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"Caxemira, mais uma vez sob tempestades"

  • Foto do escritor: NOVACULTURA.info
    NOVACULTURA.info
  • 2 de mai.
  • 5 min de leitura

 

Dos mais de três séculos e meio de expansão britânica pela Índia, sir Cyril Radcliffe teve apenas quarenta dias, em 1947, para traçar uma fronteira no coração do Raj britânico (Índia, Paquistão, Bangladesh e Birmânia), e essa pressa ainda é sentida até hoje.

 

O que hoje se conhece como a Linha Radcliffe, que marca a sempre turbulenta fronteira entre uma Índia profundamente hinduísta e um Paquistão fervorosamente muçulmano, separou arbitrariamente, não apenas as províncias do Punjab e de Bengala, mas também, por pressa ou pura ignorância, tribos, etnias e comunidades religiosas que haviam permanecido unidas desde antes das invasões mongóis e persas.

 

O traçado imperial e diabólico de Sir Radcliffe — um advogado sem qualquer conhecimento sobre a região — foi interrompido ao chegar à região de Jammu-Caxemira, então um principado independente. Isso deu aos britânicos a oportunidade de estabelecer um ponto de instabilidade futura. 80% da população era muçulmana, enquanto seu marajá, Hari Singh, hindu fervoroso, buscou apoio da Índia. Assim, através de um tratado conhecido como o “Instrumento de Adesão de Jammu e Caxemira”, o marajá incorporou o principado à Índia.

 

A crise não resultou apenas na primeira guerra pela Caxemira entre as duas potências nucleares, mas provocou mais três: em 1965; a de 1971, no contexto da luta pela independência de Bangladesh, na qual a intervenção indiana foi crucial para a vitória dos independentistas; e, por fim, a Guerra de Kargil, no Himalaia, em 1999, travada a mais de cinco mil metros de altitude.

 

Essas guerras são pontuadas, quase diariamente, por choques fronteiriços que, de tempos em tempos, deixam mortos e promessas de mais conflitos. Essas ações costumam ser armadas e incentivadas pelos serviços de inteligência, conforme as necessidades internas de cada país.

 

Essas agências controlam grupos nacionalistas e religiosos que atuam de cada lado da Linha de Controle (LC), estabelecida em 1972, após o Acordo de Simla.

 

É nesse contexto, de ataques quase cotidianos na Linha de Controle, que ocorreu o atentado na cidade turística de Pahalgam, na Caxemira indiana, que deixou ao menos vinte e oito mortos e dezessete feridos. As vítimas foram escolhidas após terem seus documentos verificados e checado se eram circuncidadas ou não. Rapidamente, a autoria da ação foi reivindicada por um grupo desconhecido: Resistência da Caxemira.

 

Aparentemente sem relação direta com esse ataque, no distrito de Baramulla, no centro da Caxemira, segundo fontes do exército indiano, uma patrulha militar impediu a entrada de pelo menos dois homens armados vindos do Paquistão, o que resultou em um intenso tiroteio.

 

Sobre o ataque aos turistas: segundo fontes policiais indianas, ele ocorreu contra um grupo que visitava o vale de Baisaran, a cerca de 5 quilômetros de Pahalgam, uma área alpina que no ano passado recebeu três milhões e meio de visitantes sem qualquer incidente registrado.

 

A magnitude do ataque não tem precedentes desde novembro de 2008, quando ocorreu uma gigantesca operação de terroristas muçulmanos com base no Paquistão. O atentado, coordenado contra uma dúzia de alvos, deixou cerca de 180 mortos.

 

Em um comunicado, a Resistência da Caxemira afirma que o ataque responde ao plano do governo indiano de reverter a composição demográfica da região, majoritariamente muçulmana, incentivando o assentamento de famílias hindus. Estima-se que já tenham chegado cerca de noventa mil pessoas sob esse “programa”. Essa ação está diretamente ligada à revogação, em 2019, dos artigos 370 e 35-A da constituição indiana, que conferiam certa autonomia a Jammu e Caxemira.

 

Segundo a inteligência indiana, por trás do nome Resistência da Caxemira escondem-se organizações armadas com sede no Paquistão: Lashkar-e-Taiba (Exército dos Puros) e Hizbul Mujahideen (Partido dos Combatentes Santos), com presença na região há décadas e suspeitas de financiamento pela poderosa Inter-Services Intelligence (ISI), o serviço de inteligência do exército paquistanês.

 

Após o ataque, forças de segurança lançaram uma operação de busca contra os agressores – ao menos quatro – que abriram fogo contra os turistas a curta distância. Todos eram cidadãos indianos. Resta saber se o ataque foi uma ação isolada ou o início de uma nova onda terrorista.

 

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que desde sua chegada ao poder em 2014, e durante seus dois mandatos como Ministro-Chefe do Estado de Gujarat (2002–2014), implementou políticas agressivamente anti-muçulmanas — sendo acusado de estimular, por meio de grupos de ultradireita ligados ao seu partido Bharatiya Janata Party (Partido do Povo Indiano) e à Rashtriya Swayamsevak Sangh (Associação Patriótica Nacional) ou RSS — episódios que causaram milhares de mortes desde 2002.

 

Modi foi surpreendido pelo ataque durante uma visita oficial à Arábia Saudita e o qualificou como um “ato atroz”, prometendo que seus autores “serão perseguidos até os confins da Terra”.

 

Tudo pode escalar

 

Índia e Paquistão, desde a partição de 1947, quando a Linha Radcliffe foi cruzada por cerca de 15 milhões de deslocados que, abandonando tudo, buscavam fugir dos dois milhões e meio de mortos deixados pelos massacres inter-religiosos.

 

São lendários os trens que cruzavam a fronteira cheios de cadáveres muçulmanos, sikhs e hindus, vítimas de emboscadas. As três maiores religiões do antigo Raj britânico abriram feridas que, embora tenham cicatrizado em muitas comunidades, os fanáticos vêm fazendo de tudo para mantê-las abertas – com destaque para o papel de Narendra Modi.

 

Assim, o ocorrido em Pahalgam representa uma extraordinária oportunidade para o premiê indiano intensificar suas críticas ao islã e, especialmente, a seus vizinhos do norte. Alguns acreditam, inclusive, na possibilidade de que o grupo até então desconhecido, Resistência da Caxemira, tenha sido uma ação de falsa bandeira promovida por Modi – que já fez coisas piores – para aprofundar o rompimento entre o Paquistão e Pequim, devido aos investimentos bilionários chineses, e assim se aproximar ainda mais de Trump, a quem visitou em Washington na semana anterior e com quem teve excelentes relações durante o primeiro mandato do “czar de Mar-a-Lago”.

 

Como primeira medida, Nova DElhi suspendeu o Tratado das Águas do Indo, de 1960. O governo de Shehbaz Sharif, primeiro-ministro do Paquistão, advertiu que a suspensão do fornecimento de água pela Índia seria considerada um ato de guerra. Islamabad também declarou encerrado o Acordo de Simla de 1972, que previa a resolução pacífica e bilateral de disputas, excluindo a intervenção de terceiros.

 

Isso abre a possibilidade de uma ação de grande escala por parte da Índia. Vale lembrar que, em 2019, a morte de cerca de cinquenta policiais indianos em uma emboscada por nacionalistas caxemires colocou os dois países à beira da guerra – com bombardeios e até aviões abatidos.

 

Nesse contexto, não se pode ignorar o ataque ao Jaffar Express, de 11 de março passado, atribuído ao Exército de Libertação do Baluchistão (BLA), que deixou cerca de setenta mortos na região. Islamabad acusou diversas vezes Nova Delhi de apoiar e financiar não apenas o BLA, mas também o Tehrik-e-Taliban Pakistan (TTP), que frequentemente opera a partir da fronteira afegã. Isso tem causado constantes tensões diplomáticas entre o Paquistão e os mulás afegãos, que permitem que os terroristas usem seu território como base de inverno para se reorganizarem e lançarem ataques. O Paquistão sugere, inclusive, que a Índia estaria por trás de Cabul, incentivando a atuação do TTP em troca de apoio econômico e diplomático.

 

Nova Delhi já ordenou o fechamento da fronteira norte, aconselhou seus cidadãos a evitarem viagens ao Paquistão e retirou grande parte do pessoal diplomático de sua embaixada em Islamabad e consulados.

 

Por sua vez, o Paquistão respondeu com o fechamento de seu espaço aéreo para companhias indianas, a suspensão de todo o comércio com a Índia e o cancelamento de vistos concedidos a cidadãos indianos.

 

No cenário internacional, os dois maiores aliados do Paquistão – China e Arábia Saudita – condenaram o ataque. Moscou e Washington prometeram apoio total à Índia. Enquanto isso, em cidades dos dois países, ocorrem manifestações exigindo represálias mútuas, em uma tempestade que parece apenas estar começando.

 

Por Guadi Calvo, no Línea Internacional

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