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"Haiti na cartografia da urgência"

  • Foto do escritor: NOVACULTURA.info
    NOVACULTURA.info
  • há 4 dias
  • 5 min de leitura

A atual situação política e social do Haiti resume-se na violência generalizada por parte das gangues criminosas, que tomaram os 11 milhões de haitianos como reféns, tornando esta crise sem precedentes, pelo menos na história moderna.

 

Nesta antiga colônia francesa, seus cidadãos foram castigados com a ditadura de François Duvalier, o “Papa Doc”, de 1957 a 1971, seguida pela de seu filho Jean-Claude, o “Baby Doc”, que permaneceu no poder até 1986. Além da pobreza gerada, o terror e o obscurantismo usados para governar mergulharam a população em um complexo sistema de crenças que só inspira medo e atraso. A superstição, magnificada pelos Duvalier, passou a compor o elemento cultural mais característico do país, sendo continuada pelos governos seguintes, o que faz com que muitos setores da população ainda vivam como se estivessem no século XVII.

 

A classe política não mudou e apenas inovou nos esquemas de corrupção, levando o país a viver sob o fogo cruzado de gangues criminosas, que ocupam tudo, disputando bairro a bairro, quarteirão a quarteirão e casa por casa para saquear, roubar, sequestrar para extorsão, traficar drogas e inserir mulheres no mercado da prostituição.

 

À anêmica resposta do Estado, representada pela Polícia Nacional do Haiti (PNH), somaram-se, há alguns meses, algumas centenas de policiais e gendarmes do Quênia, que também foram sobrecarregados pelo descontrole social.

 

Embora o complexo panorama haitiano lembre imediatamente a Somália dos últimos 35 anos, o Afeganistão após a retirada soviética em 1989 até depois da invasão americana de 2001, ou o Camboja sob o Khmer Vermelho (1975-1979), em todos esses casos os grupos dominantes seguiam alguma ideologia política ou “verdade” religiosa que lhes conferia identidade e até certa ordem. No caso haitiano, as gangues atuam exclusivamente para delinquir.

 

Situações de anarquia semelhantes existem hoje em dezenas de países. Por exemplo, o Sudão, envolto em uma guerra civil completa há dois anos, ou Myanmar, onde a junta militar que depôs um governo democraticamente eleito em 2021 enfrenta diversas guerrilhas com interesses políticos, étnicos e religiosos distintos – unidas apenas por um inimigo comum. Caso vençam, talvez a nação como a conhecemos deixe de existir.

 

Um caso peculiar é o da Líbia pós-Gaddafi. Desde 2010, diferentes potências estrangeiras influenciam Trípoli e Benghazi conforme seus próprios interesses, criando uma divisão que talvez nunca se feche. Esse sistema de bipolaridade mantém a que já foi a nação mais progressista do continente encalhada entre a guerra civil e o colapso do Estado.

 

É verdade que, ao longo da história, muitos países perderam o controle sobre partes de seu território. Isso acontece atualmente no leste da República Democrática do Congo, onde centenas de grupos insurgentes desafiam a autoridade de Kinshasa. Desde o início do ano, o Movimento 23 de Março (M-23) tem se mostrado particularmente ativo. Algo semelhante ocorre no norte de Burkina Faso e Mali, onde grupos ligados ao Daesh e à al-Qaeda – mesmo com a presença dos EUA e da França – tornaram essas regiões ingovernáveis. Forças regulares lutam palmo a palmo para manter ou retomar o controle, em conflitos que já duram dez anos.

 

O mesmo ocorre na Nigéria, onde o Boko Haram e seus dissidentes enfrentam o poder estatal desde 2009, resultando em milhares de mortes e milhões de deslocados. Isso obriga o governo a investir bilhões em material militar, que acaba sendo desperdiçado por conta da corrupção entre políticos e altos escalões.

 

Diante desses exemplos, a situação do Haiti, após o assassinato do presidente Jovenel Moïse em abril de 2021 por mercenários colombianos, é perigosamente inédita. Com tons distópicos, remete ao filme australiano Mad Max, em que, assim como no Haiti, gangues armadas percorrem um mundo sem lei nem ordem.

 

Este cenário é até mais grave do que o vivido pelos cartéis de drogas na Colômbia ou no México, que, graças à corrupção político-policial, se tornaram –  e talvez ainda sejam, em algumas regiões – uma espécie de poder paralelo. Ou as imensas gangues juvenis da América Central, conhecidas como maras, que foram combatidas com ferocidade pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele, colocando o Estado no mesmo nível de brutalidade dos criminosos.

 

Nesta cartografia da urgência, talvez seja mais acertado comparar o Haiti com Ruanda em 1994, e não com a Somália. Quando o avião do presidente Juvénal Habyarimana foi abatido, junto com o de Cyprien Ntaryamira, presidente de Burundi, desencadeou-se um massacre no qual, em apenas cem dias, os hutus massacraram quase um milhão de tutsis –  cerca de 70% da população desse grupo étnico.

 

O coração sangrando do Haiti

 

Está claro que, na ordem internacional, desde sua independência em 1811, ninguém nunca se importou com o Haiti — além da França, ferida em seu orgulho. Sem petróleo, urânio, ouro, e com milhões de negros analfabetos e famintos, as numerosas intervenções e ocupações estrangeiras jamais resolveram nada.

 

Não há melhor exemplo disso do que o momento atual, em que a crise se aprofunda e nenhum Estado ou organismo internacional faz nada, muito menos agora, paralisados pelos delírios psiquiátricos de Donald Trump.

 

As gangues – estima-se cerca de 200 – continuam expandindo seu controle, especialmente sobre Porto Príncipe, onde já ocupam mais de 80% da cidade, o que significa meio milhão de pessoas submetidas a códigos regidos pela cocaína, o “bazuco” e drogas sintéticas.

 

Outro meio milhão de moradores da capital já fugiu para o interior da ilha, escapando de fenômenos como a violência sexual infantil, que disparou a números aterradores.

 

Some-se a isso a escassez de alimentos e água potável. Muitos mencionam também a falta de serviços de saúde e higiene –  ignorando que, para a esmagadora maioria do povo haitiano, esses “luxos” jamais existiram. Em questões de saúde, o povo conta com o vodu, religião oficial desde 2003; caso contrário, a morte se encarregará de resolver.

 

Após a renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry em abril de 2024, o país ficou acéfalo, improvisando um Conselho de Transição que, embora conte com o apoio nominal dos Estados Unidos, jamais conseguiu se estabelecer, preso ao discurso populista, fracassando nas tarefas fundamentais: estabilizar o país e organizar eleições presidenciais.

 

O prometido envio de cerca de 800 policiais quenianos a Porto Príncipe, conforme acordo entre Nairóbi e Washington de 2023, foi o único gesto concreto dos EUA em prol da estabilização do país –  que, aliás, ocuparam entre 1915 e 1934, continuando a influenciar seu destino até a morte de Moïse.

 

Os quenianos são insuficientes para controlar sequer a capital –  muito menos o restante do país. Segundo especialistas locais, seriam necessários de 2.500 a 3.000 homens para estabilizar o país; mesmo assim, uma força insuficiente para conter a multidão de gangues, compostas por centenas de membros, bem armados, constantemente drogados e, pior, convencidos de seu estado de wanga binefik (estado de proteção), segundo o Liv des Mystères (Livro dos Mistérios).

 

As armas chegam às gangues por meio do mercado negro da Flórida, em lanchas rápidas que nunca são detectadas, ou pela fronteira com a República Dominicana –  além daquelas vendidas por membros da própria polícia.

 

A comunidade internacional parece se recusar a enfrentar os problemas estruturais que o Haiti carrega desde o século XIX, agravados governo após governo, terremoto após terremoto.

 

Estima-se que desde 2023, os mortos já somem cerca de sete mil; embora esse número ainda não se compare ao genocídio de Ruanda, sabemos que é apenas uma questão de tempo, persistência –  e vodu.

 

Por Guadi Calvo, no Línea Internacional

 

 

Nota dos editores: nem todas as posições expressas neste texto ou pelo autor condizem necessariamente e/ou integralmente com a linha política de nosso site ou da União Reconstrução Comunista.

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