"Irã, irremediavelmente só"
- NOVACULTURA.info
- 1 de jul.
- 6 min de leitura

Talvez estejamos nos adiantando duas ou três jogadas, mas é muito difícil que, caso os ataques dos Estados Unidos ao Irã se intensifiquem, a nação persa consiga sobreviver tal como a conhecemos. A menos que aconteça algum milagre — um verdadeiro milagre — o que, como sabemos, não é do feitio do governo chinês, pouco afeito a superstições, e por isso, provavelmente, não acontecerá. Tampouco se pode esperar muito de Moscou por ora, que, depois de ter abandonado a Síria, dificilmente apostará no Irã. A Realpolitik tem maneiras estranhas de compreender lealdades acima dos interesses estratégicos.
Nesse contexto, Teerã está sozinha; para além das reivindicações populares, nenhum país da região se colocará ao seu lado. Por isso, agora mais do que nunca, o Irã está irremediavelmente só — exceto pelo denodado apoio dos houthis iemenitas, que lutarão até o fim, pois sabem bem que esse fim também será o deles.
Quanto tempo poderão resistir os cinco ou dez mil houthis, uma vez que os Estados Unidos se assentem na região, os aiatolás sejam derrotados e os sionistas, encorajados pelo redesenho eficaz e vantajoso da região, sintam-se mais autorizados do que nunca a decidir quem vive e quem morre?
Trump, que até horas antes dos ataques às instalações nucleares de Natanz, Isfahan e Fordow, havia afirmado que levaria duas semanas para decidir se atacaria, em dias em que o tempo voa, atacou poucas horas depois de ter dito o contrário.
Ainda que também não tenha sido uma grande surpresa para Teerã, de onde se diz que essas instalações já haviam sido desativadas com a devida antecedência, permitindo a transferência de muitos de seus equipamentos para outros locais, em prevenção aos ataques norte-americanos que, como sempre, acabam por acontecer.
Donald Trump cedeu um pouco, pressionado pelos apelos de Netanyahu e sua gangue, diante da oportunidade única nos quarenta e seis anos de vida da revolução que pôs em fuga o xá Reza Pahlavi e muitos dos saqueadores do país.
Desde então, com o retorno do aiatolá Khomeini a Teerã, o Irã se tornou um péssimo exemplo para o mundo islâmico, que, com exceção de Nasser, Gaddafi e o sírio Hafez al-Assad, pai de Bashar, permanecia adormecido entre o khat, os benefícios do petróleo, as orações e o Acordo Sykes-Picot de 1916.
Apesar das profundas diferenças ideológicas, o Irã tornou-se um foco de resistência contra os abusos do Ocidente na região, como é Cuba, do comandante Castro, para a América Latina. Por isso, ambas as nações foram, em seu tempo, bloqueadas, atacadas e constantemente ameaçadas.
Netanyahu ofereceu a Trump uma oportunidade única de acabar com o Irã atual de forma definitiva, sem que ninguém se oponha — nestes tempos em que os genocídios parecem cair tão bem. Caso o governo dos aiatolás seja derrubado — o que talvez seja inevitável —, Trump reafirmará seu plano de “Retorno à Ásia Oriental”, com o qual pretende conter a China politicamente, comercialmente e, se necessário, militarmente.
O Oriente Médio, livre da presença de um Irã revolucionário, voltaria a se tornar um campo de caça para as petroleiras norte-americanas, que obteriam ainda mais concessões das monarquias do Golfo, dispostas a negociar tudo, diante do velho ditado “quando vires as barbas do vizinho a arder”. Make America Great Again.
Resta a dúvida se a estratégia de Trump foi uma distração, embora ele obviamente soubesse da iminente decisão do regime sionista, que publicamente pedia a Netanyahu que aguardasse os resultados da cúpula com o Irã, em busca de um novo acordo nuclear.
Ainda que Israel tenha conseguido golpear duramente, a capacidade de resposta militar de Teerã, em especial sua força de mísseis, conseguiu vulnerar, como nunca antes, a “Cúpula de Ferro”.
Esse contexto fez com que o guru global da ultradireita, Steve Bannon, chamasse de “traição” a decisão de Netanyahu — tomada sem consenso com Washington — de iniciar a guerra com o Irã. Netanyahu sabia que não poderia vencer a guerra sozinho. Antes que tudo saísse do controle, os Estados Unidos, juntamente com o Reino Unido e a França, correram em seu auxílio. Enquanto isso, o êxodo em massa de cidadãos judeus para o Chipre e alguns pontos da Europa começava a lembrar demais Saigon em 1975 ou Cabul em 2021.
Trump continua convencido de que os três centímetros que salvaram sua vida no atentado de julho do ano passado ainda estão a seu favor. Por isso, acredita que a maioria dos norte-americanos o apoiará nessa guerra, que tem todas as condições para se transformar em um novo Afeganistão.
Enquanto isso, permanece no horizonte a possibilidade de o Irã bloquear o estreito de Ormuz, que liga o Golfo Pérsico ao Golfo de Áden e ao Mar Arábico, por onde passa anualmente 20% da produção mundial de petróleo e cerca de 30% da de gás. Somado aos ataques houthis no Mar Vermelho, que conecta Áden ao Canal de Suez pelo estreito de Bab el-Mandeb, forma-se uma pinça entre os dois estreitos que, se mantida sob pressão, pode pôr a Europa de joelhos e paralisar grande parte da economia mundial.
Como desintegrar o Irã
A poucos passos da queda do governo iraniano, resta ver o que pode acontecer no país. As variáveis são muitas: um golpe de Estado contra Ali Khamenei, líder supremo da nação, com a instauração de um governo mais amigável aos Estados Unidos e a Israel; ou que Washington decida instalar o herdeiro do xá, Mohammad Reza Pahlavi, que desde a morte do pai, em 1980, anda à procura de trabalho.
Ou ainda, que ocorra uma balcanização de fato, para a qual as condições já estão dadas. O Irã, com cerca de 90 milhões de habitantes — quase 80% xiitas —, conta com minorias significativas, como curdos, sunitas e balúchis, que ao longo de todo o processo da revolução islâmica mantiveram posições separatistas.
Estimulado por Israel, Arábia Saudita e os Estados Unidos, grupos como o Jaish al-Adl ou JAA (Exército da Justiça), balúchi-wahabita que opera principalmente na província de Sistão-Baluchistão, na fronteira com o Baluchistão paquistanês, têm servido como cabeça de ponte para os inimigos da revolução islâmica, realizando atentados e ataques que deixaram milhares de mortos. Anteriormente chamado de Movimento de Resistência Popular do Irã: Jundallah (Soldados de Deus), desde 2005 são financiados e assessorados por Washington e Tel Aviv.
O Jaish al-Adl, suspeito de manter contatos com o Daesh, foi o responsável pelo duplo atentado suicida que matou 84 pessoas na cidade de Kerman, no sudeste do país, em janeiro de 2024, durante as homenagens pelo quarto aniversário da morte do general Qasem Soleimani, perpetrado pela CIA no aeroporto da cidade de Bagdá.
A atividade terrorista balúchi no interior do Irã, próxima à província paquistanesa do Baluchistão, ainda que menos intensa que a de seus irmãos do Exército de Libertação do Baluchistão (BLA, na sigla em inglês) no país vizinho, tem conseguido desferir golpes duros sempre que teve oportunidade, como em fevereiro de 2019, quando um shahid (atacante suicida) se detonou nas proximidades de um ônibus da Guarda Revolucionária (IRGC), na rota Khash-Zahedan, perto da fronteira com o Paquistão, matando 27 guardas. Em dezembro de 2023, em Rask (província de Sistão-Baluchistão), ataques coordenados contra três delegacias mataram 11 policiais e feriram dezenas.
Em abril de 2024, uma nova onda de ataques coordenados contra quartéis da Guarda Revolucionária e duas delegacias deixou 28 mortos, dos quais 10 pertenciam às forças de segurança, nas cidades de Rask e Chabahar, no sul do Irã.
Outro grupo faccioso que pode atentar contra a integridade da nação persa é o Movimento Árabe de Libertação de Ahvaz (ASMLA, na sigla em inglês), articulado a partir da Arábia Saudita. Instalado na região do Cuzistão, no sudoeste do Irã, junto ao Golfo Pérsico, define-se como resistência contra a ocupação persa.
Em diversas ocasiões, atacou oleodutos e outras instalações petrolíferas. Em setembro de 2018, durante um desfile militar pelo Dia das Forças Armadas, na cidade de Ahvaz, um grupo de terroristas abriu fogo contra a formação militar, matando cerca de 30 soldados e civis e ferindo mais de 60.
Se o Irã for balcanizado e a província de Sistão-Baluchistão conseguir maior autonomia ou mesmo a independência, constituirá um risco imediato à integridade do Paquistão, já que as hoje muito ativas formações do BLA, com apoio da Índia, gerariam uma turbulência quase insustentável para Islamabad, abrindo a possibilidade de uma reconfiguração do território paquistanês, com consequências tão irremediáveis quanto as do próprio Irã.
Por Guadi Calvo, no Línea Internacional
NOTA DOS EDITORES: nem todas as posições expressas neste texto ou pelo autor condizem necessariamente e/ou integralmente com a linha política de nosso site ou da União Reconstrução Comunista.
Comments