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"A Música de Carnaval"


A música para carnaval – pelo menos a produzida especialmente para ser cantada durante os três dias de brincadeira – é uma criação dos últimos anos do século XX.


Durante os primeiros séculos de colonização, o carnaval, ainda chamado de entrudo, praticamente não existiu no Brasil, figurando as comemorações oficiais (aniversário do rei ou da rainha, casamento ou nascimento de príncipes, etc.) como as festas mais próximas do que viria a ser o carnaval, uma vez que incluíam invariavelmente desfiles com fantasiados, carros alegóricos e música de fanfarras. [1]


O entrudo, do qual se tem notícia desde o início do século XVII, era uma reminiscência das festas pagãs greco-romanas realizadas a 17 de dezembro (saturnais) e 15 de fevereiro (lupercais), que tinham origem na comemoração das colheitas, quando se permitia liberdade aos escravos, usavam-se máscaras, vestiam-se fantasias, e se comia e bebia desbragadamente. Em coerência com essas origens, o entrudo limitou-se até meados do século XIX a uma festa em que os escravos da Colônia e do Império saíam em correrias pelas ruas, sujando-se uns aos outros com farinha de trigo e polvilho, enquanto as famílias brancas, refugiadas em suas casas, divertiam-se derramando pelas janelas tinas de água suja sobre os passantes, enquanto comiam e bebiam como os antigos num clima de quebra consentida da extrema rigidez da família patriarcal.


Nessas brincadeiras, porém, não havia um mínimo de organização que exigisse um ritmo, e muito menos qualquer tipo de cantiga. E esse quadro se desenvolveu mais ou menos inalterado até a primeira metade do século XIX, quando, no Rio de Janeiro (que apresentava, na qualidade de capital do país, uma maior diversificação social), novas camadas da classe média anunciaram a sua presença, através da reivindicação de formas de diversão semelhantes às europeias.


Em matéria de carnaval a existência dessa nova classe, disposta a participar da festa sem o inconveniente da promiscuidade com os negros e mestiços das camadas mais baixas, vinha se fazendo sentir desde 1835, quando uma firma francesa da Rua do Ouvidor, número 128, esquina com a Avenida Rio Branco, anunciou a importação de máscaras de cera e de papelão “com expressões jocosas e sérias”, além de “caras de porco, de cachorro, de gato; cabeças mecânicas com barbas, bigodes e queixos se movendo, invenção de Bonstifanini, de Veneza”. [2]


As pessoas capazes de comprar essas novidades europeias eram evidentemente as mesmas que desde o Primeiro Império se divertiam nos bailes de máscaras ainda algo fechados do Teatro São Pedro de Alcântara, e que deviam ser necessariamente cerimoniosos, porque a tais bailes comparecia o próprio Príncipe Dom Pedro I.


É evidente que – para não fugir às tradições milenares da festa – esse ar solene dos bailes de máscaras tinha um limite, e em 1824 ou 1825 a atriz de tratro Estela Sezefredo, então muito jovem ainda, chegaria a ser detida por atirar um limão de cheiro no rosto de Sua Majestade o Imperador. [3]


De qualquer forma, é a partir de 1840, quando se anuncia no Teatro São José um “baile de máscara como se usa na Europa, por ocasião do Carnaval”, que os bailes públicos, explorados por particulares (no caso a empresária era uma italiana casada com um hoteleiro), se transformam no reduto de diversão da gente branca do Rio de Janeiro. A essa altura, aliás, só faltava o aparecimento de um ritmo capaz de sustentar o clima de alegria sugerido pela festa realizada entre ceias à base de muita comida e muita bebida. E esse ritmo surgiu em 1844: era a dança de par enlaçado europeia denominada polca, e cuja chegada ao Brasil coincidia com o auge dos bailes no Hotel Itália.


A polca fez sua entrada no carnaval do Rio de Janeiro de forma tão arrasadora, que, a partir de 1846, já havia uma sociedade Constante Polca, especialmente organizada para promover os bailes do Hotel Glória, que então já precisava concorrer com o baile organizado no Teatro São Januário na noite de 21 de fevereiro daquele mesmo ano pela atriz italiana Clara Delmastro, e ao qual compareceram “mais de mil pares fantasiados”. [4]


Nesse bailes de máscaras realizados daí em diante com regularidade nos teatros do Rio de Janeiro, a polca imperou sobre valsas, schottisches e mazurcas, reafirmando a sua condição histórica de primeiro gênero de música carnavalesca de salão no Brasil.


Enquanto isso acontecia, a mesma classe média, constituída pelas famílias, preparava-se para ganhar as ruas através de uma novidade também importada do carnaval europeu: os desfiles com carros alegóricos. O pioneiro da ideia – e por sinal criador ele mesmo de uma sociedade denominada Sumidades Carnavalescas, em 1854 – foi o romancista José de Alencar, que em 1855 estendia sua ação de animado do carnval familiar anunciando “às mocinhas que os diretores do Cassino iriam fazer baile de máscaras no qual elas pudessem tomar parte” [5], pois nos bailes de teatro elas se limitavam a ser apenas espectadoras, dada a promiscuidade social do ambiente.


Até então, porém, esses bailes carnavalescos eram animados apenas por música instrumental. É a partir da década de 1880 que a música dos bailes de tratro começa a incluir o concurso de um “corpo de coros”, encarregado de animar o ambiente entoando as letras das composições.


Na esfera das famílias, constituída pela gente branca da capital do Segundo Império, a passagem do entrudo para o carnaval moderno fazia-se, como se vê, dentro do característico geral de imitação da classe média em formação, a qual, por falta de tradição própria, tem sempre a tendência de imitar o estilo e os costumes do seu equivalente nos países mais desenvolvidos.


Era, pois, na área popular que se ia verificar o processo realmente criativo e autêntico do carnaval brasileiro. Obrigado à adoção de formas mais disciplinadas de brincar nas ruas, por força de repetidas repressões policiais contra o entrudo, o povo lembrou-se de paganizar a estrutura das procissões e no correr da segunda metade do século XIX aparecem os cordões.


Os cordões, que constituíam uma sobrevivência das alas de certas procissões, como a de Nossa Senhora do Rosário – em que se permitiam cantos e danças de caráter dramático –, foram os primeiros núcleos de criadores da autêntica música de carnaval.


Integrados por negros e mestiços, e logo pelos brancos das camadas mais humildes da cidade, os cordões apresentavam-se como uma massa mais ou menos compacta de fantasiados, que, ao som de instrumentos de percussão, avançaram pelas ruas de forma mais ou menos anárquica, uma vez que cada folião dançava criando livremente os passos que a música lhe sugeria.


A primeira composição carnavalesca produzida por esses cordões a deixar notícia histórica foi, segundo a pesquisadora Marisa Lira, a do cordão intitulado Flor de São Lourenço, “que em 1885 atravessou o centro da cidade do Rio de Janeiro cantando:


‘Ó D. Mariquinhas

Agite seu lenço

Para dar um viva

À Flor de São Lourenço’”. [6]


Sempre sem citar suas fontes (pormenor que sempre prejudicou seus trabalhos), Marisa Lira acrescentava que “a cantoria era acompanhada alegremente por pandeiros, chocalhos e tambores”, e afirmava ainda que “antes dessa passata, Mestre Valentim [...] havia fundado em 1884 o grupo carnavlesco Os Invisíveis, composto de velhos palhaços, morcegos, caveiras, reis do diabo, etc.”. [7]


É verdade que desde 1870, o ainda caótico carnaval de rua ia ganhando uma primeira canção especialmente adaptada ao conhecido ritmo de bumbos do chamado zé-pereira, mas que não poderia ser considerada uma criação brasileira.


De fato, desde pelo menos o início da segunda metade do século XIX, os portugueses do Rio de Janeiro haviam estendido ao carnaval carioca a velha figura dos zé-pereiras: os tocadores de bumbos enormes que, na região do Minho, em Portugal, acompanhavam as procissões ao lado dos tocadores de gaita de fole.


Segundo o historiador carioca Vieira Fazenda, o introdutor do zé-pereira no carnaval do Rio teria sido o sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes, mas o fato é que, pelas décadas de 1850 a 1860, as figuras de portugueses de camiseta, tamancos e grossos cinto de couro, zabumbando atroadoramente, passam a ser pesonagens obrigatórios do carnaval de rua. A emulação entre os grupos de zé-pereiras era feita na base da maior potência nas batidas, o que não chegava a produzir qualquer espécie de música em seu zabumbar continuado, mas apenas um estrondar compassado, marcando provavelmente o ritmo do andar do portador do instrumento.


Em meados de 1869, porém, ao estrear no Teatro Fênix Dramática a cena cômica do ator Francisco Correia Vasques intitulada Zé Pereira Carnavalesco, as batidas do bombo passaram afinal a servir de acompanhamento para uma pequena composição lançada originalmente por artistas franceses na peça Les pompiers de Nanterre (Os bombeiros de Nanterre), levada à cena no início do mesmo ano no Teatro Lyrique Français, antigo Alcazar Lyrique, ainda no Rio de Janeiro.


Os versos da música francesa, de autoria de Antonin Louis


“Les pompiers de Nanterre

Sont de bons garçons

Ils mangent les pommes de terre

Et laissent les lardons”,


Foram substituídos pelo ator Vasques, na sua versão carnavalesca, por outros que não lhes respeitavam o sentido, mas aproveitavam como tema a figura dos zé-pereiras tocadores de bumbo dos dias de carnaval:


“E viva o zé-pereira

Pois que a ninguém faz mal

E viva a bebedeira

Nos dias de Carnaval

Zim, balalá! Zim, balalá!

E viva o carnaval”.


Esses estribilhos integravam-se numa longa versalhada de pretensões humorísticas, mas o público fixou apenas a parte do ritmo mais marcado, e em pouco tempo os tocadores de zé-pereiras começaram a acompanhar suas marretadas no couros dos bumbos cantando a letra finalmente adaptada ao gosto da maioria:


“Viva o zé-pereira

Que a ninguém faz mal

E viva a bebedeira

Nos dias de Carnaval

Viva o zé-pereira!

Viva, viva, viva!”


Os acordes correspondentes aos versos dessas quadrinhas e seu estribilhos são os mesmos usados até hoje no carnaval, mas, curiosamente, apenas pelas orquestras carnavalescas de salão, a título de fanfarra, na abertura dos bailes, ou como sinal para mudança da música em execução.


Nas ruas o zé-pereira – brincadeira de origem portuguesa, com versos sobre música francesa – perdeu-se na memória do povo, que todo ano encontra novas músicas do seu gosto no manancial que a inspiração de compositores anônimos ou profissionais lhe ofereve, com a prodigalidade do seu gênio criativo. [8]


A partir dos fins do século XIX e início do atual, essas músicas saíam, no Rio de Janeiro, nas revistas de teatro da Praça Tiradentes (as canções que agradavam nas revistas de maior sucesso ganhavam as ruas, passando a ser cantadas pelo povo no carnaval), ou eram lançadas pelos compositores anônimos na famosa Festa da Penha, até hoje realizada nos quatro domingos de outubro no arraial existente no sopé do morro em que se ergue a igreja.


A presença crescente de nordestinos atraídos pelas oportunidades de trabalho no sul rudimentarmente industrializada aprofundava o caos sonoro desses carnavais do fim do século, levando foliões a cantarem deste paródias de trechos de ópera (como aconteceu em 1886 com a ária La donna è movile, da ópera La traviata, de Verdi, lançadas com versos satíricos de Arthur Azevedo na revista O Carioca) até chulas de palhaço de circo (como a famosa “Ó raia o sol / suspende a lua / bravo ao palhaço / que está na rua”), e ainda polcas a mazurcas europeias. Tudo para culminar no ano de 1916 com a consagração simultânea de uma valsa brasileira, Pierrô e Colombina, de Eduardo das Neves e Oscar de Almeida, um one-step americano, o Caraboo, e um estribilho do folclore nordestino, O meu boi morreu.


O fato de o clímax dessa confusão musical ter acontecido em 1916 não deixa de ser simbólico, porque, no carnaval do ano seguinte, embora ainda em meio à anarquia dos sons que deixaria aturdido nas ruas do Rio o jovem compositor erudito francês Darius Milhaud, deveria ser lançado com a composição intitulada Pelo Telefone o gênero destinado a fixar, afinal, o primeiro ritmo legitimamente carnavalesco e popular de todo o Brasil: o samba (continua na próxima semana...).


Escrito por José Ramos Tinhorão


Do livro Pequena História da Música Popular


NOTAS

[1] Entrudo vem de introitus, nome latino usado pela Igreja para designar as solenidades litúrgicas da Quaresma. Como a festa precede sempre a quarta-feira de cinzas, que marca o início do jejum, com a suspensão da carne, o mesmo entrudo português receberia na Itália o nome de Carnaval, originado da expressão latina carneleuale, e que significa – exatamente – retirada da carne. Em um manuscrito de 1130, Du Cange encontrou a palavra já registrada como uma expressão de certa forma estranha, pois diz “In Dominica in Caput Quadrasimae quae dicitur carneleuale...” (No Domingo do início da Quaresma, o qual é chamado de carneleuale).

[2] Barreto Filho, e Lima, Germeto, História da polícia no Rio de Janeiro, Editora A Noite, Rio de Janeiro, 2º Vol (1831-1870), p. 99.

[3] Episódio referido pro Brício de Abreu no artigo “O Carnaval carioca, do entrudo ao desfile das grandes escolar”, in Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 27/02/1965.

[4] Eneida, História do Carnaval Carioca. Editora Civilização, S.A, Rio de Janeiro, 1958, p. 31.

[5] Enenida, op. cit., p. 33.

[6] Lira, Marisa, artigo da série “Relíquias Cariocas”, publicado na revista Vamos Ler, de 09/02/1939, p. 51.

[7] Lira, Marisa, art. Cit., p 51.

[8] Em alguns pontos do Brasil, no entanto, o zé-pereira, quase certamente importado do Rio de Janeiro, integrou-se durante mais tempo ao carnaval de rua. Em crônica de 5 de fevereiro de 1967, no Jornal do Comércio, do RJ, o crítico Andrade Murici dizia lembrar-se de ter ouvido em Curitiba, o zé-pereira, o “singelíssimo hino popular sem ponderável substância musical que não o da sua adoção por todos para assinalar a festa, por lá tão simplória”. E em artigo publicado no Diário de São Paulo de 16 de março de 1958, o folclorista Renato de Almeida revela ter conhecido na cidade mineira de Ouro Preto um conjunto de zé-pereira fundado em 1896 e reorganizado em 1942, formado por “cinco clarins, dezoito caixas, dois bombos, dois pratos e dois taróis”. O autor deste livro obteve em 1972 informação da existência de zé-pereiras na velha cidade paranense de Castro, onde, aliás, continuaria a existir até hoje um animado carnaval de rua, inclusive com desfile de carros alegóricos.

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