"Líbia, outra guerra que não vai ser evitada"
- NOVACULTURA.info
- 12 de set.
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É complexo enumerar as guerras que a Líbia tem vivido desde que o Ocidente decidiu acabar com ela. Alguns, muito ingênuos, acreditamos no início que se tratava apenas de pôr fim ao sonho panafricanista do coronel Gaddafi e ao exitoso processo que ficou conhecido como Jamahiriya ou o “Estado das massas”, embora também não tenhamos demorado muito a entender que o projeto era outro: balcanizá-la, para manter melhor controle sobre seus recursos naturais, fundamentalmente petróleo e água, nada menos.
Desde 19 de março de 2011, quando os bombardeios da OTAN começaram a demolir o país mais desenvolvido do continente, até hoje, não passou um único dia sem que houvesse uma morte como consequência da bendita Primavera Árabe.
Já são incontáveis os conflitos armados de diferentes intensidades que, desde então e particularmente desde o desaparecimento do Coronel (20 de outubro de 2011), se sucedem no país.
Encerrada a era pós-Gaddafi, em 2014 explode a guerra civil, que divide o país em dois grandes blocos, além de que, dentro de cada um deles, diferentes forças se movimentam, que, mais de uma década depois, ainda permanecem autônomas.
Um mosaico indecifrável de nomes e siglas que pretendem remeter a um contexto pseudo-governamental, como Brigada 116, Aparelho de Apoio à Estabilização, 444.ª Brigada de Combate, Exército Nacional Líbio, Força Especial de Dissuasão (al-Radaa), Força Geral de Segurança, Força de Operações Conjuntas — que não passam de bandos armados, ao melhor estilo das gangues centro-americanas ou dos grandes cartéis colombianos, mexicanos ou brasileiros, que, ao não terem uma força estatal que os persiga, se autorregulam pela lógica do peixe grande que engole o menor. Isso os obriga a constantes acordos e pactos, que podem se romper de um momento a outro, conforme consigam se associar a “algo” mais poderoso. Esse algo poderia ser entendido como as forças armadas de alguma potência estrangeira: Turquia, no caso das milícias tripolitanas; ou Egito, Emirados Árabes Unidos (EAU) ou Jordânia, no caso do Exército Nacional Líbio (ENL) de Khalifa Haftar.
Foi isso o que permitiu guerras de magnitude como a que se travou entre 2019 e 2020, por parte do Exército de Unidade Nacional, do general Khalifa Haftar, que controla o Leste, o Sul e grande parte da linha costeira, contra as milícias tripolitanas do Governo de Acordo Nacional (GAN), cujo poder territorial não ultrapassa muito além dos limites da capital, financiadas pelas Nações Unidas, que finalmente conseguiram detê-lo às portas de Trípoli. Além disso, somam-se as inúmeras confrontações de milícias tribais ou cartéis em disputa por territórios, controle de rotas, simples contrabando ou outros negócios, como o tráfico de petróleo, drogas e a regulação obviamente ilegal do tráfico de refugiados desde seus portos rumo à Europa.
A anarquia que sustentou a dissolução da nação magrebina permitiu que cidades como Trípoli, Misrata, Sirte, Bengasi ou Derna contem com uma ou várias milícias, que podem se estruturar ou se dividir segundo as necessidades políticas de determinado poder, que quase sempre possuem ramificações no exterior, sejam governos ou empresas multinacionais.
Ainda que não haja registros confiáveis, as estimativas internacionais apontam que os grupos armados de Trípoli mobilizam milhares de combatentes, que contam, além disso, com veículos blindados, defesas aéreas e armamento pesado.
Uma guerra de rua e de palácio
A decomposição líbia alcançou sua máxima expressão nas milícias de Trípoli, que de alguma maneira sustentam o Governo de Acordo Nacional, designado pelas Nações Unidas, embora também suas disputas palacianas tenham obrigado a mudar as principais figuras em diversas ocasiões, chegando ao cargo de primeiro-ministro Abdul Hamid Dbeibah, em 2021, que pretende estabelecer o controle sobre as instituições governamentais, o banco central e as empresas estatais, até agora dominadas por diferentes fatores de poder, que, por sua vez, têm necessariamente de pactuar com alguma milícia que lhes sirva de guarda de corpo.
A disputa que estourou em 2022, entre Dbeibah e Fathi Bashagha, atual ministro do Interior, arrastou as diversas milícias tripolitanas a se posicionarem de um lado ou de outro dos rivais políticos, abrindo uma brecha que de modo algum se fechou e desde então gera choques esporádicos em diferentes bairros de Trípoli.
Desde o fim de agosto registra-se o posicionamento de milícias rivais em torno de pontos estratégicos da capital. Expondo as divisões ideológicas e de interesses enfrentados por maior influência dentro de diferentes setores estatais. O que provoca novamente inquietação na população, que se prepara para uma nova rodada de violência.
Nos distritos do sul e do leste da capital se posicionaram ocidentais e meridionais de Trípoli. Enquanto que, ao oriente da cidade, se estabeleceram destacamentos da Força Especial de Dissuasão, acompanhados por milícias da cidade de Misrata.
Segundo alguns informes, a confrontação não é apenas territorial e pelo controle de ativos estratégicos — fator que dominou os enfrentamentos anteriores — mas também envolve diferenças ideológicas.
Dbeibah formou uma importante aliança com quem fora um representante da ortodoxia religiosa dentro do espectro político do país, o grande mufti Sadiq al-Ghariani, aliado da Irmandade Muçulmana.
Algumas informações assinalam que, neste mosaico de organizações armadas que oscilam entre os grupos políticos combatentes provenientes das cidades de Bengasi e Derna, se teriam integrado à Brigada 444 e à Brigada 111 (duas agrupações diferentes), que apoiam o Governo de Unidade Nacional. O primeiro-ministro também conta com o apoio da Força Geral de Segurança.
No campo que se opõe a Dbeibah, a principal milícia envolvida é a Força Especial de Dissuasão ou al-Radaa, além de outras milícias como o Batalhão Escudo da cidade de Tajoura, que, em sua trajetória como força “alugável”, já entrou em choque em várias oportunidades com os de al-Radaa.
Desde maio passado, quando forças leais a Dbeibah assaltaram o quartel-general do Aparelho de Apoio à Estabilização, assassinando seu líder, Abdel Ghani al-Kikli, conhecido como Ghneiwa (ver: Líbia, um iceberg descontrolado no Magrebe), provocou-se uma grande debacle no interior de sua força, que perdeu muita presença, foi obrigada a ceder posições e buscar alianças, às vezes pouco vantajosas, apenas para sobreviver e se reestruturar.
Neste momento, as brigadas 444 e 111, que apoiam Dbeibah, são consideradas as melhor preparadas, justamente graças aos ingentes recursos que o Governo de Acordo Nacional destina a essas milícias. Segundo alguns informes, na época em que assaltaram o quartel-general de al-Kikli, já contavam com drones importados da Ucrânia. Estima-se que, além disso, Dbeibah disponha de cerca de 17 mil homens, mobilizados desde Misrata e outras cidades ocidentais. Enquanto isso, a al-Radaa ainda disporia de grande quantidade de armamento leve e médio, além de unidades treinadas para o combate urbano.
Esses preparativos bélicos entre as milícias que apoiam ou combatem o governo de Trípoli, oficialmente reconhecido pelas Nações Unidas, são música celestial para Khalifa Haftar e seu Exército Nacional Líbio (ENL), que poderia se envolver diretamente no conflito, após ter fracassado na ofensiva contra Trípoli em 2019.
Soube-se que, no domingo 31 de agosto, mobilizou o 152.º Batalhão de Infantaria Mecanizada, com vistas a tomar posições diante de uma nova crise armada no interior de Trípoli. Embora não tenham sido reveladas as posições que o ENL ocuparia.
Na perspectiva das consequências que a situação líbia pode acarretar, o governo egípcio instou seus cidadãos no país vizinho a permanecer em suas residências e manter comunicação com seus consulados.
O alerta ocorreu diante dos protestos cada vez mais frequentes contra o governo de Dbeibah, cuja repressão já provocou vítimas fatais, dezenas de feridos e detidos, o que, mais cedo ou mais tarde, servirá para a eclosão de outra guerra que não vai ser evitada.
Por Guadi Calvo, no Línea Internacional
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