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A importância do conceito de "Relações Humanas" em Paulo Freire para a formação do professor


Ilustração de Paulo Freire em um fundo amarelo

Por experiência própria do autor deste trabalho, é perceptível, na pedagogia, que Paulo Freire - e não sem razão - é frequentemente mencionado e referenciado quando se trata de questões como “pensar criticamente”, “educação libertadora”, “pedagogia crítica”, dentre outras temáticas postas em discussão pela intelectualidade democrática e progressista brasileira [1]. Menciona-se geralmente a obra de maior conhecimento pelo público, “Pedagogia do Oprimido”, escrita por Freire durante exílio no Chile, em 1968, e publicada nas terras brasileiras apenas em 1974, ainda durante o período dos governos militares reacionários (1964-1985).


A finalidade deste trabalho é apresentar ao leitor, de maneira sucinta, a importância do conceito de “relações” ou “relações humanas” – utilizado por Paulo Freire no primeiro capítulo do livro “Educação como Prática da Liberdade”, sua primeira obra publicada no Brasil, em 1967, durante seu exílio no Chile; obra que, inclusive, não é posta em discussão com tanta frequência, diferente da “Pedagogia do Oprimido” ou do “método Paulo Freire” – para a formação crítica do professorado de EJA e educadores em geral. O enfoque será dado aos escritos do próprio Paulo Freire e não será trabalhado o prefácio “Educação e Política”, escrito por Francisco Weffort.


O CONCEITO DE RELAÇÕES HUMANAS: FUNDAMENTAL PARA COMPREENDER PAULO FREIRE

Paulo Freire, no primeiro capítulo, intitulado “Sociedade Brasileira em Transição”, inicia a obra apresentando o conceito de “relações” em termos gerais, tratando das sociedades humanas. Este conceito é fundamental para compreender como Paulo Freire apreende a realidade social e o próprio ser humano, assim como fora capaz de desenvolver suas formulações sobre educação em particular ao desenrolar de sua obra como um todo. Entende-se que algo “fundamental” não seja simplesmente “coisa de grande relevância” para algo ou alguém; de fato, é aspecto de grande relevância, mas não se limita a isso: quando se diz que algo é “fundamental” é precisamente a identificação da base, do principal alicerce, que dá sustentação e determina todo o resto do processo. A seguir, o primeiro parágrafo do capítulo:

O conceito de relações, da esfera puramente humana, guarda em si, como veremos, conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de consequência e de temporalidade. As relações que o homem trava no mundo com o mundo (pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam uma ordem tal de características que as distinguem totalmente dos puros contatos, típicos da outra esfera animal. Entendemos que, para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é. (FREIRE, p. 47)


As relações sociais do ser humano o possibilita a agir criticamente em relação a ampla gama de contradições que circundam sua existência, buscando soluções diversas baseadas no entendimento destas contradições, portanto, correspondendo seu arcabouço teórico à realidade; situando-se conscientemente num dado tempo social e histórico (eis a temporalidade do ser humano); modificando (mudança como movimento quantitativo que não altera a totalidade de um período histórico) e transformando (transitar de um período histórico para outro) tal realidade social e natural em algo novo, cuja complexidade tornaria tal conjuntura emergida superior em relação à anterior do ponto de vista histórico – uma sociedade antidemocrática que transforma-se em democrática com ampla participação popular, por exemplo –, que demonstra ao ser humano seu grau de compreensão e domínio sobre o processo real. A singularidade da esfera puramente humana reside no fato de que esta, e somente esta, é capaz de modificar e submeter aos seus interesses a realidade em que existe socialmente, ou seja, a humanidade trabalha e produz cultura. O ser humano envolve-se em relações sociais a fim de solucionar os problemas com os quais se depara, mas não desenvolve respostas para estes problemas de maneira linear, e sim de maneira contraditória: concebe teorias sobre as questões e então as aplica. A partir dos resultados das experimentações com que lidou, é capaz de analisar e sintetizar quais teorias se demonstraram justas e quais não. Erra e acerta de maneira diversa incontáveis vezes, até de fato conhecer tais processos. Na relação plenamente humana, o ser assume consciência reflexiva sobre a realidade, portanto, crítica; o real, para a consciência crítica, é processo objetivamente cognoscível e caberá ao próprio homem refletir e agir sobre tal. Neste entendimento, a própria singularidade humana, seu caráter reflexivo/crítico, é encerrada por contraditoriedade. Paulo Freire, a este respeito, diz: “pluralidade na própria singularidade”. (p. 48)


O educador também indica um aspecto de transcendência, constitutiva das relações humanas. Segundo ele, essa transcendência não se limita apenas à transitividade de graus de consciência do ser humano, no caso da condição ingênua da consciência, correspondente ao ser objetificado, que “está na realidade”, “ajustado” a ela; mas, também, diz da condição crítica, típica do ser humano consciente de si e que não unicamente “está na realidade”, mas “com a realidade”, e envolve também a relação que o homem é capaz de estabelecer com o seu Criador, em sentido religioso. A religião, na perspectiva de Freire, deve cumprir papel de impulsionar o ser humano em sua luta contra as forças sociais que o mantém em condição de objeto, constrangendo seu aspecto ontológico de ser – o ser humanizado não “vive”, mas “existe” [2]; o ser que extrapola o campo dos “contatos” e estabelece o de “relação”, “integração” com seu meio.


Freire era um homem de prática e objetivo, isso é um fato. Mas não era um “praticista” ou “empirista”. Não detinha uma prática pura e simplesmente reativa aos fenômenos sociais, fragmentados em aparência. Freire possuía um conhecimento amplo e geral da realidade brasileira – expressos nesta obra –, compreendendo-a como totalidade e, portanto, apreende os fenômenos da realidade não como fragmentos isolados que se encerram em si mesmos, mas relacionados, interdependentes e objetivamente envolvidos entre si, determinando a existência de uns aos outros. Freire buscava entender a educação em sua íntima relação com o processo de desenvolvimento da realidade nacional. Não abordava a educação e seus problemas em si mesma, mas, partindo da própria realidade brasileira caracterizada como subdesenvolvida, esforçou-se em refletir sobre como seria possível colocar a educação a serviço da superação de tal condição, que mergulhava o povo trabalhador na pobreza e no analfabetismo. Sobre esta compreensão sobre o Brasil, Paulo Freire menciona o papel importante que instituições como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e a Universidade de Brasília (UnB) tiveram na tentativa de se criar uma geração de intelectuais que realizassem uma interpretação da realidade nacional a partir da nossa própria condição, e não partindo de realidades e formas de pensar oriundas da Europa e Estados Unidos, que eram transpostas à consciência da intelectualidade brasileira, acríticas diante dessa circunstância.


EJA ENQUANTO DIREITO DEMOCRÁTICO DAS CLASSES TRABALHADORAS AO CONHECIMENTO SOCIALMENTE PRODUZIDO

Refletindo a especificidade da Educação de Jovens e Adultos e a importância do entendimento das “relações humanas” em Paulo Freire, é possível indicar a EJA como um direito democrático das massas trabalhadoras ao conhecimento socialmente produzido. Mas o que seria isso? Significaria “transmitir” na EJA os velhos saberes da cultura dominante que são dogmaticamente inculcados nos educandos em sua juventude, mas que pelas próprias condições de existência social dos filhos e filhas das massas trabalhadoras – incongruência entre os interesses populares e a cultura dominante reproduzida nas escolas, assim como a necessidade de trabalho desde tenra idade para dar suporte à família, por exemplo – sequer fora possível? Definitivamente, não. Interessante destacar as experiências e apontamentos de Miguel Arroyo, em seu trabalho “Passageiros da Noite – do Trabalho para a EJA” (2017), onde indica que a EJA não pode ser tratada como uma “segunda chance” para a transmissão inflexível de conhecimentos da cultura dominante - por excelência antipopular, antidemocrática e castrada de qualquer criticidade mais rigorosa -, mas sim como oportunidade para que os educandos possam aprender criticamente as diversas esferas do conhecimento científico e, por isso, rejeitarem a suposta “neutralidade” que haveria nestas; é fundamental assegurar que os educandos das massas trabalhadoras desenvolvam capacidade de reconhecerem-se enquanto setor socialmente oprimido, enquanto trabalhadores que compõem uma realidade social cujas contradições não se tratariam de reflexos de problemas individuais ou inerentes a um setor em particular, mas sim de uma totalidade social que é submetida por interesses de classes estranhos aos povos trabalhadores. É preciso demonstrar aos educandos da EJA que também são produtores de conhecimentos, e que há, neste espaço, a possiblidade para desenvolvê-los, compreendendo as estruturas socioeconômicas em que estão inseridos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por que é fundamental para a formação do professor da Educação de Jovens e Adultos – e ao professorado como um todo – estudar e buscar entender as relações humanas de modo geral e com profundidade? Porque, como demonstra Paulo Freire, a educação é somente um dos aspectos que constituem uma formação social: todas as sociedades humanas possuem processos educativos que lhes são correspondentes, mas essas sociedades não são somente educação; porque é somente a partir de um conhecimento mais amplo das contradições sociais que estão inseridas no mundo, e que condicionam o dinamismo da realidade brasileira, que será possível atuar com criticidade nos embates políticos do país e no próprio trabalho educativo da juventude e de adultos, cujo direito democrático de acesso à educação lhes fora historicamente negado (e tem sido ainda negado) pela ordem social dominante. Portanto, para operar reflexivamente diante da obra de Paulo Freire, não se trata de ir diretamente ao “método” para aplicá-lo em seu ambiente de trabalho – isso seria manifestação da consciência ingênua, de ser objeto que aguarda manuais prescritos a serem fiel e acriticamente seguidos; em verdade, é fundamental compreender como o Patrono da Educação Brasileira foi capaz de realizar a sua obra, e isso não fora possível sem desenvolver um entendimento da realidade, sendo esta, nas palavras de Paulo Freire, objetiva.


Não foi um acaso o título da obra ser justamente “Educação como Prática da Liberdade”: a educação pode assumir caráter libertador, não sendo esta o ato de libertação em si, a partir do momento em que está direcionada à superação da condição objetificada do ser humano – dominado, adaptado e passivo diante da realidade social –, perseguindo a condição de ser; ser humano em sentido pleno, criticamente consciente de si e por isso capaz determinar seu próprio destino. Tal processo de transição de uma condição a outra é o processo de libertação do ser humano.



por Igor N. Dias


Notas

[1] Durante a Unidade Curricular “EJA: Diversidade e Práticas Educativas” do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ministrada pela Professora Dra. Mariângela Graciano, fora realizada breve apresentação das obras de Paulo Freire, dentre elas “Educação como Prática da Liberdade”, esta que ficou sob responsabilidade de grupo do qual o autor deste trabalho tomou parte. Durante as discussões no interior do grupo sobre como se daria a apresentação do breve seminário, foi notada uma dificuldade do conjunto em compreender o que era dito por Paulo Freire nesta obra especificamente. Com base nesta experiência e em seu processo de formação acadêmica, o autor deste texto dirige esforços em expor ao público que não se trata de somente mais uma obra complexa, mas sim, de obra fundamental para compreender o processo educativo libertador de forma mais ampla, sem cair em abstrações arbitrárias.

[2] Paulo Freire, em nota de rodapé, distingue a condição do que “vive”, daquele que “existe”. Segue trecho: “Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não há no simples viver”. (FREIRE, p. 48)


REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA: itinerários pelo direito a uma vida justa. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

BEISIEGEL, Celso de Rui. Paulo Freire. Coleção Educadores MEC. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana. 2010.

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 28ª Edição. 2005.

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