O XX Congresso do PCUS e a crise no Partido Comunista do Brasil (PCB)

Pouco antes das 10 horas da noite de cinco de março de 1953, o camarada Stálin parava de respirar e sua morte seria anunciada oficialmente pouco tempo depois. A crise, em torno da sucessão à secretaria-geral do Partido Comunista da União Soviética e à liderança do Estado Soviético, estava se agudizando.
O livro Problemas econômicos do socialismo na URSS, uma coletânea de observações e comentários de Stálin sobre o Manual de Economia Política da União Soviética, de 1952, trazia relevantes apontamentos dialéticos, à luz do materialismo histórico e do marxismo-leninismo, do grande líder soviético e foi importante para o Movimento Comunista Internacional e para a construção do socialismo tanto na União Soviética quanto nas democracias populares e na China, num contexto onde 1/6 do planeta e 1/3 da população mundial estavam sob a influência do socialismo (ou da construção deste). Esta obra sairia antes da realização do XIX Congresso do ainda Partido Comunista (bolchevique) da União Soviética, realizado entre 5 a 14 de outubro de 1952. Neste Congresso, o primeiro após o início da Grande Guerra Patriótica que devastou a União Soviética, estabelece como fundamental a reconstrução da economia soviética que cresceria numa média de 11,9% entre 1946 a 1951, e Stálin é eleito pelo novo Comitê Central como seu secretário e o cargo de secretário-geral, antes o mais importante na hierarquia partidária e a cargo de Stálin desde o XI Congresso em 1922, seria agora ocupado por Nikita Kruschióv. A renovação dos quadros no CC seria grande, em comparação a outros Congressos.
Antes mesmo de todo este contexto sucessório no Partido e no Estado soviéticos, as bases para o revisionismo kruschiovista já estavam assentadas bem antes. Em uma Carta endereçada a Tito e Kardelj, líderes da Iugoslávia, escrita por Stálin e Molotov em 1948, advertências eram feitas sobre os riscos – reais – do revisionismo no seio dos Partidos, como no caso do Partido Comunista da Iugoslávia (depois liquidado e transformado numa chamada Liga Comunista Iugoslava). O combate ao revisionismo (e ao reformismo, influente no movimento operário em todo o mundo até hoje e bem sintetizado por Lênin quando se refere ao caso da necessidade de se ter hegemonia revolucionária no movimento operário como meio de combater o reformismo, incluindo o combate, por exemplo, a Plekanov e Kautsky) é mais do que necessário hoje e vem desde a época do próprio Marx. Sob o argumento de “liberdade de crítica”, o revisionismo é um oportunismo, pois, segundo Lênin (em Que fazer?), é a liberdade para criticar o Partido Comunista como instrumento revolucionário e não reformista, para o Partido ser eclético, negando o marxismo-leninismo. Lukáks (Carta ao stalinismo) é um exemplo de intelectual revisionista que advoga por esta “liberdade de crítica” e elogiando Kruschióv, atacando Stálin, e que fez parte do CC do Partido revisionista húngaro que promoveu a contrarrevolução em 1956. É o intelectualismo burguês. Apesar de tudo isto, das bases revisionistas estarem bem claras, a vigilância revolucionária no Partido soviético foi insuficiente e com a morte do principal líder da URSS e do MCI as forças contrarrevolucionárias ganhariam ainda mais forças.
Após a morte de Stálin, o Poder ficou nas mãos de Malenkov (escolhido para presidir o Conselho de Ministros na sessão de 15 de março de 1953 do Soviete Supremo), Béria (como membro do Conselho de Ministros juntamente com Molotov, Bulganin e Kaganovich), e Kruschióv ainda no cargo de secretário-geral do PCUS e cada vez com menos poderes. Béria, georgiano assim como Stálin, queria popularidade e iniciou um processo liberalizante na segurança do Estado, com um abrandamento das relações com o imperialismo, presente em embaixadas em Moscou. Essas relações estavam agudizadas desde 1947/1948. A retirada, em parte, do controle do Partido sobre questões de Estado, promovidas a partir de 26 de abril por Béria, era outro indicativo das mudanças de rumo no país. Os nacionalismos georgiano, bielorrusso e ucraniano seriam impulsionados com a ascensão de lideranças destes países contrários à sovietização do país. A crise política na República Democrática Alemã, em maio de 1953, influenciada pela coletivização da agricultura promovida por Ulbricht seria o estopim para o fim do curto período da liderança revisionista de Béria. Após aprovado pelo Presidium do PCUS em fins de maio de 1953, o documento Béria sobre a Alemanha trazia pontos como a defesa da unificação do país, a manutenção de uma economia privada e um freio na construção do socialismo naquele país. Ulbricht foi contra, assim como outros membros do PCUS como Kaganovich e Molotov, mas o documento seria aprovado e ratificado pelo Politburo do Partido Socialista Unificado da Alemanha. Com a abertura, agora legalizada, forças contrarrevolucionárias ganharam fôlego e iniciam uma manifestação em Berlim em 16 de junho, levando a uma necessária intervenção soviética. Os planos de Béria de liberalizar e derrotar Ulbricht caem por terra. Dez dias depois desse levante contrarrevolucionário, fracassado, na RDA, Béria é preso em uma sessão do Presidium do PCUS. Kruschióv, com o Partido nas mãos, no complô para a expulsão de Béria deste órgão, tinha o apoio de Molotov, Malenkov, Bulganin, Saburov, Mikoian, Kaganovich, Voroshilov (este, mesmo sendo aliado de Béria) e Pervukhin. Béria ficaria totalmente isolado. Kruschióv garantiu apoio dos militares, do Exército Vermelho (Marechal Zhukov à frente). O Golpe de Estado, que se iniciara com a prisão de Béria, seria vitorioso, selando o controle de Nikita sobre o Partido e sobre o Estado soviéticos.
No Brasil, com a aparência de certa normalidade o que acontecia na União Soviética, apenas em 18 de julho, quase um mês depois, o semanário Voz Operária, órgão do PCB, publicaria o Editorial do Pravda (A união indestrutível do Partido, do Governo e do povo soviético), do dia 10 de julho, sobre a vaga informação da “expulsão do criminoso Lavrenti Béria” do Partido e da URSS. No Editorial é citado o informe de Malenkov no Pleno do Presidium do PCUS, realizado em fins de junho, onde se alega que Béria, colocado como agente do imperialismo, realizando o trabalho de sapa e que queria colocar o Ministério do Interior (MVD) acima do Governo e do Partido e acusando-o de fomentar intrigas entre os povos da URSS, baseado no nacionalismo burguês. A questão do “culto à personalidade” já era denunciada no Editorial. A principal movimentação no Partido Comunista do Brasil era, naquele momento, os preparativos para a realização do seu IV Congresso Nacional, adiado desde 1946 por questões relativas à perseguição que o PCB seria submetido no Governo Dutra. Pela divulgação dos documentos publicados pelo Pravda, percebe-se a linha escolhida pelo MCI: seguir a versão oficial da maioria do PCUS, ou seja, de que Béria era um “criminoso”, embora o editorial fosse vago na elucidação de como se efetuou a prisão do dirigente. Nikita Kruschióv, após o Golpe de Estado contra Béria e com apoio quase unânime de todo o Presidium do Partido Comunista da União Soviética, assume o controle de toda a estrutura soviética (Estado e Partido). As mudanças não ficariam somente no campo político/administrativo, mas, principalmente, na economia. Com Kruschióv, o planejamento central seria afetado e o monopólio do comércio exterior muito prejudicado. Como destacou Luís Fernandes a abolição dos ministérios centrais foi a principal medida de Kruschióv contra a centralização planejada, dando poderes – ao invés do antigo controle centralizado de produção, distribuição e exportação – a 105 conselhos econômicos regionais. O Sexto Plano Quinquenal, aprovado em 1956 no XX Congresso, foi suspenso e o Sétimo, com duração de sete anos, iniciado a partir de 1958. A economia começa a cair, devido à regionalização e as disparidades regionais: de 8% em 1959 para 3,8% em 1963. A crise econômica seria uma das causas da queda de Kruschióv em 1964.
O IV Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCB), entre 7 a 11 de novembro de 1954, contou com o informe de Diógenes Arruda (secretário de organização do PCB e segundo homem na hierarquia partidária): O Partido Comunista do Brasil – Bandeira de Luta e de Vitória e onde classificava o Brasil como país semicolonial e semifeudal, com uma interferência direta do imperialismo norte-americano. O próprio Arruda destacava a baixa qualidade nos debates nos preparativos para o Congresso. O dirigente histórico, ex-secretário-geral (1931 a 1932), Fernando de Lacerda, em um artigo para a Tribuna de Debates (Voz Operária, 13 de março de 1954) defendia que o PCB deveria ter cuidado com os “delírios esquerdistas” e não acreditava na força do Partido para construir uma Frente Ampla, colocando em dúvida a própria questão agrária como primordial, ou seja, uma visão revisionista que mais tarde seria defendida por Caio Pardo Jr. e acabaria dominando ideologicamente o PCB. O Governo Café Filho, sucessor de Vargas (que havia se suicidado em agosto do mesmo ano), era considerado, assim como o seu antecessor, de “traição nacional”. O PCB defendia, em seu Programa, a construção de uma “ampla frente-única antiimperialista e antifeudal”: a Frente Democrática de Libertação Nacional (FDLN) unindo operários e camponeses, que seriam hegemônicos nessa Frente, a setores da pequena-burguesia nacional e a inevitável “revolução democrática e nacional-libertadora, é inevitável a substituição do governo de latifundiários e grandes capitalistas. O povo brasileiro levantar-se-á contra o atual estado de coisas, não permitirá que se reduza o Brasil a colônia dos Estados Unidos”. A falta da tradição social-democrata no movimento operário brasileiro em seu início era uma das questões que o PCB colocava como problemáticas para a assimilação do marxismo-leninismo entre membros do Partido.
O XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), divisor no Movimento Comunista Internacional, foi realizado em Moscou entre 14 a 26 de fevereiro de 1956 e poucos dias depois já repercutia no Brasil, principalmente no Partido Comunista do Brasil (PCB). As notícias eram, ainda, confusas, pois a delegação do PCB ao Congresso, chefiada pelo secretário de organização do Partido, Diógenes Arruda, não retornara ao Brasil. Arruda tinha compromissos na China, onde se realizaria o VIII Congresso do Partido Comunista da China, e regressaria a URSS para depois voltar ao Brasil, o que aconteceu apenas próximo do fim de 1956. Artigos originados dos Partidos Comunistas Italiano e da China eram publicados na Voz Operária a partir de março. Um longo editorial elogioso aos comunistas soviéticos, do Diário do Povo, órgão oficial do Partido chinês, intitulado A experiência histórica da Ditadura do Proletariado, sairia na edição de 21 de abril do semanário do PCB que dizia ser, sobre o “culto à personalidade” apresentado pelo PCUS, uma “autocrítica” para se libertar “dos seus erros, sem nada perder com isso”. O editorial acrescentava: “Stálin, cometeu graves erros no último período de sua vida”. Mais além, ainda sobre Stálin: “Agiu de modo subjetivista, manifestou unilateralidade em seus pontos de vista e adotou resoluções errôneas em muitas questões importantes, o que trouxe as mais graves consequências”. É oportuno destacar que a liderança do Partido Comunista da China vivia contradições e a influência danosa de revisionistas como Liu Shaoqi, mais tarde afastado – corretamente – pelos ventos purificadores da Grande Revolução Cultural Proletária. Neste mesmo instante, na Hungria e na Polônia socialistas, milhares de condenados são reabilitados e voltam aos partidos daqueles países, como os casos de Rakósi e Gomulka, assim como é concretizado o restabelecimento das relações com a Iugoslávia de Tito. Pouco tempo depois explodem as contrarrevoluções na Polônia e na Hungria. Coincidência?
O debate, nas páginas dos periódicos do Partido Comunista do Brasil (PCB) Imprensa Popular e Voz Operária, foi iniciado logo após a publicação do informe A luta pelo caminho italiano para o socialismo de Palmiro Togliatti ao VIII Congresso do Partido Comunista Italiano. Neste informe, que – segundo Palmiro – trazia “fatos novos”, foi publicado na edição de 15 de setembro de 1956, o secretário-geral do PCI utiliza Gramsci – de forma cínica – para justificar sua guinada à direita e à submissão ao revisionismo kruschiovista, adotando o caminho pacífico e parlamentar para a revolução na Itália (que deu no que deu: o fim do próprio PCI em 1990 e a derrocada dos comunistas italianos). Já na edição de 6 de outubro, a Voz Operária e a Imprensa Popular, conjuntamente, publicariam uma carta do quadro Maurício Pinto Ferreira, cobrando uma resposta do PCB sobre o que se falava do XX Congresso que interessava inclusive às massas. Nesta mesma edição do semanário comunista um artigo (Não se poderia adiar uma discussão que já está em todas as cabeças) de João Batista de Lima i