"Um pequeno Organon para o Teatro"

Prefácio
O seguinte conjunto define um desempenho estético que foi posto em prática há poucas décadas passadas. Nas premissas teóricas, digressões, indicações técnicas ocasionalmente publicadas na forma de didascálias das peças, a estética tem sido tocada ocasionalmente e também com ausência de interesse. Lá tu vês espécies particulares de teatro ampliadas ou contraídas em sua função social, aperfeiçoando ou examinando minuciosamente seus métodos artísticos, estabelecendo ou mantendo suas estéticas — se surge o problema — rejeitando ou convertendo para seu próprio uso as convenções reinantes de moralidade ou gosto segundo suas necessidades táticas. Este teatro justifica sua tendencia para o compromisso social apontando o compromisso social universalmente aceito nas obras de arte, que falha apenas para chamar a atenção por ter aceito este compromisso. Como para os produtos de nossa época, considerou que qualquer ausência de indignação no conteúdo era sinal de decadência: ele sentiu esta diversão como tendo degenerado num armazém dos negócios burgueses de tráfico de drogas. O estado descuidado das representações da nossa vida social, inclusive do chamado Naturalismo, conduz a pedir por representações exatas cientificamente; o insípido revezamento do vazio visual ou paliativos espirituais, para a nobre lógica da tabuada de multiplicação.
O culto da beleza, leva a hostilidade em relação ao aprendizado e tentativa de ser prático, foi perdido por isso a si compatível, especialmente como ausência de resultados belos. A batalha era por um teatro posto para a época científica, na qual seus planejadores descobriram o quanto custa a estrutura de aço para os edifícios ou conceitos estéticos para serem manejados como armas para defender-se da própria Estética da Imprensa, ele simplesmente ameaçam transformar o sentido da diversão exposto num tipo particular de de teatro em um instrumento de conhecimento, e converter alguns tipos de diversão estabelecidos nos veículos de comunicação de massas’ (’Notas para a Ópera Mahagonny’): isto é de migrar do reino do simplesmente agradável. A estética, esta até agora uma herança de uma classe parasitária e viciosa, era complementar e aliada numa ausência de interesse. Este estado lastimável de um teatro poderia seguramente ter ganho em reputação quanto em salas acotoveladas se tivesse rebaixado o teatro. E ainda o que nos alcançamos no caminho do teatro da idade científica não foi ciência, mas teatro, e as inovações acumulada funcionaram no período nazista e da guerra — quando a demonstração prática era impossível — obriga a alguma tentativa de contextualizar a estética deste teatro, ou de qualquer forma de esboçar as linhas gerais de uma estética possível. Expor a teoria da alienação teatral fora do contexto da estética é penoso.
Atualmente pode-se ir longe juntando uma estética das ciências naturais. Galileu fala das elegâncias de várias fórmulas e o ponto de uma experiência; Einstein sugere o sentido de beleza toma parte do jogo da descoberta científica; enquanto o físico atômico R. Oppenheimer orgulha-se da atitude científica, que 'tenha seu próprio tipo de beleza e pareça seguir a posição da humanidade na Terra'.
Deixemos de fora o clamor geral de revogar nossa decisão de emigrar para o reino do simplesmente agradável, e mesmo revogar o clamor geral de alugarmos um lugar ali.
Tratemos o Teatro como um lugar de diversão, como é próprio num debate estético, e tentemos descobrir qual é o melhor tipo dela para nós.
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O Teatro consiste nisto: em fazer uma viva representação de fatos acontecidos ou inventados entre seres humanos e fazendo com a perspectiva da diversão. De qualquer modo é o que buscamos tratando de teatro novo ou antigo.
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Para ampliar esta definição poderemos acrescentar acontecimentos entre humanos e deuses, mas buscamos estabelecer um mínimo e podemos deixar isto de lado. Mesmo se ampliarmos tal definição convencionaremos que a função do teatro é proporcionar prazer. Esta é a mais nobre função para o que chamamos de Teatro.
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Embora o teatro tenha sido de início um negócio para divertir o povo, como também as outras artes. Isto deu aos negócios um certo ar de dignidade, não é preciso outros passaportes do que a diversão, mas isto é preciso. Isto não significa dar um alto gabarito à moral de negociantes, ao contrário, devemos correr o risco de sermos rebaixados, num sentido de tornar a moralidade agradável, admitamos, a princípio um meio que a moralidade possa ganhar. Nem mesmo a instrução deve ser exigida nem mesmo uma lição utilitarista, que nos transporte, até mesmo prazerosamente, as esferas físicas ou espirituais. O teatro deve permanecer inteiramente uma coisa desinteressada para nós que vivemos. Nada precisa menos explicação do que o prazer.
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Então o que os antigos, seguindo Aristóteles, exigiam da tragédia não é superior nem inferior ao que diverte ao povo. Podemos afirmar que o teatro é derivado do rito religioso, mas além disso: dizemos apenas que ele se separou do rito religioso. O que acabou com os mistérios não foi sua função de rito, mas apenas e simplesmente o prazer de assisti-lo. E a catarse da qual Aristóteles mencionou — purgação pelo medo e piedade — é uma purificação que se desempenha de maneira agradável e pelo propósito do prazer. Inquirir ou aceitar mais do do que isto do teatro é rebaixar o seu nível.
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Mesmo quando o povo fala de maior ou menor grau de prazer, a arte caminha imperturbável para ele; por isso deseja voar alto para ser deixada em paz, tanto quanto o que pode dar prazer ao público.
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Existem ainda prazeres débeis (fracos) ou fortes (complexos) que o teatro pode proporcionar. Estes últimos que lidam com o grande drama, ligam-se a climaxes relacionados com o amor: eles têm mais intrigas, ricas em comunicação, mais contraditórias e ricas e produtivas em resultados.
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E diferentes épocas de diversão variam naturalmente segundo o sistema sob o qual o povo vive numa determinada sociedade. A demos grega (literalmente: o circo da demos grega) predominou entre tiranos que tinha de ser diferente da diversão da corte de Luis XIV. O teatro foi requisitado a fornecer diferentes representações da vida coletiva do homem: não apenas representações de uma vida diferente, mas também representações de diferentes tipos.
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Segundo o tipo de diversão que foi possível e necessária sob dadas condições da vida social dos homens as personagens tinham de ganharem variadas proporções, as situações serem construídas de acordo com múltiplos pontos de vista. As histórias tinham de ser narradas de vários modos, este particular aos gregos podia ser capaz de aborrecê-los com a inexorável lei divina onde a ignorância nunca atenua o castigo; este dos franceses com a graciosa autodisciplina exigida dos de cima desta terra por um código cortês de honra; o inglês da época Isabelina com a auto recompensa da nova personalidade que foi incontrolavelmente explodindo.
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E sempre devemos lembrar que o prazer dado pelas representações de diferentes espécies dificilmente depende das representações das coisas representadas. Incorreções, ou considerável incerteza, estão dificilmente em todo distúrbio, enquanto a incorreção tem uma certa coerência e a incerteza permanece de um tipo constante. Tudo o que importou foi a ilusão do instante atraente da estória contada, e isto proporcionou todo tipo de meios teatrais e poéticos. Mesmo atualmente somos felizes por superestimar tais imperícias se conseguimos ir além da purificação espiritual de Sófocles ou atos de sacrifícios de Racine ou os frenesis desenfreados de Shakespeare, nas personagens principais de suas estórias.
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Para todo tipo de representações que o teatro tem feito entre humanos desde épocas remotas, e que tem proporcionado diversão apesar de sua correção e incerteza, há um estonteante número que também nos divertem.
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Ora, se constatamos a capacidade de nos deleitarmos com reproduções provenientes de épocas diversas (o que teria sido quase impossível aos filhos dessas épocas maravilhosas), não deveríamos, então, suspeitar que nos falta ainda descobrir o prazer específico, a diversão própria de nossa época?
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A nossa capacidade de fruição do teatro deve ter-se atrofiado, em relação a dos Antigos, muito embora a nossa forma de convívio assemelhe-se bastante à sua, para que, de maneira geral, essa fruição possa surgir da nossa arte. Apropriamo-nos das obras antigas, por intermédio de um processo pelo qual as referidas obras, não dão de si, grande contribuição. A nossa fruição é, desta forma, quase totalmente alimentada por fontes diversas daí, das que pujantemente abriram-se antes de nós.
Arranjamos uma compensação na beleza da linguagem dessas obras, na elegância da sua fabulação, na passagem cujo poder nos permite criar uma representação desligadas delas, em suma, nos ornamentos. Esses recursos poéticos e teatrais, dissimulam justamente, a sensação que a história nos provoca. Os nossos teatros já não têm prazer em narrarem estas histórias, nem mesmo as do grande Shakespeare (que não são assim tão antigas), com exatidão, isto é, tornando verossímil a associação dos acontecimentos. É a fabula segundo Aristóteles — e neste ponto pensamos identicamente- a alma do drama. Cada vez mais nos incomoda o primitivismo e o descuido que encontramos nas reproduções do convívio humano não só nas obras antigas, mas também nas contemporâneas, quando estas são feitas pelas receitas antigas. O nosso modo de fruição começa a desatualizar-se.
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É a sensação de desacerto, que nos vem perante a representação das reproduções dos acontecimentos ocorridos no mundo dos homens, que reduz nosso prazer no teatro. A razão desse desacerto de nossa posição em relação ao objeto reproduzido é o fato dela ser diversa daquela que nos antecederam.
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Ao perguntarmos ao nosso teatro que espécie de diversão (direta), que prazer amplo e constante ele poderia nos proporcionar com suas reproduções do convívio humano, não devemos esquecer que somos filhos de uma Era Científica. As nossas relações como homens — quer dizer, a nossa vida — está condicionada pela ciência, dentro de dimensões completamente novas.
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Um punhado de pessoas, há algumas centenas de anos, apesar de viverem em vários países tentaram arrancar os segredos da Natureza. Pertencendo a classe industrial das cidades, já então poderosas, transmitiram suas invenções a terceiros, que as exploraram no terreno da prática, sem pedirem outra coisa as ciências senão lucro pessoal. Indústrias que, durante milhares de anos, se haviam mantido em processos quase inalterados, desenvolveram-se então espantosamente, em vários locais, estes ligavam-se uns aos outros pela concorrência e englobavam em si, e por toda parte, grandes massas humanas, que organizadas de forma nova iniciaram uma produção gigantesca. A humanidade, em curto espaço de tempo pode revelar forças descomunais, até então jamais sonhadas.
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Só agora, dir-se-ia que a humanidade se propunha habitar o astro onde mora, unitária e conscientemente, Vários materiais naturais como o carvão, a água e o petróleo, tornaram-se verdadeiros tesouros. O vapor d´água foi incumbido de mover veículos, umas poucas faíscas e movimentos das pernas das rãs, denunciaram a força da Natureza, uma vibração que produzia luz e transportava o som por todos os continentes, etc. Era como um novo olhar que o homem mirava sobre si, e pesquisava o que via em benefício de si, o que há muito via mas não utilizava para si.
O meio ambiente transforma-se, cada vez mais, de decênio em decênio, de ano em ano e depois dia após dia. Eu próprio estou escrevendo numa máquina que não conhecia quando nasci. Transporto-me em novos veículos a uma velocidade que meu avô sequer poderia imaginar; não havia nesse tempo que se movesse tão rapidamente.
Além disso levo-me no ar coisa que era impossível a meu pai. Podia conversar com meu pai de um continente para outro, mas foi só com meu filho que pude ver as imagens animadas da explosão de Hiroshima.
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Embora as ciências tenham proporcionado uma enorme modificação, e sobretudo uma enorme transformação do nosso meio ambiente, não é possível afirmar, entretanto que estejamos imbuídos de seu espírito, que ela alcance a todos. O motivo pelo qual a nova forma de pensamento e sensibilidade não se impôs ainda às massas está no fato de que a classe que deve as ciências a sua supremacia — a burguesia — impedir que as ciências que foram tão proveitosas na exploração e domínio da natureza, se apoderem de um outro campo ainda virgem, o domínio das relações dos homens entre si e no ato de subjugar ou explorar a natureza. Esta tarefa, da qual todas as outras dependem, foi efetuada sem que os novos métodos de pensamento os quais a tornaram possível viessem esclarecer entre aqueles que a efetuaram. A nova visão da Natureza também não incidiu sobre a sociedade.
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As relações atuais entre os homens tornaram-se mais impenetráveis do que no passado. O gigantesco empreendimento comum em que estão empenhados, parece desvalidos cada vez mais, o aumento da produção faz crescer a miséria e somente poucos lucram com a exploração da Natureza, justamente porque exploram outros homens. O que poderia ser o progresso de todos é apenas o lucro de alguns, e uma parte crescente da produção é destinada a guerras devastadoras, a guerras em que as mães de todas as nações, com seus filhos num abraço apertado, vasculham os céus, no rastro de inventos mortíferos da ciência.
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Os homens de nosso tempo estão, exatamente como outrora diante suas próprias realizações, perante as catástrofes imprevisíveis da Natureza. A classe dos patrões que deve sua prosperidade à ciência, prosperidade da qual tornou-se beneficiária ao tornar-se a classe dominadora, não ignora que se a perspectiva cientifica incidir representa o fim de seu domínio. A nova ciência, que se debruça sobre a natureza das diversas sociedades humanas e que foi fundada há cerca de um século, mergulha nas raízes da luta de dominados e dominadores. Desde então, tem-se manifestado nos trabalhadores, para quem a grande produção é vital, algo que é, no fundo, como que um espírito científico, segundo o qual, as grandes catástrofes são preparadas pelos que dominam.
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A arte e a ciência têm em comum o fato de ambas existirem para facilitar a vida dos homens. A primeira ocupada na diversão dos homens, e a segunda na sua subsistência. No futuro que virá a arte tirará diversão de toda a produtividade, esta poderá melhorar nossa existência e uma vez livre de obstáculos, pode vir a ser o maior de todos os prazeres.
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Se quisermos uma arte de produzir, qual deverá ser a nossa posição face ao convívio em sociedade? Qual deverá ser a atitude produtiva, qual a posição face a Natureza e ao convívio social, que a nós recreará, no teatro, a nós filhos da época científica?
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A atitude deve ser crítica. Perante um rio ela deve ser regular seu curso. Diante uma árvore frutífera, em enxertá-la, perante a locomoção, construir veículos de terra e ar, perante a sociedade em fazer uma revolução. As nossas representações do convívio humano destinam-se aos técnicos fluviais, aos farmacêuticos, aos construtores de veículos e aos revolucionários, a quem convidamos a virem aos nossos teatros, e a quem pedimos que não se esqueçam, enquanto estiverem conosco, dos seus respectivos interesses (que são uma fonte de alegria); poderemos assim entregar o mundo a seus cérebros e a seus corações, para que o modifiquem a seu critério.
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O Teatro só poderá sem dúvida assumir uma posição independente, caso se entregue às correntes mais avassaladoras da sociedade e se associe a todos que estão impacientes, necessariamente por fazer grandes transformações neste campo. É o desejo sobretudo de desenvolver nossa arte, em sintonia com a época em que ela se insere que nos impele, desde já, a desenvolver nosso teatro, o teatro de uma era científica, para os arredores das cidades, aí ficará, para ser preciso, a disposição da vasta massa que produz em grande escala e que vivem em dificuldades, para que se divertam prazerosamente com a complexidade de seus próprios problemas.
É possível que achem difícil remunerar nossa arte, é possível que não a compreendam, logo à primeira vista, a nossa nova forma de diversão, e em muitos aspectos teremos de aprender a descobrir aquilo de que necessitam e de que modo necessitem: apenas podemos estar seguros de seu interesse. É que todos aqueles que parecem tão distantes da ciência estão, porém, pela simples razão de serem mantidos afastados; para se apropriarem e desenvolverem a ciência terão de pôr em prática por si, desde já, uma nova ciência social. São estes os verdadeiros filhos da era científica, como a nossa, cujo teatro não se poderá desenvolver se não forem eles a impulsioná-lo. Um teatro que torne a produtividade fonte principal da diversão, deverá torná-la também seu tema, e é com cuidado muito particular que deverá fazê-lo, atualmente, pois em toda parte vemos o homem impedir a produzir si próprio, isto é em angariar seu sustento, de divertir-se e divertir. O teatro tem de se comprometer com a realidade, porque só assim será possível e será lícito produzir imagens eficazes da realidade.
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O Teatro vê facilitado seu esforço, por uma aproximação estreita com os estabelecimentos de ensino e meios de comunicação de massa. Pois, embora o teatro não deva ser importunado com toda sorte de temas culturais que não lhe confiram um caráter recreativo, tem plena liberdade de se recrear com temas de ensino ou investigação. Faz com que as reproduções da realidade sejam válidas e capazes de a influenciar, como diversão autêntica. Expõe aos construtores da sociedade as vivências dela, tanto passadas como presentes, mas o faz de forma que se possam tornar objetos de deleite os conhecimentos, os sentimentos e os impulsos que dentre nós são os mais emotivos, os mais sábios e os mais ativos, que extraem dos acontecimentos do dia a da e do século. É nosso propósito diverti-los com a sabedoria que advém da solução dos problemas, com a ira em que se pode precisamente a compaixão pelos oprimidos, com o respeito pelo amor a tudo o que é humano, ou seja, pelo filantrópico, em resumo, com tudo aquilo que deleita o homem que produz.
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O teatro pode assim levar seus públicos a fruir a moral especifica da sua época, a moral que emana do produtividade. Tornando a crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever se depararão ao teatro no campo da moral, aparecerão sim, múltiplas possibilidades. A sociedade pode mesmo extrair de tudo o que apresenta um caráter associal, desde que o apresentem como algo revestido de grandeza: assim se nos revelam, com frequência, forças intelectuais e inúmeras capacidades de especial vali empregadas, porém evidentemente, com propósitos devastadores. Pois bem, a sociedade pode mesmo gozar fortemente, em toda a sua magnificência, dessa torrente que irrompe catastroficamente, desde o momento que lhe seja possível dominá-la, passando neste caso a corrente ser sua.
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Para levar a bom termo um empreendimento desta ordem seria impossível deixar o teatro ficar como está. Entremos numa costumeira sala de teatro e observemos o efeito causado pelo teatro no público. Olhando em volta, vemos figuras inanimadas que se encontram num estado singular: dão-nos a ideia de estarem enrijecendo os músculos num esforço enorme ou de terem relaxado após intenso esgotamento. Quase não convivem entre si: é como uma reunião em que todos dormissem de bruços, como o povo diz ser a causa dos pesadelos. Têm os olhos evidentemente abertos, mas não veem, não fitam e tampouco ouvem. Olham como que fascinados a cena, cuja forma de expressão embebe suas raízes na Idade Média, época de feiticeiras e clérigos. Ver e ouvir são atos que causam, por vezes, prazer; essas pessoas, porém, parecem-nos bem longe de qualquer atividade, parecem-nos objetos passivos de um processo qualquer que está se desenrolando. O estado de enlevo em que se encontram e em que parecem entregues a sensações indefinidas, mas intensas é tanto mais profundo quanto melhor trabalharem os atores, por isso desejaríamos, visto que tal estado hipnótico nos agrada que os atores fossem tão maus quanto possível.
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O mundo que é reproduzido e do qual são tirados trechos para a criação dos referidos estados da alma e emoções surge de coisas de tal maneira pobres e escassas — um tanto de caricatura, um pouco de mímica e uma certa porção de texto — que é impossível deixar de admirar a gente de teatro, admiramo-la por conseguir com um decalque tão pobre do mundo, emocionar o público mais intensamente do que o mundo propriamente dito.
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E há que desculpar, em certa medida, os atores, porque a verdade é que, em reproduções mais exatas do mundo, não seria possível provocar os prazeres que lhes são comprados a troco de dinheiro e fama, e seria, também, impossível fazer aceitar no mercado as suas reproduções inexatas se as apresentassem de forma menos mágica.
A sua habilidade em retratar homens manifesta-se indiscriminadamente: são especialmente os vilões e as personagens menores que revelam traços de sua experiência e se diferenciam das personagens principais, porem devem conservar o traço mais geral, para que o público possa mais facilmente se identificar com elas.
E, além disso, os traços característicos devem permanecer num campo restrito, dentro daquilo que o público possa dizer imediatamente: "É isso mesmo!" O público deseja usufruir emoções bem determinadas, tal como uma criança, por exemplo, quando monta num cavalo de madeira de carrossel, a sensação de orgulho por saber andar a cavalo e por ter um cavalo, o prazer de se deixar levar e passar junto de outras crianças ou de estar a seguir outras, etc. À semelhança entre o veículo de madeira e um cavalo não contribui muito para que a criança experimente essas sensações, nem a aborrece, tampouco, o fato de a cavalgada limitar-se a um pequeno círculo. Por sua vez, ao frequentador do teatro o que lhe interessa é poder substituir um mundo contraditório por outro harmonioso, um mundo que conhece mal por um mundo onírico.
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Foi neste estado que encontramos o teatro, ao procurarmos realizar o nosso empreendimento. E tal estado devia-se a que os nossos esperançosos amigos, a quem chamamos filhos da era científica, encontravam-se transformados numa intimidada massa crente, "fascinada".
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É certo que há cerca de meio século, lhes tem sido dado apreciar produções algo mais fiéis das relações entre os homens, e, também, personagens que se rebelam contra a determinados males sociais ou até contra o sistema global da sociedade.