos estímulos e incentivos sociais havia para inovações técnicas que incre­mentassem a produtividade.


Na Ásia, onde a propriedade comunitária era domi­nan­te em vastas regiões, houve enormes progressos em al­guns aspectos do trabalho agrícola, especialmente nas redes de ir­rigação. Isso deve-se ao fato do Estado, na Índia, China, Cei­lão e outras regiões, intervir e chamar a si em larga escala os trabalhos hidráulicos e de irrigação. Isso se aplica também ao Norte de África que seguiu, em muitos aspectos, um padrão de desenvolvimento parecido com o da Ásia. O sistema afri­cano de propriedade do solo era mais parecido com o da Ásia que com o da Europa, mas os Estados africanos não desem­penharam nunca o papel de impulsionadores e supervisores do desenvolvimento agrícola. A baixa densidade populacional e a correlativamente fraca concentração dos povoamentos talvez fossem uma das razões. Outra, talvez, a concentração exclusiva do Estado na comercialização de produtos não agrí­colas, em detrimento das agrícolas. Certamente, quando as formações sociais africanas desenvolveram relações comerci­ais com sociedades de outros continentes, a agricultura foi completamente descurada.


No tocante à manufatura africana de antes da coloni­zação, é essencial reconhecer que muitas realizações foram subestimadas. As manufaturas africanas foram tratadas des­denhosamente ou menosprezadas pelos escritores europeus porque a moderna concepção do Mundo só admite fábricas e máquinas. Contudo, manufatura, significa, traduzido à letra, algo feito com as próprias mãos e, nesse sentido, a manufa­tura africana registrou um avanço considerável. Muitas soci­edades africanas satisfaziam as suas necessidades de utensí­lios com uma vasta gama de artigos de uso doméstico, ferra­mentas agrícolas e armas. Uma das formas de apreciar o nível de desenvolvimento da África de há cinco séculos, é apreciar a qualidade dos seus produtos. Adiantam-se alguns exemplos de artigos que foram conhecidos para além das fronteiras afri­canas. Os europeus familiarizaram-se, através do Norte de África, com um tipo superior de tecido vermelho denominado “marroquino”. Na realidade era tecido e tinto por especialista Hausa e Mandinga do Norte da Nigéria e do Mali. Foram re­velados muitos elementos importantes quando se estabelece­ram contatos diretos entre europeus e africanos nas costas Este e Oeste da África. Logo que os portugueses regressaram do velho reino do Congo divulgaram os soberbos tecidos lo­cais de casca de árvore e fibra de palmeira – com uma fineza comparável ao veludo. Os Baganda eram também tecelões ex­perimentados. E a África tinha ainda algo melhor por oferecer: as suas roupas de algodão que eram amplamente manufatu­radas antes da chegada dos europeus. Mesmo agora, no pre­sente século, os tecidos de algodão da Guiné são mais resis­tentes que os de Manchester. Quando os produtos europeus invadiram a África, os africanos estavam em posição de fazer comparações entre seus próprios bens de consumo e os im­portados. No Katanga e na Zâmbia continuou a ser prefe­rido o cobre local em detrimento o importado, o mesmo acon­te­cendo com o ferro da Serra Leoa.


No plano quantitativo, a manufatura africana não pode competir. Isso significa, por outras palavras, que era pequena a produção do algodão, que era reduzida a fabricação de ferro, a cerâmica era moldada manualmente, pois desconhe­cia-se a roda etc. Mesmo assim, uma razoável evolução to­mava forma nesse contexto. Sob a comuna primitiva, cada fa­mília satisfazia suas próprias necessidades, confeccio­nando as suas próprias roupas, potes, armas etc. Isso foi um fato em todos os continentes. Contudo, a expansão econô­mica exigia especialização do trabalho e a concentração da indústria – as pessoas passavam a satisfazer as suas necessi­dades pela troca. Essa tendência era manifesta nas principais manufatu­ras africanas, especialmente na fiação. A fibra de al­godão ti­nha de ser separada das sementes, depois cardada e enrolada em fios antes de ser tecida. Seguidamente o tecido ia a tingir e o próprio fabrico da tinta era, em si, um processo bastante complexo. Houve tempo em que todas essas etapas estavam a cargo de uma única família ou de uma única mulher no seio de uma família ou de uma única mulher no seio de uma famí­lia, como era uso na terra Ioruba. Mas o desenvolvi­mento econômico refletiu-se na separação da tintura do fa­brico de roupas e na separação da fiação da tecelagem. Cada separa­ção significava maior especialização e mudanças quan­titati­vas e qualitativas no produto.


A indústria europeia tem sido estudada exaustiva­men­te e reconhece-se de modo geral que, em comple­mento da nova maquinaria, o fator maior decisivo para seu crescimento foi a mudança da produção doméstica para o seu crescimento foi a mudança da produção fabril, funcionando o sistema cor­porativo como um estágio intermédio. A corpora­ção era uma associação de especialistas que transmitiam a sua técnica a aprendizes e trabalhavam em oficinas especial­mente criadas para o efeito. Em Tumbuctu existiram guildas de tecelões, en­quanto em Benin corporações foram restri­tas a casta que con­trolava as famosas indústrias de latão e de bronze. Em Nupe (atual Norte da Nigéria) indústrias de vidro e de colares fun­cionavam em bases corporativas. Cada corporação tinha um oficial e um mestre. O mestre tra­tava dos contratos, financi­ava a corporação e dispunha do produto. Os seus parentes e os estrangeiros podiam entrar na oficina e aprender as mais variadas tarefas especializadas da indústria do vidro. Isso in­centivava por si só a especialização e divisão do trabalho.


As economias tradicionais africanas têm sido conheci­das como economias de subsistência. Não poucas vezes, pe­quenas comunidades praticavam a agricultura, pescavam, ca­çavam etc., resolviam isoladamente os seus próprios proble­mas, mantendo relações mínimas com o resto do continente. Mesmo assim, a grande maioria das comunidades africanas satisfazia pelo menos uma parte das suas necessidades recor­rendo-se à troca. África é o continente de inumeras ro­tas co­merciais. Algumas percorriam distâncias enormes, como por exemplo as rotas que atravessavam o Saara ou as que deman­davam o cobre do Katanga. Mas o comércio não era praticado na sua maioria entre comunidades distantes, mas entre soci­edades vizinhas. Esse comércio era sempre uma função da produção. As várias comunidades dispunham de excedentes de determinados bens que eram trocados por outros bens que lhes escasseavam. Assim, a indústria do sal era estimulada em um sítio, e a do ferro em outro. Nas praias, nas margens dos lagos ou dos rios, o peixe seco era acumu­lado, enquanto fru­tos e cereais se cultivam com abundância em outras regiões, providenciando-se assim as bases de troca. O comércio, tão facilmente identificável em todo o con­tinente no período que medeia entre os séculos X a XV é um índice excelente da ex­pansão econômica e das outras formas de desenvolvimento que sempre acompanham o incremento do domínio do ho­mem sobre o meio ambiente.


Um dos corolários da expansão comercial é a substi­tuição progressiva da permuta simples de gêneros por algu­mas formas de troca monetária. A simples permuta era meio adequado para um reduzido volume comercial em que se mo­vimentava reduzido volume comercial em que se movimen­tava reduzido volume de bens. Contudo, à medida em que o comércio se tornava progressivamente mais complexo, bens começavam a ser utilizados como medidas do valor de outros bens. Esses passaram a ser conservados como forma de ri­queza que se poderia facilmente trocar por outros produtos quando houvesse necessidade. Por exemplo, em África, o sal, tecidos, machados de ferro, conchas coloridas, foram formas populares de moeda – além do outro e do cobre, utilizados mais raramente, e essencialmente restritos à média de bens de grande valor. Em alguns lugares, nomeadamente no Norte de África, na Etiópia e no Congo, o sistema monetá­rio atingiu grande sofisticação, demonstrando que a econo­mia ultrapas­sara plenamente a fase de troca simples e de sub­sistência.

Há várias outras alterações, de natureza sociopolítica, que acompanham a expansão das forças produtivas. Existe na realidade uma interdependência estreita entre as práticas a­grí­colas, a indústria, o comércio, a moeda e as estruturas po­líticas. As regiões mais desenvolvidas da África foram aque­las em que houve convergência de todos os elementos e os dois indicadores sociopolíticos mais salientes do desenvolvi­mento foram o incremento da estratificação e consolidação das clas­ses sociais.


Os poderes da família e o respeito pelos mais velhos foram-se deteriorando progressivamente no decorrer dos sé­culos que precederam a chegada dos europeus nas suas ca­ravelas. As inovações tecnológicas e a divisão do trabalho tor­navam inevitáveis esses fatos. A introdução do ferro, por e­xem­plo, transferiu o poder econômico e militar aqueles que podiam antes o produzir ou adquirir. Instrumentos mais per­feitos possibilitavam maior produção de alimentos e au­mento demográfico, mas a progressão deste último tendia a ultra­passar as provisões de bens materiais e as potencialida­des de riqueza que eram abertas com a introdução do ferro, foram exploradas por uma minoria em seu exclusivo benefí­cio. Es­pecialistas na produção do ferro, tecelagem, cerâ­mica, fiação, extração do sal etc., tendiam a restringir mais a trans­missão da sua técnica a grupos esclerosados conhecidos por castas. Isso garantia que a divisão do trabalho recaísse em seu pró­prio benefício, pois a sua posição era pri­vilegiada e estraté­gica. Os produtores do ferro eram particu­larmente favoreci­dos em certas sociedades africanas onde muitas vezes passa­ram a ser o grupo dominante ou a fazer parte dos escalões mais elevados da hierarquia social. A es­pecialização do traba­lho abrangia também as esperarão ma­teriais, traduzindo-se no aparecimento de trovadores profis­sionais e contadores de histórias. Estes também gozavam de privilégios especiais, como, por exemplo, o poder de criticar livremente sem recear represálias. Em certas circunstâncias os artesãos eram con­duzidos ao mais baixo status social. Mas isso era raro e, de qualquer modo, não está em contradição com o princípio de que a tendência geral da comuna primitiva era dar lugar a uma estratificação social cada vez maior.


A estratificação social fornecia a base para a ascensão das classes e a radicalização dos antagonismos sociais. Esses fatos constituem em certa medida o evoluir lógico das dife­renças sociais não antagônicas das sociedades comunitárias. A assembleia dos velhos, por exemplo, podia utilizar o seu po­der de controle sobre a locação das terras, os dotes das noivas e outras atividades tradicionais para se estabelecer em uma situação econômica privilegiada. Sociedades secretas come­çaram a surgir na região da atual Libéria, Guiné e Serra Leoa, as quais garantiam que o poder, o conhecimento e a riqueza se concentrassem nas mãos dos mais velhos e, tendencial­men­te, nas dos mais velhos de certas linhagens.


A contradição entre os mais velhos e os mais novos não é das que provocam confrontações violentas. Mas os mais novos ressentiram-se da dependência face aos mais ve­lhos, especialmente se estes se imiscuírem em assuntos pes­soais como a procura de esposas. Em caso de desentendi­mento eles podiam abandonar suas comunidades e esta­bele­cerem-se por si sós ou então desafiar os maiores. Em qual­quer dos casos, o essencial era que certos indivíduos e famí­lias usufruíam de situações mais privilegiadas que outros e se auto elegiam chefes permanentes. Então, a idade perdia o seu caráter fundamental quando um jovem pudesse suceder a seu pai, à medida em que se estabeleciam noções de sangue e li­nhagem real.

Nos períodos de transição, em que as sociedades afri­canas conservavam ainda características nitidamente comu­nitárias, aceitava-se como princípio que certas famílias, clãs ou linhagens, tinham o direito de governar e outras não. Esse fato verificou-se não só entre os povos agricultores, mas tam­bém entre os povos pastores. A distribuição desigual dos bens móveis processava-se muito mais rapidamente que a da terra; assim tornavam-se social e politicamente dominantes aque­las famílias que possuíssem os maiores rebanhos.


Um aspecto muito importante do processo de estrati­ficação social é o que resulta do contato entre duas formações sociais. Povos pescadores mantinham relações com agricul­tores e, mais tarde, com pastores. Existiam, além disso, ou­tras formações sociais, como por exemplo os bandos de caçadores e coletores que não tinham ainda não tiveram uma fase co­munal. Na maior parte das vezes eram pacíficas tais relações. Em muitas regiões da África se verificou a chamada simbiose entre grupos que, apesar de viverem de modo dife­rente, tro­cavam produtos e coexistiam com proveito mú­tuo. Surgiam, contudo, conflitos graves. E quando um grupo se impunha pela força a um outro, o resultado era invariavel­mente um pro­cesso de diferenciação social, conquistadores em cima e derrotados na base.


Os conflitos mais frequentes entre as diferentes forma­ções sociais verificavam-se entre os povos pastores e os agri­cultores. Estes dominaram em alguns momentos históricos, como no século XVII e XIX, na África Ocidental, quando os agricultores Mandinga e Hausa foram os senhores dos pasto­res Fula. Situação inversa verifica-se no chamado “Chifre da África” e na maior parte da África Ocidental. Outro tipo de con­flitos foram os surgidos entre os nômades e agricultores em Angola e no Saara, quando os Mouros e Tuaregs exigiam tributos e escravizavam outros povos sedentários e pacíficos. Os resultados em todos e cada um desses casos era a institu­cio­nalização do controle de uma minoria sobre a terra e (onde relevantes) sobre rebanhos, minas e longas estradas comer­ciais. Significava mais que o grupo minoritário podia exigir trabalho dos seus súditos – não mais na base de relações fa­miliares, mas exclusivamente porque se instituíram relações de domi­nação e subordinação.


Nas sociedades verdadeiramente comunitárias, a au­toridade baseava-se na religião e laços familiares. Os mem­bros mais velhos compartilhavam do trabalho do grupo e re­cebiam mais ou menos a mesma fração do produto global. Ninguém morria à fome enquanto outros se empanturravam e desperdiçavam os excedentes. Contudo, à medida que a e­volução das forças internas das sociedades africanas obri­gou-as a expandir-se pela conquista e pelo comércio, o pa­drão de vida das classes dominantes alterou-se notoriamente. Passa­ram a consumir a maior e a melhor porção do que a so­ciedade podia oferecer. Além disso apartavam-se progressiva­mente do processo produtivo: do trabalho agrícola, da caça, da pesca etc. As classes dominantes, e particularmente os reis, deti­nham ainda o poder de exigir o trabalho do homem co­mum, pa­ra a execução de tarefas em um número certo de dias por ano. A isso se chamou corveia, por causa do processo si­milar que era seguido na França feudal. Esse sistema dava lu­gar a uma maior exploração, mas, ao mesmo tempo, a um maior desenvolvimento das forças produtivas.


O fortalecimento do Estado acompanhava a par e pas­so todo o processo de estratificação social tal como foi acima delineado. As noções de realeza e povo não teriam ne­nhum significado, exceto se inseridas em um estado político com existência geográfica definida. É significativo que as grandes dinastias do Mundo tenham reinado em Estados feu­dais. Na Europa tornaram-se famosos os nomes de Tudors, Bourbons, Hohenzollern, Romanovs; o Japão teve os seus Kamakuros e Tokugawas; a China, os T’ang e os Ming; na Ín­dia, Guptas e Marathas; e assim por diante. Todas foram di­nastias feudais, existiram alguns séculos após o nascimento de Cristo e domi­naram nos seus respectivos países antes da propriedade feu­dal e as relações de classe se terem inteira­mente cristalizado. Isso significa que a transição para o feudalismo na Europa e na Ásia caracterizou-se pela existência de classes dominantes e do Estado como peças interdepen­dentes de um mesmo pro­cesso. A esse respeito a África não foi diferente.

Do ponto de vista político, o período de transição do comunitarismo ao feudalismo foi em África o da formação dos Estados. Na sua gênese (e isso durou séculos) o Estado era fraco e imaturo. Definiu fronteiras territoriais, mas dentro de­las os habitantes continuaram vivendo nas suas próprias co­munidades, mantendo raros ou nenhum contato com a classe dominante, a não ser no momento do pagamento anual dos impostos ou tributos. Quando um grupo recusava pagá-los, só então os primeiros Estados africanos mobilizavam a sua máquina repressiva: formavam um exército para exigir dos seus súditos o que consideravam ser os seus legítimos direi­tos. Os vários Estados adquiriam paulatinamente maior do­mínio sobre as suas várias comunidades de cidadãos. Exi­giam a corveia, recrutavam soldados, nomeavam cobradores de im­postos e administradores locais. As regiões africanas onde se quebraram laços comunais corresponderam àque­las de onde emergiram sofisticados Estados políticos. O apa­recimento do Estado é, em si mesmo, uma forma de desen­volvimento que ampliou a escala política africana e estendeu minúsculos a­grupamentos éticos em identidades maiores, na­ções em es­tado embrionário.


Em certa medida pode dizer-se que se atribuiu impor­tância exagerada ao surgimento dos Estados. Especialmente na Europa, onde o Estado nacional atingiu um estágio bas­tante avançado e os europeus tendiam a considerar a ausên­cia ou a presença de Estados bem-organizados como um ín­dice de “civilização”. Isso não é completamente correto, por­que existiram em África pequenas unidades políticas não es­tatais que, entretanto, alcançaram uma cultura material e não material relativamente avançada. Por exemplo, nem o povo Ibo do Nor­te da Nigéria, nem o Kikuyo do Quênia cons­tituí­ram governos centralizados sobre as suas sociedades tra­dici­onais. Mas ambos tiveram sofisticados sistemas políticos ba­seados nos clãs e (no caso dos Ibo) em oráculos religiosos e sociedades secretas. Ambos povos foram agricultores eficien­tes e pe­ritos no trabalho do ferro e os Ibo manufaturavam o latão e o bronze desde o século IX, se não ainda mais cedo.


Contudo, não obstante a ressalva anterior, há que ad­mitir que de uma maneira geral os maiores Estados de África dispunham de estruturas políticas mais eficazes e de maior capacidade para produzir alimentos, vestuário, extrair metais e outras riquezas. É fácil de inferir que essas sociedades clas­sicistas se tenham enveredado para a corrida ao luxo e outros artigos de prestígio. As classes dominantes prestavam-se a estimular a produção de manufaturas e de importá-las. Era a classe que mobilizava o trabalho suficiente para a produção de excedentes e, nesse intuito, encorajavam a especialização e a divisão do trabalho.


Os estudiosos costumam distinguir entre as várias for­mações sociais africanas as estatais “sem Estado”. A expres­são “sem Estado” tem sido utilizada muitas vezes descuidada ou mesmo abusivamente, mas ela quer designar aqueles po­vos que não dispuseram de máquina coercitiva de governo e de nenhum conceito de unidade política mais compreensiva que a família ou a aldeia. Acima de tudo, se não havia diferen­ciação de classes em uma dada sociedade, não podia haver Estado, porque o Estado é um instrumento criado por uma classe particular para exercer o seu domínio sobre os restan­tes membros da sociedade, em seu exclusivo benefício. Gene­ralizadamente, pode considerar-se as sociedades sem Estado como partes das mais velhas formas de organização política em África, enquanto os grandes. Estados representavam já uma evolução da comuna primitiva – algumas vezes atingindo o feudalismo.


Torna-se necessário sublinhar uma vez mais que uma análise das sociedades africanas de antes da chegada dos eu­ropeus revelará profundas desigualdades de desenvolvi­men­to. Encontraremos desde os bandos de caçadores nóma­das, ao Comunitarismo e ao Feudalismo, e muitas outras for­mas intermédias entre essas duas últimas. Dedicarei o resto deste capítulo a um resumo das características fundamentais de al­gumas das sociedades e Estados mais desenvolvidos da África nos últimos mil anos, ou sejam de antes de terem de­senvol­vido relações permanentes entre a África e a Europa.


As regiões consideradas, serão o Egito, a Etiópia, a Nú­bia, o Marrocos, o Sudão Ocidental, a zona entre lagos na Á­frica Oriental e o Zimbábue, Cada uma servirá de exemplo do que significava o desenvolvimento na África antiga e de qual era a direção do movimento histórico. Cada uma dessas soci­edades desempenhou, em maior ou menor medida, um papel condutor no continente, na medida em que influenciava as sociedades vizinhas, quer indiretamente quer absorvendo-as diretamente.


Por Walter Rodney

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