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"Entre mitos e realidades: 120 anos da proclamação da República de Cuba"



Era 20 de maio de 1902 quando, no Palácio dos Capitães Gerais da antiga capital colonial cubana, os sargentos EJ Kelly e Frank Vondrak, juntamente com o tenente Mc Koy, baixaram a bandeira americana, símbolo da ocupação militar que se seguiu, resultado do Tratado de Paris entre os EUA e a Espanha. O Hino de Bayamo, 21 tiros de canhão e o toque dos sinos das igrejas acompanharam esse ato de fundação.


Enquanto isso, o público reunido no Malecón, cujas obras estavam prestes a começar, contemplava com júbilo outro dos espetáculos mais exaltados do dia: o momento em que “a bandeira cubana”, segundo o testemunho de Diego Vicente Tejera, começou a tremular na fortaleza do Morro: “Foi um momento sublime – advertiu o escritor e líder trabalhista – o súbito aparecimento de um povo no palco da História, o nascimento de uma nação entre nações soberanas”.


Esse súbito “aparecimento”, mais de meio século defasado em relação ao resto das colônias hispânicas do continente, inevitavelmente arrastava os sinais dos tempos.


Um processo de independência anticolonial, reiniciado nos últimos cinco anos do século XIX, estava ligado ao transbordamento imperial dos círculos de poder nos EUA, campeões do Destino Manifesto e da hegemonia marítima. Ou seja, a república surgiu em Cuba como resultado do desejo de independência de um povo, demonstrado após três intensas décadas de luta e projetos revolucionários, mas também do exercício de dominação, controle e articulação de estratégias geopolíticas imperialistas, pensadas no curto, médio e longo prazo, nos apenas três anos que durou o regime de ocupação militar.


Os ideais republicanos dos combatentes da independência cubana foram endossados ​​nas diferentes cartas da mambisa e nos inúmeros documentos gerados na selva. Lutaram pela república, legislaram e, em nome de seus princípios sagrados, não poucos conflitos e desentendimentos surgiram entre os próprios insurgentes.


Importantes protagonistas das comemorações do 20 de maio participaram do conclave constituinte de Guáimaro em 1869, e ali foram firmados os ideais sagrados, que marcaram as revoluções na Europa, nos EUA e na própria América Latina desde o final do século XVIII. Em particular, o artigo 24.º, cujo texto dizia: “Todos os cidadãos da República são inteiramente livres”, e o seguinte: “Todos os cidadãos da República são considerados soldados do Exército de Libertação”.


No entanto, o medo predominante em certos grupos de legisladores pela componente “soldado” e pela liderança do exército, associada às ditaduras, levou ao reforço das normas que prescreviam os direitos do “cidadão” acima de qualquer portaria militar.


Nesse contraponto ideológico, as tensões entre os órgãos representativos do processo de independência ocorreram em 1868 e em 1895. Certamente, algumas das posições mais intransigentes foram protocoladas ou pactuadas em busca de uma possível unidade, que evitaria a reprodução do Zanjón de 1878, mas não desapareceram.


A candidatura de Tomás Estrada Palma-Bartolomé Masó, defendida pelo Generalíssimo Máximo Gómez durante a ocupação estadunidense, procurou justamente contemporizar posições, conseguindo aproximar alguns dos expoentes do pensamento revolucionário com posições opostas desde o conflito armado. Assim, prevaleceu a aceitação de Estrada Palma como primeiro presidente da República, além de algumas posições adversas.


UMA REPÚBLICA QUE ERA UM MITO DA INDEPENDÊNCIA


Para os expoentes das posições de independência mais radicais, porém, o problema devia transcender o ideal republicano alcançado e se referiam a José Martí; ao pensamento do homem que se destacou pelo seu alcance, as barreiras do seu século. A república, sim, mas “com todos e para o bem de todos”. A república independente e soberana.


O general Máximo Gómez, pouco depois de hastear uma segunda bandeira cubana, acompanhado pelo governador militar Leonardo Wood, explicou o significado do acontecimento: “Com a intervenção armada dos Estados Unidos na guerra da independência, é indiscutível que Cuba, ao inaugurar a República, esteve tão intimamente ligada política e comercialmente à Grande República Americana, que quase e sem quase chegam a constituir uma intimidade tão fatal ou fortuita, uma acumulação de obrigações, que fizeram da sua independência um mito. E como se o fato histórico não valesse nada por si só, para provar essa exatidão, temos a Lei Platt, uma licença eterna transformada em obrigação para nós americanos de interferirmos em nossos assuntos, direito reconhecido, não importa como, pelo Representação Nacional Cubana”.


Por sua vez, ao invocar o mártir de Dos Ríos, Juan Gualberto Gómez afirmou: “(...) devemos persistir em reivindicar nossa soberania mutilada; e para alcançá-lo, é necessário adotar mais uma vez na evolução de nossa vida pública as ideias orientadoras e os métodos que Martí defendia”.


As invocações à “soberania mutilada” e ao “mito” da independência abririam um debate em que se enfrentariam os partidários da reafirmação da personalidade política da nascente república, com aqueles que defendiam o fortalecimento dos laços comerciais com enquanto Manuel Sanguily confessava que nunca poderia imaginar que chegaria um período em que “os cubanos mais patrióticos, mais dignos e mais honrados acreditariam reduzir nossa personalidade nacional à sua expressão mais baixa diante da personalidade absorvente de nosso poderoso vizinho”, um jornalista do La Lucha, contrariando as abordagens daquele “retardado Robespierre”, apontou: “A política moderna é feita de números. Os povos não comem com sentimentos (...) Quem não tem ouro não come nem se veste”.


É claro que os círculos de poder nos Estados Unidos apoiaram os defensores desta última corrente como uma tendência e desafiaram qualquer variante “jacobina” que tendesse a radicalizar o processo revolucionário da virada do século.


Basearam esse apoio em uma série de doutrinas e teorias racistas que legitimavam a expansão em detrimento da independência dos povos, especialmente os de raça latina. No final do século XIX, Josiah Strong, um missionário protestante, publicou Our Country, no qual proclamou a raça anglo-saxônica como “a raça escolhida de Cristo” para civilizar o mundo; Brooks Adams aplicou as leis físicas à história e introduziu a noção de ‘energia armazenada’, que não poderia ser liberada por outros meios que não a expansão; Frederick Jackson Turner, o teórico da “fronteira”, afirmaria a doutrina expansionista como uma necessidade geopolítica; enquanto o grande ideólogo, Alfred T. Mahan, publicou em 1890 o ensaio “The US looking out ward , and his capital work”, “A influência do poder do mar na história”, obras reunidas em uma edição francesa com o prefácio do professor do Collège de France, Jean Izoulet, conhecido por suas concepções sobre o papel proeminente das elites.


A difusão destas teorias quando se constituiu a República de Cuba, em um contexto marcado, precisamente, pela “invasão” de enormes somas de capital, dirigidas tanto à compra de terrenos, minas, bancos, lojas e transportes, como destinado a empréstimos, fez com que se exprimisse a noção de “interdependência” a que alude o intelectual Enrique José Varona, ao referir-se ao “conceito vacilante” de independência nos enclaves coloniais e semicoloniais no alvorecer do século XX mais rigorosamente em termos de dependência. Este se ajustou em suas formas aos interesses hegemônicos dos modelos imperialistas emergentes na Europa e nos EUA, com a consequente acentuação das deformações estruturais dos enclaves periféricos.


Nesse complexo cenário internacional e confrontos ideológicos, surgiu há 120 anos a República de Cuba, ato que não deve ser reduzido à hegemonia imperial, que entronizou o apêndice intervencionista à Constituição de 1901. A convocação da Assembleia Constituinte pelos militares do Governo foi também o resultado da convicção dos estadistas estadunidenses de que a anexação, um protetorado ou qualquer outra fórmula ou jogo político que obstruísse a independência não estavam entre as opções defendidas pela maioria dos cubanos, não apenas por sua liderança revolucionária, mas pelos mais amplos setores e grupos da população.


De fato, a ocupação militar (1899-1902) tornou-se um espaço de compreensão e reafirmação dessa tese, respaldada em múltiplas manifestações políticas, artísticas e literárias.


Em 20 de maio de 1902, os destinos de Cuba e Porto Rico, antigos territórios coloniais ocupados pelos EUA, seriam diferentes. Por que a demarcação imperial nas formas de assumir suas relações com esses enclaves antilhanos? Quando Máximo Gómez chamou para defender o que ainda restava da luta pela independência, “a sua história e a sua bandeira”, apontou as chaves necessárias para compreender o facto republicano fundador, mas também os seus desafios.


Para esquecer aquela história: “(...) chegará o dia em que até a língua se perderá, os nossos filhos, sem culpa, dificilmente lerão um velho pergaminho que lhes caia nas mãos, no qual as façanhas das gerações passadas, e esses, seguramente, lhes suscitarão pouco interesse, influenciados como devem sentir pelo espírito ianque”.


Do Granma

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