"Radiografia do futebol palestino entre ruínas"
- NOVACULTURA.info
- 22 de jul.
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A terra árida ainda esconde sonhos sob os escombros. Embora o panorama seja desolador, a Palestina sempre encontrou no futebol uma pequena válvula de escape em meio à tragédia. A FIFA, que agora silencia diante dos crimes do Estado de Israel em Gaza, havia contribuído para que a vida na Faixa fosse um pouco mais suportável. Destinou fundos para a construção de doze estádios dos quais não resta mais nada. Os bombardeios indiscriminados do governo sionista de Benjamin Netanyahu os destruíram. Até 3 de julho passado, a associação local contabilizava essas obras entre as 264 instalações esportivas bombardeadas. Pouco mais de 180 ficaram completamente inutilizadas. Mas esse número ainda não é o pior. Com o assassinato de Muhannad al-Lili, jogador do clube Nadi Khadamat Al-Maghazi, já somam “265 mártires da família do futebol”, conforme publicado no site oficial da entidade, que já não pode organizar torneios. Em todas as atividades esportivas, o número de mortos chegava a 585 até os primeiros dias deste mês.
“Em um piscar de olhos, Israel transformou os campos de futebol de Gaza em cemitérios desolados, como fez com a maioria dos nossos edifícios, instituições e infraestrutura. Caminhar hoje na cidade de Gaza é como caminhar por uma cidade fantasma. A guerra destruiu a alegria, a festa e o entusiasmo de nossas vidas. E muitos daqueles amigos que eu chamaria para jogar foram tragicamente assassinados durante este genocídio”, relata Bader Alzaharna, um jovem de Gaza da fundação Generation Amazing (Geração Surpreendente), que trabalha com as Nações Unidas, federações de futebol, clubes profissionais, ONGs e outras lideranças do ecossistema esportivo.
A Associação Palestina recorda que Muhannad al-Lili “tentou sair de Gaza para reencontrar-se com sua esposa, que havia deixado a Faixa rumo à Noruega em uma viagem de negócios antes do início da guerra. No entanto, não conseguiu e lhe foi impedido ver seu filho mais velho, nascido fora da Faixa de Gaza”. Antes de jogar no Nadi Khadamat Al-Maghazi, foi vice-campeão da liga com o Jabalia Youth Club na temporada 2018/2019. Depois assinou com o Gaza Sports Club, onde sofreu uma lesão no ligamento cruzado que o afastou dos gramados até retornar ao seu último time. Morreu após ser atacado por um drone, na quinta-feira, dia 3, no centro de Gaza. Estava em sua casa.
Nessas condições impossíveis de serem assimiladas por qualquer liga de futebol, em meio a uma guerra de extermínio, o futebol palestino subiu três posições no ranking mundial da FIFA. Passou da 101ª para a 98ª colocação. Um degrau abaixo de Belarus e um acima de Moçambique, entre 210 seleções do planeta. A Federação presidida por Infantino, como se sabe, tem mais associações filiadas do que países têm as Nações Unidas.
A seleção nacional palestina não pôde continuar nas eliminatórias para a Copa do Mundo nos Estados Unidos, México e Canadá porque Omã empatou aos 95 minutos com um pênalti inexistente (1 a 1). A partida foi disputada na Jordânia e, se tivesse vencido, a Palestina teria passado para a próxima fase e mantido viva a chance de ir ao Mundial.
Na seleção joga um argentino: Agustín Manzur, ex-jogador do Godoy Cruz e do Deportivo Maipú de Mendoza, atualmente no Guaraní, do Paraguai. Um de seus companheiros, Alaa El-Din Hassan, do clube catariano Al-Arabi, sabe bem o que é ser perseguido em seu próprio país. Vive sob constante vigilância. Nasceu em Mashhad, uma localidade árabe situada em Israel, mas joga pela Palestina. Passou por clubes da Alemanha e de Portugal, além de vários em seu país de origem. É atacante e estreou pela seleção em 6 de setembro de 2023, em um amistoso contra Omã que terminou em derrota.
A Associação que ele representa informou que “foi alvo de uma série de ameaças e interrogatórios por parte das autoridades israelenses durante uma visita à sua cidade natal de Al-Mashhad, na Galileia. O jogador explicou que a investigação se concentrou em sua incorporação à seleção nacional palestina e sua representação. Seu telefone celular também foi confiscado”.
A política de hostilidade desenvolvida pelo Estado de Israel contra o futebol palestino, seus dirigentes, treinadores e jogadores já dura pelo menos duas décadas. Em 2010, vários campos de grama sintética ficaram em ruínas em Burin, Beit Ummar e Beit Foreeq. Em 2011, três partidas internacionais contra Zâmbia, Gâmbia e República Centro-Africana foram canceladas por pressões de Israel. O principal estádio de Gaza foi bombardeado em 18 de novembro de 2012. Em dezembro daquele ano, vários jogadores iraquianos não puderam entrar na Palestina. Ao vice-presidente da Federação Palestina de Futebol foi impedido sair de Gaza. Um subcontratado de origem jordaniana enviado pela FIFA para avaliar as condições de vários campos de grama sintética foi retido em 2013.
À medida que os colonos israelenses avançavam sobre os territórios ocupados, as obras nos estádios em construção eram interrompidas por motivos de segurança. A maioria desses dados consta no relatório Israel estorva o futebol na Palestina ocupada: 2008–2014, do Movimento Não Violência Ativa Internacional e da associação local.
A estratégia de terra arrasada nos territórios palestinos deixou a Faixa em ruínas. A imagem recorrente de que é a maior prisão a céu aberto do planeta foi substituída por outra: a de um imenso cemitério onde ainda jazem cadáveres não identificados sob os 163.778 edifícios destruídos pelos bombardeios de Israel. Esse número havia sido monitorado em janeiro passado pelo UNITAR, o Centro de Pesquisa de Imagens de Satélite da ONU. Em termos percentuais, representa 66% do total das moradias nos centros urbanos de Gaza.
Nesse cenário, os estádios de futebol, como diz a Associação Palestina, “transformaram-se em valas comuns, outros em quartéis militares para o exército de ocupação ou em centros de detenção onde os soldados cometem os crimes mais atrozes contra a humanidade, como ocorreu no Estádio Yarmouk”. Esse campo ficava no oeste de Gaza. Hoje está inutilizável. Crianças e adolescentes jogaram ali, sobre sua superfície empoeirada e cercada por edifícios bombardeados durante meses. Com a crise dos deslocados, virou um enorme campo de refugiados coberto por barracas. O que resta de suas arquibancadas, com capacidade para 9 mil pessoas, é uma imagem inconfundível da atualidade do futebol palestino.
Do Página/12
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