Povos originários, coronavírus e Bolsonaro
Conforme já denunciado no NOVACULTURA.info, a reação brasileira e mundial tem desdenhado dos apelos por cessar-fogo nas muitas regiões em guerra no mundo, recusando-se continuamente a cooperar com forças militares antagônicas em prol do combate à pandemia e se aproveitando do morticínio para avançar em seus planos genocidas.
No Brasil, é notório que a disparada das mortes e contágios pela Covid-19 – nosso país alçou, nos últimos dias, lamentavelmente, o posto de segundo país do mundo com mais óbitos pela doença, atrás apenas dos Estados Unidos – tenha sido acompanhada da intensificação da repressão reacionária, dos despejos e toda sorte de ataques físicos contra as populações urbanas e rurais.
Um dos aspectos mais cruéis da ação do Estado reacionário brasileiro em meio a este período de pandemia tem sido o agravamento das já paupérrimas condições de vida de nossos povos originários.
De norte a sul, durante os três últimos meses de pandemia, dispararam os contágios nas aldeias, contágios estes que trazem consigo os seguintes fatores e agravantes: as ações do governo reacionário de Jair Bolsonaro em depenar a Fundação Nacional do Índio, FUNAI (tendência que já se verificava em governos anteriores, mas muito mais agravada atualmente), e demais órgãos ambientais e/ou relacionados à proteção às populações originárias, asfixiando suas verbas e demais formas de financiamento, somadas ao aparelhamento de cargos-chave destes órgãos por ex-policiais militares corruptos, militares do exército reacionário brasileiro, etc., empoderando estes elementos antissociais ligados ao banditismo e à repressão política; o envio de tropas do exército reacionário brasileiro para regiões remotas de nosso país, que possuem grandes proporções de populações indígenas, deflagram não apenas a repressão contra seus movimentos de massas organizados, mas também a intensificação do contágio pela Covid-19, conforme recentemente denunciado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB); o desavergonhado Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente do regime reacionário de Bolsonaro, por meio da imposição goela abaixo do povo brasileiro de suas usuais “boiadas”, já vem há muito afrouxando ou mesmo invalidando leis de proteção ambiental e aos territórios das populações originárias, indígenas e quilombolas, visando abrir suas terras férteis e demais riquezas das entranhas da terra para a exploração de atividades econômicas predatórias como a mineração e a pecuária, deflagrando não apenas as doenças que já contagiavam as populações originárias, como também, por fim, a Covid-19; na esteira das consequências do fechamento de cadeias produtivas globais, está realmente a intensificação da miséria entre as populações tradicionais, que não conseguem acesso mesmo às formas mais precárias de trabalho, e somado à isso, a asfixia de financiamento e corte de verbas têm inviabilizado a manutenção de auxílio e o envio de cestas básicas no período em que os nativos brasileiros mais necessitam. Serviços de saúde indígena, tão agudamente necessários, ainda mais em um momento como este, se encontram também inviabilizados.
Esta situação de calamidade humanitária não terá outra saída que não uma postura de luta ainda mais agressiva e combativa por parte dos povos originários.
O apelo para esta luta ainda mais agressiva e combatida possui raízes nos fatores já mencionados, assim como nas inúmeras ilustrações que o pauperismo dos povos originários oferece.
Mato Grosso do Sul: contágio e fome dos Guarani-Kaiowá em meio à pandemia
No Cone Sul do estado do Mato Grosso do Sul, a população indígena Guarani-Kaiowá, historicamente oprimida e discriminada, tem sido uma das principais vítimas da pandemia. Ainda que a fome e as epidemias já fossem constantes antes mesmo da Covid-19, as demissões que afetaram duramente a parcela proletarizada do povo Guarani-Kaiowá após o fechamento da atividade econômica intensificaram tais calamidades. Afinal, na condição de população indígena oprimida, relegada à situação de povo de segunda classe na sociedade brasileira de bases racista, a proletarização dos Guarani-Kaiowá segue o padrão de “últimos a serem contratados, primeiros a serem demitidos.”
Não é necessário refletirmos muito para chegarmos à conclusão que o estado de desnutrição afeta seriamente a resistência do sistema imunológico às doenças, logo, a fome e a Covid-19 teriam o potencial de produzir um genocídio entre a população de mais de 50 mil pessoas da população Guarani-Kaiowá que habita o estado do Mato Grosso do Sul.
Na segunda metade do mês de meio, verificaram-se os primeiros casos de contaminação por Covid-19 em aldeias do cone sul do estado do Mato Grosso do Sul, transmitidas a partir da infecção de uma operária Guarani-Kaiowá que trabalhava em uma fábrica da empresa JBS em Dourados. Diante de condições tão miseráveis de vida, um mês após o ocorrido, o que não é possível especular que se passou desde então? Algumas informações já têm aparecido. Na mesma reserva indígena de Dourados, em 7 de junho, havia 74 infectados pela Covid-19, e a situação que já conhecemos bem nos permite falar seriamente em subnotificação de casos.
É de conhecimento de todos que o transbordamento das relações de produção capitalistas nas aldeias, com sua dissolução da produção de subsistência tradicional, trouxe consigo os males sociais como o suicídio, alcoolismo e prostituição, particularmente para a juventude Guarani-Kaiowá, o que representa uma dissolução abrupta e forçada das relações e valores comunais mantidos pelos primeiros habitantes do território brasileiro. Porém, o coronavírus vem trazer consigo mais um fator de dissolução dos laços comunais, conforme denunciado por uma declaração conjunta feita por organizações Guarani-Kaiowá, segundo a qual restam poucos anciãos que guardam consigo os conhecimentos comunais, e com a grave ameaça que representa a doença, reduzem-se as possibilidades de unificação dos Guarani-Kaiowá pela vida comunitária tradicional, até mesmo como instrumento de perspectiva de luta.
Genocídio dos povos originários nos estados de Roraima e Amazonas
Conforme colocamos, as atividades econômicas predatórias constituem um forte meio de contaminação das populações originárias pelo coronavírus, e este tem sido o caso das populações originárias dos estados do Amazonas e Roraima, muitas das quais possuem um contato relativamente escasso com as populações não-indígenas. A campanha recentemente lançada, “Fora Garimpo, Fora Covid”, tem denunciado a íntima relação entre a expansão das atividades garimpeiras e a contaminação pela Covid-19 nas aldeias, particularmente no caso dos Yanomami. No território indígena pertencente ao povo Yanomami, que se estende de Roraima ao Amazonas, há mais de 20 mil garimpeiros que, sem quaisquer equipamentos ou meios de prevenção à pandemia, têm expandido o coronavírus para as aldeias.
Ademais, o próprio método de auxílio financeiro (a migalha de 600 reais mensais) fornecido pelo governo federal à população brasileira, não apenas aos indígenas, tem sido no caso destes um vetor de expansão da doença para as aldeias. Sem acesso a meios como aplicativos de internet e celular para receberem o auxílio, são obrigados a se deslocarem por dias para as áreas urbanas para que possam receber a parcela, frequentando locais tremendamente aglomerados como lotéricas e mercados, contraindo a doença e transmitindo-a entre a população restante.
Outro fator de disseminação do coronavírus, não menos importante, foi a aprovação recente do Projeto de Lei (na Câmara dos Deputados, que seguiu para o Senado), no final de maio, que permite o envio de missionários para “catequizar” povos indígenas sem contato com as populações não-indígenas. Para termos uma ideia do que estamos falando, a questão não se resume à “conversão religiosa”, nem ao coronavírus, se levarmos em conta uma recente denúncia feita contra o pastor norte-americano Josiash McIntyre, que teria invadido a sede da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava) e intimidado indígenas, ameaçando incendiar o local.
Situação dos povos indígenas no Nordeste brasileiro em meio à pandemia
No Nordeste brasileiro, até o momento, a Covid-19 já infecta os povos indígenas de sete dos nove estados nordestinos. Enquanto o Ceará lidera o número de infectados, com 96 casos, o estado de Pernambuco encabeça o ranking mortífero, com dez óbitos entre indígenas pela Covid-19.Tal como em outros locais do Brasil, sob situação de abandono pelo velho Estado, as populações originárias nordestinas têm recorrido ao método das “barreiras sanitárias” como forma de impedir a disseminação do vírus, sem permitir que a saída de moradores e a entrada de pessoas de fora, método este que, a despeito dos sacrifícios que traz, permitiu que populações originárias de estados como Sergipe e Piauí se vissem, até agora, salvas da pandemia e de suas consequências mais graves do ponto de vista da saúde.