Losurdo: "Revolução de Outubro e democracia no mundo"

Introdução A ideologia e a historiografia ocidental parecem querer resumir o balanço de um século dramático em uma historieta edificante, que pode ser assim sintetizada: no início do século XX, uma moça fascinante e virtuosa (a senhorita Democracia) é agredida, primeiro por um bruto (o senhor Comunismo) e depois por outro (o senhor Nazi-fascismo); aproveitando também os contrastes entre os dois e através de complexos eventos, a moça consegue enfim libertar-se da terrível ameaça; tornando-se nesse meio tempo mais madura, mas sem perder o seu fascínio, a senhorita Democracia pode agora coroar o seu sonho de amor mediante o casamento com o senhor Capitalismo; cercada pelo respeito e admiração geral, o feliz e inseparável casal adora levar a sua vida entre Washington e Nova Iorque, entre a Casa Branca e Wall Street. Estando assim as coisas, não é mais permitido ter qualquer dúvida: o comunismo é o inimigo implacável da democracia, a qual pôde consolidar-se e desenvolver-se apenas depois de tê-lo derrotado. 1. A democracia como superação de três grandes discriminações Todavia, esta historieta edificante nada tem a ver com a história real. A democracia, assim como hoje a entendemos, pressupõe o sufrágio universal: independentemente do sexo (ou gênero), da riqueza e da raça, cada indivíduo deve ser reconhecido como titular de direitos políticos, do direito eleitoral ativo e passivo, do direito de votar nos seus próprios representantes e de ser eventualmente eleito nos organismos representativos. Isto é, nos nossos dias a democracia, até em seu significado mais elementar e imediato, implica a superação de três grandes discriminações (sexual ou de gênero, censitária e racial) que eram ainda vivas e vitais às vésperas do Outubro de 1917, e que foram superadas apenas com a contribuição, por vezes decisiva, do movimento político saído da revolução bolchevique. Comecemos com a cláusula da exclusão, macroscópica, que negava o gozo dos direitos políticos à metade do gênero humano, isto é, às mulheres. Na Inglaterra, as senhoras Pankhurst (mãe e filha), que promoviam a luta contra tais discriminações e dirigiam o movimento feminista das sufragistas, eram obrigadas a visitar periodicamente as prisões do país. A situação não era muito diferente nos outros grandes países do Ocidente. Ao contrário, foi Lênin, em O Estado e a Revolução, quem denunciou a “exclusão das mulheres” dos direitos políticos como uma confirmação clamorosa do caráter discriminatório da “democracia capitalista”. Tal discriminação fora cancelada na Rússia já após a revolução de fevereiro, por Gramsci saudada como “revolução proletária” pelo seu papel de protagonista desenvolvido no seio das massas operárias, como o confirmava o fato de que a revolução havia introduzido “o sufrágio universal, estendendo-o também às mulheres”. O mesmíssimo caminho fora depois percorrido pela república de Weimar, saída da “revolução de novembro” que eclodiu na Alemanha a um ano de distância da Revolução de Outubro, e sob a influência e como imitação desta última. Sucessivamente, na mesma direção se moviam também os Estados Unidos. Na Itália e na França, ao contrário, as mulheres conquistaram os direitos políticos somente após a Segunda Guerra Mundial, na onda da Resistência antifascista, e para a qual os comunistas contribuíram de modo essencial ou decisivo. Considerações análogas podem ser feitas a propósito da segunda grande discriminação, ela que também há tanto tempo tem caracterizado a tradição liberal: refiro-me à discriminação censitária, que excluía dos direitos políticos ativos e passivos os não proprietários, os destituídos de riqueza, as massas populares. Já eficazmente combatida pelo movimento socialista e operário, mesmo se profundamente enfraquecida, esta continuava a resistir teimosamente às vésperas da Revolução de Outubro. No ensaio sobre o imperialismo e em O Estado e a Revolução, Lênin chamava a atenção para as persistentes discriminações censitárias, camufladas mediante os requisitos de residência e outros “‘pequenos’ (os pretensos pequenos) detalhes da legislação eleitoral”, que em países como a Grã-Bretanha comportavam a exclusão dos direitos políticos do “estrato inferior propriamente proletário”. É possível acrescentar que mesmo o país clássico da tradição liberal tardou de modo particular a afirmar plenamente o princípio “uma cabeça, um voto”. Só no ano de 1948 desapareceram os últimos traços do “voto plural”, a seu tempo teorizado e celebrado por John Stuart Mill: os membros das classes superiores considerados mais inteligentes e mais dignos gozavam do direito de exprimir mais de um voto. Retornava, assim, pela janela a discriminação censitária expulsa pela porta. No que diz respeito à Itália, nos manuais escolares se pode ler que a discriminação censitária foi cancelada em 1912, mas, na realidade, continuavam a subsistir as “pequenas” cláusulas de exclusão denunciadas por Lênin. Não é este, porém, o ponto mais importante. A lei aprovada naquele ano concedia graciosamente os direitos políticos só àqueles cidadãos do sexo masculino que, mesmo se de modesta condição social, deveriam ser distinguidos ou por “títulos de cultura ou de honra” ou pelo valor militar mostrado no curso da guerra contra a Líbia terminada pouco antes. Em outras palavras, não se tratava do reconhecimento de um direito universal, mas de uma recompensa pela prova de coragem e de ardor bélico que haviam dado no decorrer de uma conquista colonial de traços brutais e, por vezes, genocidas. Em cada caso, também lá onde o sufrágio (masculino) tornou-se universal ou virtualmente universal, isso não valia para a Câmara Alta, que continuava a ser apanágio da nobreza e das classes superiores. No Senado italiano tomavam assento, na qualidade de membros de direito, os príncipes da Casa Savoia: todos os outros eram nomeados vitaliciamente pelo rei, por recomendação do presidente do Conselho. Não era diversa a composição das Câmaras Altas nos diferentes países da Europa que, à exceção da França, não eram eletivas, mas caracterizadas por um entrelaçamento de hereditariedade e nomeação régia. Até no que diz respeito ao Senado da Terceira República francesa, que mesmo tendo atrás de si uma série ininterrupta de levantes revolucionários que culminaram na Comuna, é de se notar que isso resultava de uma eleição indireta e era constituído de modo tal a garantir uma super-representação ao campo (e à conservação político-social), em detrimento obviamente de Paris e das maiores cidades, isto é, em detrimento dos centros urbanos considerados o foco da revolução. Também na Grã-Bretanha, não obstante a secular tradição liberal às costas, a Câmara Alta (inteiramente hereditária, excetuados poucos bispos e juízes) não tinha nada de democrática, e nítido era o controle exercido pela aristocracia na esfera pública; uma situação não muito diversa daquela que caracterizava Alemanha e Áustria. É por isso que um ilustre historiador (Arno J. Mayer) falou da persistência do antigo regime na Europa até o primeiro conflito mundial (e a Revolução de Outubro e as revoluções e os levantes que se seguiram a ela). Naqueles anos, nem sequer nos Estados Unidos estavam ausentes os resíduos da discriminação censitária. Com relação à Europa, porém, o antigo regime se apresentava em uma versão diferente: a aristocracia de classe se configurava como uma aristocracia de raça. No Sul do país, o poder estava nas mãos dos antigos proprietários de escravos, que nada haviam perdido da sua arrogância racial ou racista e que não por acaso eram tachados por seus adversários de Bourbons; não havia por certo desaparecido o regime, de um lado, celebrado pelos seus apoiadores e, de outro, criticamente analisado pelos estudiosos contemporâneos como um tipo de ordenamento de castas, por estar fundado sobre agrupamentos étnico-sociais tornados impermeáveis à miscigenação, vale dizer, fundado na proibição das relações sexuais e matrimoniais inter-raciais, severamente condenadas e punidas enquanto suscetíveis de pôr em discussão a supremacia branca. 2. A dupla dimensão da discriminação racial E chegamos assim à terceira grande discriminação, a discriminação racial. Antes da Revolução de Outubro esta estava mais viva que nunca e manifestava a sua vitalidade de dois modos. No âmbito global o mundo se caracterizava, para dizê-lo com Lênin, pelo domínio inconteste de “poucas nações eleitas” ou por um punhado de “nações-modelo” que atribuíam a si mesmas “o privilégio exclusivo de formação do Estado”, negando-o à vasta maioria da humanidade, aos povos estranhos ao mundo ocidental e branco, e, portanto, indignos de se constituírem como Estados nacionais independentes. E assim, as “raças inferiores” eram excluídas em bloco do gozo dos direitos políticos até mesmo pelo fato de serem consideradas incapazes de autogovernar-se, incapazes de discernimento no plano político. Tal exclusão era reafirmada em um segundo nível, o nível nacional: na União Sul-Africana e nos Estados Unidos (o país ao qual faremos referência), os povos de origem colonial eram ferozmente oprimidos: estes não gozavam nem de direitos políticos nem de direitos civis. Pensemos por exemplo nos linchamentos que, entre o século XIX e o século XX, eram reservados em particular aos negros. Um ilustre historiador estadunidense (Vann Woodward) nos deu uma descrição seca, mas tanto mais eficaz quanto aterrorizante: Notícias dos linchamentos eram publicadas em anúncios locais e vagões suplementares eram acrescentados aos trens para os espectadores, algumas vezes milhares, provenientes de localidades a quilômetros de distância. Para assistirem ao linchamento, as crianças podiam gozar de um dia livre nas escolas. O espetáculo podia incluir a castração, o escalpelamento, as queimaduras, o enforcamento, os disparos de arma de fogo. Os souvenirs para os adquirentes podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os dentes, os ossos e até os órgãos genitais da vítima, assim como postais ilustrados do evento. Vemos que aqui opera não a democracia fabulada pela historieta edificante da qual falei no início, mas aquela que eminentes estudiosos estadunidenses têm definido como Herrenvolk democracy, uma democracia reservada exclusivamente ao povo dos senhores, o qual exercia uma aterrorizante White supremacy não só sobre os povos de origem colonial (afro-americanos, asiáticos etc.), mas às vezes também sobre os imigrantes provenientes de países (como a Itália) considerados de duvidosa pureza racial. Ainda nos anos 1930, os negros, que no curso da Primeira Guerra Mundial foram chamados a combater e a morrer pela “defesa” do país, continuavam a suportar um regime de terror que ao mesmo tempo funcionava como uma repugnante sociedade do espetáculo. São eloquentes os títulos e as crônicas dos jornais locais da época. Nós os reproduzimos da antologia (100 Years of Lynchings) editada por um estudioso afro-americano (Ralph Ginzburg): “Grandes preparativos para o linchamento desta noite”. Nenhum pormenor deveria ser negligenciado: “Teme-se que disparos de arma de fogo dirigidos ao negro possam errar o alvo e atingir espectadores inocentes, que incluem mulheres com os seus filhos nos braços”; mas se todos respeitarem as regras, “ninguém ficará desapontado”. A inédita sociedade do espetáculo procedia de modo implacável. Vejamos outros títulos: “Linchamento realizado quase como previsto no anúncio publicitário”; “A multidão aplaude e ri pela horrível morte de um negro”; “Coração e genitais extirpados do cadáver de um negro”. A sofrerem o linchamento não eram apenas os negros culpados de “estupro” ou, no mais das vezes, de relações sexuais consensuais com uma mulher branca. Bastava muito menos para ser condenado à morte. O Atlanta Constitution de 11 de julho de 1934 informava a execução de um negro de 25 anos “acusado de ter escrito uma carta ‘indecente e insultante’ a uma jovem branca do condado de Hinds”; nesse caso, “a multidão de cidadãos armados” estava satisfeita de ter enchido de bala o corpo do infeliz. No mais, além dos “culpados”, a morte, infligida de modo mais ou menos sádico, assombrava até mesmo os suspeitos. Continuemos a consultar os jornais da época e a ler os seus títulos: “Absolvido pelo júri, depois linchado”; “Suspeito enforcado em um carvalho na praça pública de Bastrop”; “Linchado o homem errado”. Enfim, a violência não se limitava a pegar os responsáveis ou o suspeito do delito a ele atribuído. Acontecia que, antes de proceder ao seu linchamento, fosse incendiada e queimada a cabana em que habitava a sua família. É de se acrescentar que a terceira grande discriminação terminava por atingir também certos membros e certos setores da mesma casta ou raça privilegiada. Ainda lendo a antologia relativa aos cem anos de linchamentos nos Estados Unidos, encontramos no título de um artigo do Galveston (Texas) Tribune de 21 de junho de 1934: “Uma jovem branca é encarcerada, seu amigo negro é linchado”. Sobre aquela jovem branca o regime de terror da white supremacy se abatia de modo dúplice: seja privando-a de sua liberdade pessoal, seja atingindo-a pesadamente em seus afetos. 3. Movimento comunista e luta con