"O Chamado da extrema direita"
O reformismo concebido como resposta ao movimento revolucionário, precipita a emergência da extrema direita salvadorenha, oposta a toda mudança social significativa. O grande capital, articulado em associações, segrega organismos políticos instrumentais que defendam seus interesses nestas conjunturas: FARO em 1976, ARENA na atualidade. A ideologia da ARENA baseia-se em um individualismo de organizações que propõe como nacionalista apenas aquele tipo de sistema capitalista existente até agora em El Salvador e que justifica políticas mais drásticas de “segurança nacional”. A base social da ARENA está constituída por membros do grande capital salvadorenho e por setores próximos destes. O atrativo da ARENA para outros setores sociais, que são combatidos com os interesses objetivos dessa direita, pode ser entendido como certa capitalização do profundo descontentamento existente direcionado a atual situação, assim como o êxito de seu estilo de aparente clareza e inegável prepotência, personificado na figura de seu líder. O triunfo da ARENA prova a utilidade da via eleitoral na presente circunstância do país para os interesses da extrema direita, que com toda probabilidade, tratará de fortalecer este instrumento político (ou um equivalente) enquanto perdure o perigo do reformismo.
1. A direita em El Salvador
Os termos “direita” e “esquerda” que classificam as forças políticas são sempre relativos entre si e dizem respeito à situação histórica concreta. Daí sua ambiguidade quando estes termos são empregados para estabelecer comparações entre diversos países ou para ligar uma determinada organização política no espectro ideológico mundial: a esquerda norte-americana pode representar uma direita moderada na França e a direita sueca uma esquerda radical em El Salvador. Sim, apesar de sua potencial ambiguidade, utilizamos aqui estes termos para assumir a linguagem cotidiana e analisar o que um destes termos, “direita”, representa ideologicamente no momento atual de El Salvador. Neste trabalho, pretende-se examinar o que significa nas atuais circunstâncias de El Salvador o vértice das forças de direita, quer dizer, a “extrema direita”, sobretudo, analisando uma instância concreta, o Partido Alianza Republicana Nacionalista, ARENA.
O que melhor parece definir as políticas de direita e de esquerda é a opção por um particular sistema socioeconômico. Em geral, a direita estaria constituída pelo setor que se opõe a todo tipo de mudança, mas, também, por aqueles setores “progressistas” que tomam como bandeira a realização de algumas reformas sociais, desde que estas sejam produzidas dentro de uma determinada ordem e com um determinado ponto de referência. A direita salvadorenha estaria assim constituída por grupos e pessoas que buscam a manutenção da ordem social baseada no sistema capitalista, ainda que alguns aceitem que o atual capitalismo salvadorenho não deve experimentar grandes reformas.
Se o que divide a direita da esquerda são suas diferentes posturas frente ao sistema capitalista, o que estabelece uma divisão no interior da direita, entre uma “direita moderada” e uma “extrema direita”, são as posturas frente ao reformismo. A extrema direita salvadorenha não aceita, nem na teoria, muito menos na prática, que El Salvador necessite de reformas socioeconômicas substanciais, por isso se opõe com todo seu poder a qualquer política que busque este tipo de mudança. Historicamente, enquanto o sistema social permaneceu inquestionável e inalterado sob o firme controle da oligarquia agroexportadora e do grande capital, industrial ou financeiro, a direita salvadorenha permaneceu unida, sem divisões visíveis, portanto, sem que os setores ou núcleos mais conservadores aparecessem como distintos. Somente nos momentos em que, diante da crescente pressão dos problemas internos e a exigência de mudanças radicais, o país se põe a enfrentar alguns tipos de reformas, apenas para modernizar ou adequar o sistema as novas circunstâncias, logo surge a extrema direita, com identidade própria, último reduto do conservadorismo político. Não se deve entender a extrema direita em El Salvador unicamente como contraposição ao movimento revolucionário, mas, em contraposição também das tentativas de reformas ocorridas no país nas últimas duas décadas.
Nestes momentos de perigo reformista, a extrema direita assume explicitamente a corrente hegemônica da oligarquia, nutre-se de seus recursos e queima suas tradições políticas e sociais. Portanto, ainda que sua orientação seja voltar suas forças contra os movimentos populares e revolucionários, nos quais sabe encontrar a razão última de toda exigência de mudança, conjunturalmente, afirma sua postura frente aos setores reformistas, que percebe como avanço da revolução.
1.1 Frente ao reformismo de Molina: FARO
A crise econômica de 1929 e o início da insurreição de 1932 levaram a oligarquia agroexportadora salvadorenha a colocar o manejo imediato do aparato governamental nas mãos dos militares, enquanto reservava para si os postos chave na configuração do Estado e mantinha seu papel e sua parte de último juiz na tomada das decisões fundamentais (ver Guidos, 1980; Sol, 1980). Desde então, a organização militar se coloca na direção do governo, sem que o jogo eleitoral dos partidos pudesse afetar o essencial e na determinação interna dos governantes com mandato. Segundo Andino (1979, p. 624), os militares têm estendido seu poder sobre o aparato estatal ao ocupar cada vez mais postos nos gabinetes de governo e nos organismos e entidades autônomas que conformam o Estado salvadorenho. Este crescente poder abriu a brecha de uma autonomia relativa da organização militar em respeito ao grande capital, o que tem permitido uma tomada de consciência, que tenta traduzi-la em reformas (ver López Vallecillos, 1976). A oligarquia salvadorenha tem precisado enfrentar nos últimos anos repetidos esforços dos setores militares mais conscientes para colocar em marcha reformas significativas, sobretudo a Reforma Agrária. Frente a estas tentativas, a reação da oligarquia tem sido de grande intransigência, chegando inclusive à violência paramilitar, afim de afogar a opção reformista das mudanças.
Talvez o antecedente imediato mais ilustrativo sobre o comportamento da extrema direita nas presentes circunstâncias constitua-se na tentativa realizada pelo então Coronel Molina para desenvolver uma Transformação Agrária, em 1975-1976, ainda que moderada – nem sequer a chamou de reforma (Menjívar y Ruiz, 1976). O Coronel Molina chegou a apresentar seu projeto como um “seguro de vida” para os latifundiários afetados e, em geral, para a classe burguesa (Zamora, 1976). As Forças Armadas respaldaram somente o projeto reformista, o que permitiu ao Coronel Molina afirmar em público que não se daria “nenhum passo atrás”. Mas em 19 de outubro de 1976, apenas três meses depois da Assembleia legislativa decretar o “Primeiro Projeto de Transformação Agrária”, a mesma Assembleia mudava substancialmente o projeto, anulando na prática esta tentativa reformista.
A reação da extrema direita frente ao reformismo do governo do Coronel Molina e, sobretudo, o procedimento concreto que utilizou para atrapalhar o projeto de Transformação Agrária (TA), “dobrando o braço” a mesma Força Armada (A sus órdenes, 1976), representa um antecedente de sua oposição às reformas propiciadas desde 15 de outubro de 1979 e dos mecanismos políticos empregados para anulá-las.
O conflito desencadeado pelo projeto de TA pode ser dividido analiticamente em três fases: planejamento, confrontação e resultado (ver Martín-Baró, 1977). Na primeira fase, a publicação do decreto por parte da Assembleia Legislativa (dominada pelo governante Partido de Conciliação Nacional, submetido por sua vez ao executivo), leva a um primeiro intercâmbio de posturas discrepantes entre o governo e a Associação Nacional da Empresa Privada (ANEO). Aparentemente o decreto surpreendeu a ANEP, e enquanto o governo expõe abundantes dados e argumentos que abonam a necessidade e conveniência da TA, a ANEP se obstina em sua inconveniência, sobretudo em relação à improdutividade das reformas e da inoperância do setor oficial. A primeira fase do conflito termina em meados de julho, quando o governo decide não “perder mais o tempo em uma discussão estéril, porque o pensamento do grupo discrepante está sujeito aos mesmos moldes das anacrônicas estruturas sociais e econômicas que permanecem vigentes neste país” (El Gobierno, 1976).
A segunda fase começa em meados de agosto de 1976, quando a ANEP volta a atacar a TA em razão da ineficiência governamental para administrar a terra, e, portanto, colocando em questão seu “benefício social”. O governo responderá nesta etapa, assinalando sua preparação técnica e provando que a TA é constitucional. No entanto, mais significativo que o novo debate público entre o governo e a ANEP, resulta nesta fase a aparição de um grupo combativo de latifundiários que se organiza sob o nome de Frente Agropecuária da Região Oriental (FARO). A FARO assume a postura e o discurso da ANEP, mas chama a “unificar critérios e a ação a tomar diante do eminente perigo de despejo nossas terras obtidas com o esforço de longos anos de trabalho” (FARO, 1976). De fato, a ação da FARO será a de agitação política, mobilização de diversos setores, inclusive ameaçando marchar sobre San Salvador para revogar a TA. A FARO se mostra desde o começo extremamente bélica e suas manifestações e pronunciamentos são de uma grande violência verbal. Durante esta fase, ANEP e FARO aparecem indistintamente, sem pretender diferenciar-se com clareza. Por exemplo, no mesmo dia aparece um comunicado público da FARO exigindo diálogo com o governo e um da ANEP pedindo o mesmo.
A terceira fase do conflito sobre a TA começa com algumas análises da ANEP, esta rejeita a constitucionalidade da TA, taxando-a como contrária à liberdade de mercado e de propriedade (privada), consagrada pelos princípios democráticos do país o núcleo da terceira fase constitui as contradições públicas realizadas pela FARO, assim como a aplicação das pressões políticas e econômicas mais diversas sobre o governo, que termina cedendo e anulando a TA.
No conflito sobre a TA existem pelo menos três pontos importantes que antecedem os acontecimentos atuais: em primeiro lugar, a postura da ANEP e seu discurso ideológico; em segundo lugar, a aparição da FARO, seu caráter e sua atividade; e, em terceiro lugar, a violência política concomitante e posterior ao conflito.
O primeiro ponto importante constitui a identidade do organismo que assume a defesa dos interesses estabelecidos e se opõe às reformas. Se trata da ANEP, agrupamento representativo do grande capital salvadorenho e eficaz articulador de seus interesses. A ANEP se opõe desde o princípio à reforma agrária e elabora um discurso ideológico para justificar esta postura. O discurso se apoia em três grandes valores: (a) a produtividade como critério máximo da atividade econômica; (b) o legalismo democrático, identificado fundamentalmente como respeito à propriedade privada e ao “livre” mercado; e (c) o nacionalismo, entendido como oposição absoluta ao comunismo ou a qualquer medida socializante.
Ainda que a ANEP tome uma postura pública, tenta criar a imagem de estar por cima das lutas políticas partidárias e de buscar tão somente a defesa dos altos interesses nacionais, sobretudo, das “forças vivas” do país. Daí que a ANEP segregue um organismo para a luta, a FARO, que assume seu discurso, mas, opera-o politicamente. A FARO pode mostrar-se partidarista e violenta, pode “se queimar”, já que constitui uma espécie de kamikaze ou piloto suicida para a ocasião. Passado o conflito da TA, a FARO desaparece, enquanto a ANEP conserva sua hegemonia sobre a vida econômica do país sem ter tido a necessidade de sofrer os impactos da confrontação política.
O terceiro ponto importante do conflito sobre a TA é a violência que se arrasta. Já durante o conflito começam a aparecer, nos lugares críticos da reforma, grupos paramilitares que semeiam o terror entre os partidários ou simples beneficiários das reformas. Atrás do conflito, uma onda de repressão, executada pelos mesmos corpos que haviam jurado solenemente defender as reformas, eles regam de violência todos aqueles que quiseram entrar no jogo da TA: grupos cooperativistas, camponeses, técnicos e até organismos que mostraram de alguma maneira apoiar a TA. Esta onda de violência repressiva parecia uma tentativa de revogar mediante o terror qualquer possibilidade que sobrara de mudanças. Assim, sobre o fracasso da TA, a doutrina e a prática da “segurança nacional” voltaram a ser senhora da vida salvadorenha, enquanto as massas populares experimentavam mais uma vez a inviabilidade das reformas diante do sistema estabelecido.
1.2 Frente ao reformismo da Juventude Militar: ARENA
O golpe de estado em 15 de outubro de 1979 e a proclamação da Juventude Militar representavam a reaparição do projeto reformista no país com mais força e, aparentemente, com mais possibilidade de êxito. Ainda que possa parecer paradoxo, a batalha principal sobre as reformas desenvolveu-se durante a primeira Junta de Governo, antes que se pudesse decretar a reforma agrária e a nacionalização dos bancos. Em janeiro de 1980, ascende ao governo a Democracia Cristiana, a renúncia dos políticos mais progressistas e o deslocamento dos principais promotores militares do golpe eram indícios claros que o equilíbrio de forças já favorecia novamente os setores pró-oligárquicos, ou que, como então se afirmava, o processo havia “endireitado”. Nesse sentido, o futuro das reformas prometidas estava assinado. Contudo, os democratas cristianos pareciam querer de verdade sua realização, sua vontade reformista levou-os a sérias discrepâncias com os representantes do capital, cuja presença na direção política do país foi rejeitada ao estabelecer um pacto com as Forças Armadas. Nos primeiros dias depois do golpe de Estado a direita permaneceu silenciosa, e, ao menos a nível público, imobilizada. A denúncia oficial dos abusos cometidos pelos regimes anteriores e o envolvimento responsável de conhecidos civis e militares na corrupção pendiam como guilhotina sobre setores chaves da extrema direita. Porém, rapidamente estruturaram uma estratégia e lançaram sua contraofensiva. Em novembro, a extrema direita já havia conseguido ganhar ou manter postos chaves no interior da estrutura militar e em dezembro o perigo de uma verdadeira depuração das Forças Armadas já estava eliminado. Assim, apenas um mês depois do golpe de Estado, a extrema direita pôde lançar sua campanha política contra as reformas, campanha que começou ao nível propagandístico com uma verdadeira avalanche em todos os meios de comunicação, e que continuou depois com a mobilização política, chantagem pessoal, boicote econômico e a violência paramilitar.
Ainda que a ANEP e seus membros associados mais conhecidos, como os cafeicultores, os algodoeiros e os pecuaristas, manifestaram-se em público no início da campanha propagandística, também utilizaram o mecanismo de organizações nominais para expressar os pontos de vista mais radicais ou para lançar ataques, calúnias e ameaças. Assim mesmo, desde o princípio, as concentrações e manifestações políticas foram promovidas por organizações nominais, identificadas em sua postura e discurso com a ANEP, mas, em aparência, diferentes dela no que diz respeito a confrontação política.
Em junho de 1980, como uma forma de utilizar as forças disponíveis sem queimar politicamente as organizações mais importantes, sobretudo a ANEP, forma-se a Alianza Productiva (AP). Em seu documento de fundação a AP manifesta que lutará na defesa do “direito de nosso povo de gozar de suas liberdades individuais”, o que constitui um objetivo político (Alianza Productiva, 1980a, p. 636). De fato, a AP salva a palestra de debate ideológico representando a postura do grande capital nos momentos cruciais do conflito: quando os movimentos populares convocam uma greve nacional, em agosto de 1980 (Alianza Productiva, 1980b); antes da primeira grande ofensiva militar insurgente, em janeiro de 1981, quando oferece ao governo e as Forças Armadas “sua total cooperação, tanto com o pessoal como com os recursos materiais de que dispõe” (Alianza Productiva, 1981a, p. 96); antes da possibilidade de solucionar o conflito mediante o diálogo com os insurgentes, diálogo ao qual se opõe enfaticamente (Alianza Productiva, 1981b); ou quando rejeita como intervencionista o reconhecimento franco-mexicano sobre a representatividade política da FDR/FMLN (Alianza Productiva, 1981c). Num determinado momento, a “Alianza” derivará parcialmente em “Unidad Productiva”, sem que a AP desapareça como frente e a UP tenha mais atuações visíveis, empenhando apenas a realização de alguns simpósios.
De forma paralela, ainda que com anterioridade temporal, aparece um primeiro esboço de organização política-militar, a Frente Ampla Nacionalista (FAN), cuja cabeça encontra-se na figura do Major Roberto D’Aubuisson. A existência da FAN é relativamente efêmera, mas importante. Em primeiro lugar, a FAN assume o discurso ideológico da ANEP em sua forma mais radical. Em segundo lugar, a FAN escolhe como interlocutor primordial as Forças Armadas e deixa-se traduzir mais ou menos de uma forma velada à utilização da violência para conquistar seus objetivos. Finalmente, a FAN começa a cultivar a imagem do Major D’Albuisson, com as qualidades de líder político. Tanto no âmbito ideológico como no organizativo, a FAN constitui o embrião do que iria surgir, a ARENA.
A Aliança Republicana Nacionalista aparece em meados de 1981, depois do anúncio de eleições por parte da Junta de Governo e a promulgação da “Lei transitória sobre a constituição e inscrição de partidos políticos”, em 18 de julho de 1981. Não obstante, por que a ARENA se forma como partido político quando a FARO mantinha seu trabalho de agitação sem adotar uma organização partidária formal? Possivelmente dois fatores haviam sido determinantes. Em primeiro lugar, o grande capital era consciente da dependência de El Salvador em relação aos Estados Unidos e sabia bem que a administração norte-americana reclamava um “governo constitucional”, que lhe permitiria justificar sua ajuda massiva na batalha contra o movimento revolucionário na América Central. Isto obrigava a extrema direita a participar de um processo em que deveria utilizar como instrumento o esquema dos partidos políticos, relegando somente a um segundo plano a alternativa do golpe de Estado (que ao que parece, nunca foi descartado completamente). A ARENA surgirá assim, em função de uma conjuntura eleitoral, mas uma conjuntura onde as eleições se apresentavam como a culminação do processo político de mudanças iniciado em 15 de outubro de 1979 e, portanto, colocam em jogo o futuro das reformas que tanto preocupam a extrema direita. Não se trata de um jogo eleitoral similar ao ocorrido nas duas últimas décadas, totalmente predeterminado em seus alcances e contidos pelas forças no poder, mas um processo onde está em litigio certa cota de poder dentro do bloco dominante (“dentro das direitas”). O fato de que uma cota de poder, por mínima que fosse, fosse colocada em jogo entre as facções dominantes, outorgava ao processo eleitoral um valor que este havia perdido em 1967, 1972 ou 1977. O caráter da campanha eleitoral e o alinhamento de todos os partidos participantes frente ao PDC, corroborará com o fato de que é o futuro das reformas que paira diante dos oponentes.
Em segundo lugar, no momento do conflito sobre a Transformação Agrária, a extrema direita dispunha do aparato do então partido oficial, o PCN. Não obstante, em 1981, encontrava-se no governo o PDC, a extrema direita carecia de um instrumento político adequado para entrar numa disputa na qual pretendia recuperar rapidamente o controle perdido sobre diversas esferas do poder político e militar, com a finalidade de evitar que as reformas promovidas se assentassem, ou que o movimento revolucionário conseguisse avanços irreversíveis. Sabe-se bem que o grande capital tratou de apoderar-se do PCN, utilizando para isso o remanescente mais entreguista do antigo partido oficial. Porém, o setor que então encontrava-se no controle, de orientação moderada e progressista, dirigido pelo Lic. Rafael Rodríguez, manteve seu poder e impediu que o PCN caísse novamente nas mãos do grande capital. Não podendo se apoderar do PCN, a única alternativa que restava a extrema direita era a de utilizar o veículo dos minipartidos extremistas já existentes ou fundar um novo. Utilizar alguns destes partidos não representava vantagem alguma, já que careciam de estrutura organizativa ou de recursos, enquanto ainda tinham o lastre simbólico de sua insignificância e impotência histórica. A consequência era óbvia, assim surgiu o ARENA.
2. A ideologia da extrema direita salvadorenha
Para analisar a ideologia da ARENA como braço político da extrema direita salvadorenha nas atuais circunstâncias, examinaremos seus pronunciamentos e propagandas, e, logo, seus símbolos e estilo de ação pública. Para completar a análise ideológica iremos remeter este discurso, conceitual e formal, ao procedimento concreto do partido e de seus membros nas diversas situações, pois somente esta relação mostra o sentido último das afirmações conceituais.
2.1 Do individualismo à segurança nacional
A visão ideológica da ARENA parte da exaltação do individualismo (para o que segue, ver ARENA, 1981a). O indivíduo dever ser considerado como o princípio e o fim do fazer político, base fundamental do povo, que não seria mais do que a soma de indivíduos. O Estado não é mais que um meio “para o engrandecimento e superação do indivíduo”, que deve ser o beneficiário último de toda atividade social. De fato, “todas as conquistas que hoje são o orgulho da humanidade resultam da criatividade do indivíduo”. A ARENA aceita “a igualdade dos homens de Deus”, mas sublinha também sua diversidade na terra. Isto é muito importante quando o assunto são os direitos humanos, já que somente “se reconhece digno de liberdade, aquele indivíduo que com sua superação e trabalho consegue conquistá-la diariamente”.
Parece claro que o individualismo exaltado pela ARENA se refere antes de tudo à individualidade de cada pessoa. Porém, a ARENA estende a exaltação do individualismo pessoal ao individualismo empresarial, colocando em oposição “empresa privada” e “empresa pública” nos mesmos termos em que opõe o indivíduo e a coletividade. A transição do indivíduo em empresa realiza-se por meio do “direito individual de aquisição, retenção e uso da propriedade como uma projeção da personalidade humana”, o que converte a empresa “privada” em parte essencial do mesmo indivíduo. Defender a empresa privada é defender os direitos humanos do indivíduo. Desta forma, o individualismo mantido pela ARENA reside no coração das associações da grande empresa privada e a liberdade reivindicada para a empresa privada é a prolongação lógica da liberdade reivindicada para o indivíduo.
Sobre a base desta concepção associação-individualismo, a ARENA centra seu discurso ideológico em três valores: o nacionalismo, o anticomunismo e o capitalismo.
O nacionalismo da ARENA parece consistir na defesa desta “nação”, concebida como os indivíduos integrados ao regime político e econômico vigente até hoje em El Salvador. Segundo a ARENA, o valor de um sistema social deve ser medido pela sua capacidade de conseguir o desenvolvimento integral da nação. Portanto, a opção pelo regime democrático e republicano é uma questão mais pragmática do que de princípio: opta-se por ele porque seria a via mais rápida e estável para obter o desenvolvimento nacional ao garantir a liberdade de ação e os fins propícios dos indivíduos. Assim, se o sistema até hoje imperante em El Salvador é bom, é porque tem conseguido o desenvolvimento integral desta nação. Mas isto quer dizer que a nação salvadorenha está constituída unicamente pelo “verdadeiro povo salvadorenho”, em outras ocasiões qualificados como “forças vivas” ou “forças produtivas” do país, que, por sua vez, se identificam com a grande empresa privada e os indivíduos a esta vinculados (quer dizer, aqueles que tem conseguido com este sistema seu “desenvolvimento integral”). Portanto, o nacionalismo da ARENA consiste em promover as forças produtivas da grande empresa privada e defendê-las contra todo ataque, interno e externo.
Este tipo de nacionalismo não pode permitir que se divida mentalmente os setores empresarial e laboral, “já que no fazer prático, jamais empresários e trabalhadores poderiam existir separadamente em uma sociedade democrática” (ARENA, 1981b). Aceitar esta divisão supõe admitir que existem outros fatores fora da “superação e trabalho” individual que influenciam o “desenvolvimento integral” da nação, e, por consequência, dos mesmos indivíduos, e que são estes fatores que mantém a maioria dos salvadorenhos submetidos a miséria. Em última instância, essa divisão levaria a questionar o mesmo princípio em que se baseia o nacionalismo da extrema direita salvadorenha, e, portanto, não permitiria identificar os interesses do capital ou da grande empresa com os “altos interesses nacionais”.
O segundo grande valor da ARENA é seu anticomunismo militante. Trata-se mais propriamente de um anti-valor, no sentido em que expressa aquilo que rejeita, somente a forma negativa daquilo que se busca. O que é entendido como comunismo nunca é definido, somente em termos muito genéricos. Por exemplo, identifica-se o comunismo com tendências coletivistas, nacionalização de qualquer meio de produção, certo tipo de intervenção estatal na vida econômica do país. O Comunismo resulta assim, em um termo mais carregado no plano afetivo que no conceitual, e sem maior discriminação, utilizam-no de forma equivalente a outros termos como socialismo, marxismo, marxismo-leninismo, totalitarismo. Na campanha política para as eleições de 28 de março, até o “comunitarismo” da Democracia Cristiana foi chamado pela ARENA de comunista, o que oferece um indicador do sentido que tem o termo “comunismo” na ideologia da extrema direita salvadorenha: comunismo é todo o sistema, movimento ou ideologia que não se identifique com o regime imperante em El Salvador, ou que reivindique alguma mudança social. O comunismo seria, desta maneira, a negação do nacionalismo proposto pela ARENA. Por isso, para o discurso da extrema direita salvadorenha, comunista pode ser Fidel Castro ou Jimmy Carter, o Partido Comunista ou os jesuítas, a FMLN ou o senado norte-americano.
Esta compreensão do comunismo mostra a plena consonância da ARENA com a postura e os princípios da doutrina de “segurança nacional” (ver Campos, 1979). A partir da perspectiva da “segurança nacional” o mundo está dividido radicalmente entre partidários do sistema capitalista e “os valores da civilização ocidental” e seus rivais; não existe meio termo e nada nem ninguém escapa a esta divisão. A manutenção deste sistema é o principio fundamental, o valor máximo ao qual deve subordinar-se tudo. Portanto, a defesa deste sistema e destes valores justificam qualquer medida e qualquer ação, por mais dura que seja. Daí a necessidade de controlar qualquer suspeita e de medir com a mesma régua os opositores pacíficos e violentos, os ativistas e intelectuais, os inimigos declarados ou simples críticos. O comunismo é um câncer que se espalha e precisa ser destruído pela raiz. Esta visão justifica de antemão qualquer comportamento das Forças Armadas que seja direcionado à manutenção da lei tradicional e da ordem imperante.
O terceiro valor fulcral da ARENA é o capitalismo, mais não qualquer capitalismo, aquela modalidade de capitalismo que impera no país. O direito inalienável à propriedade privada é o pivô deste sistema econômico, e, ao Estado, corresponde simplesmente proteger e garantir a livre atividade econômica de indivíduos e empresas. Qualquer disposição que atente contra o direito de propriedade privada ou contra a liberdade da empresa privada é um atentado contra os princípios básicos do sistema econômico capitalista, base da unidade nacional, e, portanto, um atentado contra a segurança nacional. Deste modo, o nacionalismo defendido pela ARENA é, na prática, um nacionalismo que se define por seu anticomunismo e por sua profissão de fé capitalista, que utiliza dos princípios e mecanismos da segurança nacional para conseguir preservar o sistema de produtividade lucrativa e de desenvolvimento individualista imperante há muitas décadas em El Salvador.
Uma rasa análise da propaganda política da ARENA confirma esta visão ideológica. De cada dez grandes publicações propagandistas feitas pela ARENA nos periódicos de San Salvador, em março de 1982, cinco atacam os “ganhos” destrutivos das reformas nacionalizadoras realizadas pelo governo democrata Cristiano, enquanto outras quatro, tratam de provar, com argumentos ideológicos ou com “documentos” (uma carta de apresentação), que “o Partido Comunista e a Democracia Cristiana são o mesmo” e, portanto, tão perigoso é para a segurança nacional o comunitarismo democristiano, como o comunismo das guerrilhas.
À luz do conflito sobre a Transformação Agrária em 1976, resulta, muito significativamente, os pronunciamentos mais combativos da campanha política da ARENA, firmados pelo “setor agropecuário da ARENA” e, sobretudo, pelos “Agressores do Oriente”. O estilo e o vocabulário destes pronunciamentos são similares aos da FARO em 1976, bem como os argumentos empregados com base na produtividade e no patriotismo nacionalista. O setor agropecuário da ARENA chega a afirmar que “a história da humanidade não conheceu um genocídio próximo ao que estaria sendo feito pelos democratas cristianos ao nosso povo” e isto também se deve as “normas creditícias para o cultivo do algodão dadas pelo Partido Democrata Cristiano no poder” (ARENA, 1982).
2.2 O estilo da ARENA
Mais além da propaganda ideológica e dos comunicados publicitários, o estilo com o qual a ARENA atuou durante a campanha política expressa seus valores. Em primeiro lugar, é significativo que a simbologia utilizada pela ARENA remeta a movimentos internacionais, em aparente contradição com sua visão particular do nacionalismo. Assim, por exemplo, a qualificação e as cores republicanas remetem ao atual governo norte-americano, presidido pelo republicanismo conservador de Reagan (referência explicitada em 24 de março), e o slogan “hoje luta, amanhã paz, progresso e liberdade”, sutilmente insinua, apesar de transformar, a famosa trilogia dos republicanos franceses. De fato, o emblema da ARENA é quase uma copia fiel do emblema do MLN guatemalteco, partido definido pelo seu máximo dirigente como “a direita da direita”.
O estilo comportamental da ARENA pode ser descrito com três características: firmeza, clareza e força. A firmeza da ARENA a leva a batalhas nos pontos mais conflitivos ou nos lugares mais perigosos. Em gestos simbólicos com certo caráter “machista”, a ARENA começou sua campanha política no mesmo lugar onde iniciou – e com mais violência foi sufocado – o alçamento popular de 1932, e se apresentou ostensivamente naquelas localidades onde a guerrilha poderia ser uma ameaça real. Esta firmeza denotava uma mescla de segurança e prepotência, que era a mesma apresentada frente à guerrilha e frente ao governo, incluindo as Forças Armadas.
Junto a firmeza machista e a “clareza” no discurso, a ARENA utilizou uma linguagem aparentemente translúcida, um discurso feito à base de slogans (“Pátria sim, comunismo não”) e afirmações simplistas (“o desgoverno democristiano” é o responsável pelo caos atual) para explicar os problemas do país. As afirmações repetidas, os slogans pegajosos e as explicações maniqueístas (ou é branco ou é negro, ou é bom ou é mau) têm a virtude de parecerem evidências irrefutáveis no marco dos meios de comunicação de massas. Este es