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"MMPB: Uma análise ideológica"



A Moderna Música Popular Brasileira apresenta uma proposta nova dentro da tradição. Surgida do desenvolvimento da Bossa Nova, que por sua vez já constituiu uma renovação radical da canção, se por um lado persiste na linha intimista que foi a marca registrada da Bossa Nova, por outro lado compõe um projeto de “dizer a verdade” sobre a realidade imediata.

Este projeto tem duas faces. No plano musical, implica numa volta às velhas formas da canção urbana (sambão, sambinha, marcha, marcha-rancho, modinha, cantiga de roda, ciranda, frevo, etc.) e da canção rural (moda-de-viola, samba de roda, desafio etc.). No plano literário, impõe um compromisso de interpretação do mundo que nos cerca, particularmente em suas concreções mais próximas, brasileiras. Basta arrolar a galeria de personagens: o boiadeiro, o cangaceiro, o marinheiro, o retirante, o violeiro, o menino pobre da cidade, o homem do campo, o nordestino que vem trabalhar no Sul, o chofer de caminhão, o homem da rua, o sambista, o operário, etc.

A proposta nova da MMPB reside nesse compromisso com uma realidade quotidiana e presente, como o “aqui e agora”. Esse compromisso leva-a a adotar a desmistificação militante, derrubando velhos mitos que se encarnavam em lugares comuns da canção popular, como a louvação da beleza do morro e do sertão, da vida simples mas plena do favelado e do sertanejo. Tome-se, por exemplo, dentre as dezenas de obras que foram dedicadas à idealização da vida no morro, a “Ave Maria no Morro”, de Herivelto Martins:

“...lá não existe felicidade de arranha-céu

pois que mora lá no morro

já vive pertinho do céu

tem alvorada, tem passarada...”

e faça-se a comparação com “Feio, não é bonito”, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri:

“Feio, não é bonito,

o morro existe

mas pede pra se acabar...”

Ou ponha-se, lado a lado, os textos de “Luar do Sertão”, de Catulo da Paixão Cearense, e “Disparada”, de Vandré e Théo.

A MMPB se caracteriza, portanto, por uma intencionalidade informativa e participante. Daí decorre seu teor literário mais épico que lírico, ou ao menos tão épico quanto lírico (raras são as canções puramente líricas); ou o próprio objeto da narração e o ouvinte se interpõe a dor do narrador ante o objeto narrado.

Esta análise, que visa ser generalizável a toda a produção da MMPB épico-lírica e lírico-épica, prende-se concretamente aos textos das canções dos seguintes autores: Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, escolhidos por serem os de produção mais numerosa e de maior popularidade no momento; ocorrem, ainda, eventuais alusões a canções de outros autores.

As canções que representam a persistência da linha intimista – aquelas que falam em moça-flor, menina azul, primavera, felicidade, rosas às dúzias ou não, barquinho, praia, sol – estão fora do âmbito desta análise. Como é uma linha de evasão ou escapista, é por isso mesmo auto-evidente como ideologia.

Por que submete a MMPB a uma análise ideológica?

As canções da MMPB são de muita boa qualidade, tendo, em decorrência, maior força de convicção e mensagens mais sutis. Estamos longe, aqui, tanto da grosseria e titilação do ié-ié-ié nacional, como do escapismo óbvio da produção intimista. E, ao nível do óbvio, as canções da MMPB aparentemente mobilizam o ouvinte mediante palavras-de-ordem avançadas: os oprimidos e os alienados povoam os textos delas.

E não menos importante é a faixa de público atingida preferencialmente por esta linha. Por ser mais sofisticada e de melhor qualidade, a MMPB não dispõe dos auditórios histéricos do ié-ié-ié; e porque incomoda um pouco, não serve para boates e situação análogas, que vêm a calhar com a linha intimista. O público da MMPB, de gosto mais refinado, tem sua massa constituída por universitários e seus adjacentes, como intelectuais em geral, artistas, publicitários, jornalistas, etc. É um público mais ou menos cultivado, que se acha familiarizado ao nível da informação com as preocupações sociais, econômicas e políticas de nosso tempo, e que responde bem a alusões à injustiça e à desigualdade.

Esse público ficava de pé e urrava exatamente neste trecho de “Disparada”, de Vandré e Théo:

“...porque gado a gente marca

tange, ferra, engorda e mata

mas com gente é diferente.”

por ocasião do lançamento dessa canção no II Festival de Música Popular Brasileira (São Paulo, 1966). E foi esse mesmo público que vaiou Hebe Camargo e Erasmo Carlos no III Festival de São Paulo (1967), sendo que a primeira teve seu programa de TV durante meses em primeiro lugar de audiência, e o segundo tem sempre seus discos nas melhores colocações das paradas de sucessos. A registrar que eles foram vaiados antes mesmo de poderem abrir a boca, o que significa uma vaia ao que são e ao que representam, e não às canções que defenderam. Um público que se preza de ser cultivado e sofisticado rejeita tanto Hebe Camargo como Erasmo Carlos.

É da aceitação de um público com essas características que depende a MMPB, com seu projeto informativo e participante, decidida a ser a derrubadora dos mitos tradicionais da canção brasileira. O sertão, o morro, a favela, o estilo de vida dos homens que neles vivem e morrem, são mostrados em sua realidade feia. A denúncia está aí. Mas, e a proposta que toda denúncia implica?

Pretendo mostrar, ao longo deste trabalho, que entre a denúncia antimitológica e a proposta se coloca a mediação de uma nova mitologia. E que esta nova mitologia assume o gesto de uma proposta falsa. Os passos são os seguintes: se eu digo que algo está errado, vai implícito nesse dizer um novo passo que será uma proposta de consertar o errado; mas, se eu digo que algo está errado e, em vez de fazer a proposta de conserto ao nível do errado, diluo a denúncia fazendo propostas ao nível mitológico, então eu apenas propicio a evasão.

Entende-se que um público de instrução universitária exija que as canções ventilem problemas sociais, políticos e econômicos. Entende-se também que esse público do privilégio se assuste ante uma proposta ao nível da denúncia e aceite ansioso uma nova mitologia que não o comprometa a agir. Entende-se melhor ainda que a canção “informativa” e “participante” seja tão escapista e consoladora quanto aquela que fala em moça-flor-sol-barquinho-amor-dor. Só que se trata de evasão e consolação para pessoas intelectualmente sofisticadas. O gesto de uma proposta encobre um afago ao privilégio.

Dentre os seres imaginários que compõem a mitologia da MMPB destaca-se O DIA QUE VIRÁ, cuja função é absolver o ouvinte de qualquer responsabilidade no processo histórico. Está presente num grande número de canções, onde aparece ora como o dia que virá, ora como o dia que vai chegar, ora como o dia que vem vindo. Geraldo Vandré é um especialista:

“Vim de longe, vou mais longe,

quem tem fé vai me esperar

escrevendo numa conta

pra junto a gente cobrar

no dia que já vem vindo...

e a gente fazendo conta

pro dia que vai chegar... (“Aroeira”).

Nesse primeiro exemplo, O DIA QUE VIRÁ aparece na plenitude de seu significado e função. O homem abdica de seu papel de sujeito na história, e o sujeito passa a ser O DIA, ser dotado de vontade e de movimento. Não sou eu, sujeito humano, que vou chegar lá, mas é O DIA que se encaminha para mim. “A gente”, então, fica dispensada de agir. Quem age é O DIA, “a gente” se dedica apenas a registrar os agravos, enquanto O DIA não vem.

Trata-se, portanto, de uma proposta imobilista e espontaneísta. Imobilista porque prega os braços cruzados. Espontaneísta porque delega a ação aO DIA, essa abstração mitológica. “A gente” não é responsável, por isso se considera absolvida.

Idêntico desvio do sujeito ocorre mais duas vezes na mesma canção, sendo que agora o sujeito da história é a coisa, igualmente personificada:

“...Madeira de dar em doido

vai descer até quebrar.

É a volta do cipó de aroeira

No lombo de quem mandou dar.”

A pregação imobilista e espontaneísta se manifesta de várias maneiras na obra de Vandré; uma variante é “Porta Estandarte” (parceria de Geraldo Lona):

“...eu vou levando minha vida enfim

cantando, que canto sim

e não cantava se não fosse assim

levando pra quem me ouvir

certezas e esperanças pra tocar

por dores e tristezas que, bem sei,

um dia ainda vão findar

um dia que vem vindo

e que eu vivo pra cantar...”

Devido à interferência de outro ser imaginário componente da mitologia da MMPB e tão importante quanto O DIA – a canção –, ocorre aqui uma saída aparente para o imobilismo. O cantador (autor, compositor, cantos, seja lá quem for) declara que ele não é imóvel porque canta. O homem, dispensado de agir porque O DIA é que é o agente da história, contenta-se com um simulacro de ação. E qual é a relação entre o cantar e O DIA? Permanece indefinida pela própria sintaxe: “um dia...que eu vivo pra cantar”. Se o ouvinte não consegue perceber a relação entre O DIA e o sujeito que vive pra cantar, não tem importância; o autor tampouco consegue.

Já no frevo “João e Maria”, ainda de Vandré, há uma tentativa de esclarecer essa relação:

“...quem sabe, o canto da gente

seguindo na frente

prepare o dia da alegria.”

A relação que há, então, entre O DIA e o cantar, é que talvez possa mesmo haver alguma relação. Com toda as reticências contidas na locução adverbial de dúvida e no subjuntivo verbal. É um caso de pensamento mágico que também pode ser assim expresso: quem sabe se a gente cantar bastante que O DIA vem ele venha mesmo. Como proposta, situa-se ao nível do primitivo que acende o fogo de madrugada para fazer o sol nascer, ou do ato de furar os olhos do bonequinho para que o inimigo cegue. Na “Ventania”, de Vandré e Hilton Acioly, quem carrega a responsabilidade renovadora é a vida, enquanto O DIA aparece numa posição de indeterminação:

“...irmãos no mesmo esperar

que um dia se mude a vida

em tudo e em todo lugar.”

Nesse trecho surge um outro ser imaginário como correlato d’O DIA; é a esperança ou o esperar. Quase sempre nas imediações d’O DIA, como ocorre em alguns dos exemplos acima, outras vezes aparece isoladamente. Mas, em ambos os casos, seu conteúdo é uma seleção muito particular dentro do campo semântico que a palavra cobre. Esperança, na MMPB, significa inação. Esperar significa postergar para o futuro. Vai implícita uma justificação do presente, em função da confiança na autonomia do futuro.

A correlação com O DIA pode ser expressa ou latente, mas sempre localizável, como na mesma “Ventania”:

“Pra esperar tenho a certeza

que guardo no coração.”

Esperar o que? Que O DIA venha, é claro.

Nem Chico Buarque, que em várias de suas canções procede a uma crítica da esperança e do esperar, escapou de cantar O DIA. Essa foi a base temática da canção que passe por ter sido sua primeira composição, a “Marcha para um dia de sol”, que ganhou o apelido de “Marcha João XXIII”, aliás muito justo. Não tão justo é lembrar essa canção, já que ela parece ter sido renegada pelo autor. Chico Buarque não a incluiu em seus LPs e nunca mais a cantou em público. Mas é nela que o mito d’O DIA aparece com toda a ingenuidade dos bons sentimentos juvenis:

“Eu quero ver um dia

nascer sorrindo

e toda gente

sorrir um dia...

Eu quero ver um dia

numa só canção

o pobre e o rico

andando mão em mão

que nada falte

que nada sobre

o pão dórico

e o pão do pobre...

Eu quero tanto um dia

o pobre ver sem frio

e o rico com coração.”

Observe-se que é só no início que O DIA é personificado. Indeterminado a partir do quarto verso, torna-se apenas a circunstância temporal em que se cumpre a fraternidade. Também aqui a relação do cantador com o futuro revela sua condição de espectador. Ele se propõe “a ver” e não “a fazer”. Depois dessa primeira canção, O DIA desaparece da obra de Chico Buarque para só retornar anos depois, uma única vez, e examinado de uma perspectiva cética:

“Ai, quem me dera ter um choro de alto porte

pra cantar com a voz bem forte

a anunciar a luz do dia.

Mas quem sou eu

pra cantar alto assim na praça

se vem dia, dia passa

e a praça fica mais vazia.”

A descrença nO DIA vem ligada à dúvida quanto ao significado da esperança e do esperar. Esperança que resulta no desencanto de “A Banda”, na desilusão de “Meu Refrão”, no desengano de “Sonho de um carnaval” ou a esperança fingida de “Ano Novo”, a esperança frustrada de “Olê, Olá”, o esperar sentado de “A Televisão”. Enfim, toda uma canção é dedicada à reflexão sobre o significado que podem ter a esperança e o esperar para um desafortunado (“Pedro Pedreiro”), concluído pela transformação da esperança no seu contrário:

“...Pedro não sabe mas talvez no fundo

espere alguma coisa maior do que o mundo

maior do que o mar

mas pra que sonhar se dá

o desespero de esperar demais

quer ser pedreiro e pobre nada mais

sem ficar

esperando, esperando, esperando...”

Já nas canções de Edu Lobo, que geralmente têm letra de outros, diversos, como Vinícius de Moraes, Oduvaldo Viana Filho, Capinam, Ruy Guerra, Lula Freire, etc., O DIA faz sua aparição de maneira habitual:

“...Certo dia que sei por inteiro

eu espero não vá demorar

este dia estou certo que vem...” (Edu Lobo e Capinam, “Ponteio”).

Como também em “Veleiro”, cuja letra é de Torquato Neto:

“anda, vem comigo que é tempo

vem depressa que eu tenho o braço forte e o rumo certo

oh, que o dia tá perto

e é preciso ir embora.”

Em “O tempo e o rio”, O DIA surge sob os nomes de seus semelhantes – o tempo, a manhã:

“...quem vive, luta partindo para um tempo de alegria

que a dor de nosso tempo é o caminho

para a manhã que em seus olhos se anuncia

apesar de tanta sombra

apesar de tanto medo.”

Mas “Aleluia” traz a surpresa de uma formulação mais incisiva.

“...toma a decisão, tá na hora

que um dia o céu vai mudar

quem não tem mais nada a perder

só vai poder ganhar.”

É verdade que a possibilidade de mudança está colocada num futuro confortável e sob a guarda do céu. Mas é verdade também que há uma proposta expressa num imperativo dirigido ao ouvinte no presente. E os dois últimos versos são inequívocos. Todavia, se situamos a citação em seu contexto, que é um poema sobre mar e pescador, verificamos que a decisão de que se fala é a de lançar o saveiro ao mar. Se é que se trata de uma proposta, a decifração é penosa.

Mesmo Gilberto Gil, que às vezes mostra clareza nos seus objetivos, também recorre aO DIA:

“...Desapeie dessa tristeza

que eu lhe dou de garantia

a certeza mais segura

que mais dia menos dia

no peito de todo mundo

vai bater a alegria...

monte em seu cavalo baio

que o dia já vai chegar

vai romper o mês de maio

não é hora de parar

galopando na firmeza

mais depressa vai chegar.” (em parceria com Torquato Neto, “Vento de maio”)

Apesar da presença dO DIA, dá pra perceber que o texto está tentando arregimentar o ouvinte, propondo-lhe metaforicamente a ação. E é justamente na obra de Gilberto Gil que se encontram as proposições mais claras e mais diretas, como esta em “Roda”, dirigida ao opressor:

“Seu moço, tenha cuidado

com a sua exploração

se não lhe dou de presente

a sua cova no chão...”

Ou como a afirmação de “Viramundo” (parceria de Capinam), onde as ações e opções são rigorosamente referidas ao sujeito que fala no texto e não a uma abstração qualquer:

“Sou viramundo virado

na ronda das maravilhas

cortando a faca e facão

os desatinos da vida

pulando pra não ser preso

pelas cadeias da intriga.

Prefiro ter toda a vida

a vida como inimiga

a ver na morte da vida

minha sorte decidida...

ainda viro este mundo

em festa, trabalho e pão.”

Mas frequentemente as canções de Gilberto Gil são incoerentes e confundem o ouvinte. Esse é, por exemplo, o caso de “Louvação” (letra de Torquato Neto), onde, depois de dizer:

“...que só espera sentado

quem se acha conformado.”

apela para O DIA para consolar os inativos:

“...Louvo quem canta e não canta

porque não sabe cantar

mas que cantará na certa

quando enfim se apresentar

o dia certo e preciso

de toda gente cantar.”

É na obra de Caetano Veloso que se encontra um tratamento particular do mito dO DIA. Tratamento que situa O DIA ao nível da mitologia privada e não mais ao da mitologia coletiva. Explico-me: O DIA, na canção de Caetano, aponta para a volta do nordestino à sua terra natal, depois de ter vindo trabalhar no Sul. Representa uma aspiração que, embora comum a um grande número de indivíduos, está referida ao destino individual de cada um. A consolação não repousa sobre um mundo que se fará diverso, mas sobre a ideia de um retorno pessoal. É menos o dia que virá do que o dia em que eu voltarei. Ou melhor: é o dia que virá para mim, não para todos; embora eu seja legião.

É o que ocorre nas canções de Caetano, por exemplo naquela que se intitula, justamente, “Um dia”:

“...abre os olhos, mostra o riso

quero, careço e preciso

de ver você se alegrar.

Eu não estou indo embora

estou só preparando a hora

de voltar.

No rastro do meu caminho

no brilho longo dos trilhos

na correnteza do rio

vou voltando pra você.

Na resistência do vento

no tempo que vou e espero

no braço do pensamento

vou voltando pra você...”

Nessa canção, o propósito de consolar a amada causa a transformação das imagens de afastamento e partida em imagens de aproximação e volta. Não tão interessante, mas igualmente variação em torno do dia da partida e da volta, é “Quem me dera”:

“Adeus, meu bem,

eu não vou mais voltar

se Deus quiser

vou mandar te buscar...

Ai, quem me dera voltar

Quem me dera um dia

Meu Deus, não tenho alegria

Bahia do coração...

Ai, quem me dera, meu bem

Quem me dera um dia

De ter você na Bahia.”

E mesmo quando está ausente o dia da partida e da volta, estão presentes imagens e seres adjacentes, como a viagem, a estrada, etc. É o que ocorre em “Nenhuma dor”:

“...é preciso

ó doce namorada

seguirmos firmes na estrada

que leva a nenhuma dor...”

e em “Avarandado”:

“Cada palmeira da estrada

tem uma moça recostada

uma é minha namorada

e esta estrada vai dar no mar...

eu e minha namorada

vamos seguindo na estrada

que vai dar no avarandado

do amanhecer.”

ou em “Capitão Lampião” (parceria de Torquato Neto):

“...nas estradas onde vadio

com meus trinta companheiros

não passa fazendo feira

não fico pedindo esmola

tomo o que é meu, vou-me embora

que o mundo não me consola.”

A obra de Caetano Veloso, até a ruptura metropolitana de “Alegria, Alegria”, mostra-se a tal ponto impregnada pelo destino comum aos homens de sua terra (e que de certo modo é o do autor também) que praticamente todo o seu imaginário é referido a esse destino. Muitas de suas canções abordam o tema do indivíduo que é obrigado a deixar sua terra em busca de trabalho; e mesmo quando o tema central não é esse, as imagens de partida são importantes:

“...há um tanto tempo ele foi-se embora

para bem longe

pra além do mar...” (“Sol negro”).

No plano dos sentimentos pessoais, esse destino é marcado pela ambiguidade. A partida faz sofrer, mas ficar também resulta em sofrimento. E se há alegria em ficar, também há em partir. Esse beco sem saída que é o quinhão do homem nordestino, Caetano Veloso apreende em algumas de suas canções, como ‘No dia que eu vim me embora”:

“No dia que eu vim me embora...

vi que não entendia nada

nem de porque eu ia indo

nem dos sonhos que eu sonhava...

afora isto, ia indo

atravessando, seguindo

nem chorando, nem sorrindo

sozinho pra capital.”

E é essa ambiguidade que domina sua canção intitulada “A ciranda de Lia”:

“...eu tava lembrando a partida

sem ter alegria,

sem rir, sem chorar

às vezes eu penso que a vida

não vale a agonia

de partir, ficar.”

que ganha acentos trágicos:

“...esta desgraça nova em cada dia

esta paixão de achar, de procurar

esta certeza em ponto de partida

saber sorrir, morrer, querer voltar

esta tristeza ardendo na garganta

esta alegria

esta desgraça, santa

esta ciranda...”

Do mito dO DIA decorre o mito da canção. Já que a utopia se cumprirá espontaneamente, eu não sou responsável, não tenho tarefas a executar, estou dispensado de agir. Então, as opções possíveis são: 1) cantar, para me consolar, enquanto O DIA não vem; 2) cantar, para anunciar a toda gente que O DIA virá sim; 3) cantar, para fazer O DIA vir. Em suma, não há opção a não ser cantar; o que varia é a finalidade do cantar. Consolo, divulgação ou pensamento mágico, eis as finalidades que a canção da MMPB propõe a si mesma. E todas essas finalidades se reduzem a uma só, que é a consolação. Cada autor e cada ouvinte se consola com qualquer das três finalidades. Todas elas são nobres, fraternas e avançadas; consolar os que sofrem, anunciar o futuro, preparar o futuro. Assim, autor e ouvinte são reassegurados de seu papel importante na história.

A canção da MMPB resulta, portanto, numa evasão à implicação pessoal de cada um na história. Em primeiro lugar, ela oferece a perspectiva dO DIA; em segundo lugar propõe-se a si mesma como solução. É uma canção que faz da canção um mito. Por isso, cantar é a única proposta que a canção da MMPB ousa fazer.

E já na pré-64 “Marcha de quarta-feira de cinzas”, de Carlos Lyra, essa formulação aparecia:

“...o que resta é cantar

e alegrar a cidade.”

Vamos ver as variações que a MMPB apresenta, sobre a canção. Começo com o “Jogo de roda”, de Edu Lobo, tão interessante que merece transcrição integral:

“Ê olê de roda

vira a roda

roda o tempo

nasce um samba em minha mão

olho a praia

chamo o vento

abro os braços à canção

eu sei aonde estou

e sei onde é que eu quero ir

e quem quiser

que entre na roda e vá rodas também.

Ah, meu amor, o mundo assim não pode ser

é só tristeza e noite pra se ver

sozinho estou num mundo em que o mal é lei

mas o meu canto vem fora de lei.

Ah, meu amor, vem pra perto de mim cantar

Que nesta roda a dor vai se entregar.

A minha voz é fraca mas em meu olhar

Um novo mundo gira sem parar, sem parar, sem parar

A rodar, a rodar, a rodar...

...E assim

ganho norte

ganho a vida

ganho um samba de cordão

tenho a noite já vencida

na palma de minha mão

o samba já chegou

canta a tristeza, a fé também

e o teu amor samba na roda do meu coração.”

Observa-se inicialmente a atitude atrevida do sujeito que canta, expressa no caráter ativo dos verbos em indicativo presente (olho, calmo, abro). E que culmina na afirmação desabusada: “eu sei aonde estou/e sei onde é que eu quero ir”. A estrofe conclui num alçar de ombros com relação aos outros (quem quiser).

Na segunda estrofe, o sujeito se recolhe à meditação sobre o mal e a dor que há no mundo, estabelece uma relação rebelde e altiva entre seu canto e o mundo, para na terceira estrofe, declarar-se vencedor: “ganho norte/ganho a vida/ganho um samba de cordão”. A vitória da música (música que o sujeito faz) sobre o mundo é marcada pela passagem de “nasce um samba em minha mão” na primeira estrofe para “tenho a noite já vencida/na palma da minha mão” na terceira.

O “novo mundo” se resolve em canção. O novo mundo ainda não está aí, naturalmente, ele só existe “em meu olhar”. Mas algo de concreto e imediato se pode propor, já que o que há de concreto e imediato é a música: “o samba já chegou”. Consolemo-nos, cantando, enquanto o novo mundo não vem: enquanto cantamos, a dor se entrega.

Esta automistificação da canção, que se propõe a si mesma como solução para o mundo, causa os maiores equívocos. O mesmo Edu Lobo é autor de um frevo, o “Cordão da saideira”, que começa assim:

“Hoje não tem dança

não tem menina de trança

nem cheiro de lança no ar

hoje não tem frevo

tem gente que passa com medo

e na praça ninguém pra cantar.”

A esta altura estamos certos de que se trata de uma canção de jogo franco: o povo ausente da praça, não canta, não dança e tem medo. E estamos na terra do frevo. E é hoje. Isto é, ontem não era assim. O que é aparentemente confirmado pela continuação:

“Me lembro tanto

e é tão grande a saudade

que até parece verdade

que o tempo ainda pode voltar...”

Mas a canção acentua o passado para terminar no mais radical e banal saudosismo:

“...tempo do poço

da rua da Aurora

é o moço no passo

menino e senhora

pra baixo e pra cima

no bonde de Olinda...”

É, portanto, com elementos de um passado urbano pré-industrial (poço, bonde) que se faz a oposição ao medo de hoje e à audiência do povo, do canto e da dança. Aí então é que o ouvinte se lembra daquela “menina de trança” logo no segundo verso, que, perdida no meio das insinuações, retoma toda a sua força quando colocada ao lado do poço e do bonde. Quer dizer então que bom mesmo era o tempo em que a cidade grande parecia cidadezinha do interior, quando o carnaval gerava uma aparência de fraternidade e igualdade. O engano foi do ouvinte, ao supor que o tempo passado que se recorda com nostalgia – e, repito, estamos na terra do frevo – fosse muito mais recente, que a mudança se lamenta fosse diversa, que a fraternidade e a igualdade que ser perderam fossem outras que não as do carnaval. Saudosismo e sentimentalismo, eis a chave do “Cordão da Saideira”.

Vandré também não deixou de fazer o seu frevo, que, aliás, não deixa de ser engraçado (ou triste?) se o lermos com óculos metafóricos:

“...o grande cordão cantava

e o canto crescia

da simples canção

que era de João pra Maria

e o povo na rua

pensou que era sua

de tanto que andava

atrás de qualquer alegria

e na cantiga de João

que era só ilusão

jogou a esperança que havia.” (João e Maria).

Nem saudosista nem sentimentalista, mas voltada para o presente e para o futuro, é outra composição de Edu Lobo, “Ponteio”, com letra de Capinam. Tendo por tema a própria canção e o cantador que a canta, termina do seguinte modo:

“...encerrar meu cantar já convém

prometendo um novo ponteio

certo dia que eu sei por inteiro

eu espero não vá demorar

este dia estou certo que vem

digo logo que vim pra buscar

correndo no meio do mundo

não deixo a viola de lado

vou ver o tempo mudado

e um novo lugar pra cantar.”

Dessa última parte ressalta a relação, algo confusa, entre a nova canção que será cantada no novo dia e o papel do cantador. O cantador tem a nobre missão de assegurar a quem o ouve que as coisas vão continuar como estão, que haverá um novo dia no qual ele cantará uma nova canção. E, last but not least, seu cantar incessante se destina a chamar o novo dia (“digo logo que vim pra buscar”).

Esta fé no poder mágico da canção – a canção é a causa do futuro – aparece também em “Avarandado”, de Caetano Veloso, onde a canção se torna até mesmo a causa de fenômenos da natureza:

“...qualquer canção, quase nada

vai fazer o sol levantar

vai fazer o dia nascer...”

Apenas insinuada no “Cordão da Saideira” e em “João e Maria”, a misturada completa entre canção e povo se faz em “Batucada”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil:

“...o samba vai vencer

quando o povo perceber

que é o dono da jogada.

O samba vai crescer

Pelas ruas vai correr

Uma grande batucada.”

Vejamos se consigo acompanhar. O povo é o dono da jogada, mas não sabe disso; quando souber, não é o povo que vai vencer (vencer a que ou a quem?), mas sim o samba. E o samba vai vencer, vai crescer e se espalhar pelas ruas. Com um pouco de boa vontade, posso tentar uma interpretação metafórica. Evidentemente, o samba é produzido pelo povo, é um tipo de manifestação característica do povo, e é preciso muita gente para fazer o samba e a batucada. E, exagerando a dose de boa vontade, posso mesmo dizer que a palavra batucada, colocada nessa posição, conota outras sonoridades.

Mas se chego bem perto do texto sem qualquer boa vontade, percebo lá hiatos injustificáveis (o povo percebe e o samba vence). Pior que isso é a presença da heresia espontaneísta habitual: o deslocamento do eixo do problema coloca a ação nas mãos de uma abstração, o samba.

As canções de Gilberto Gil são exemplares nesse tipo de confusão. Em “Louvação” (parceria de Torquato Neto), o cantador, que se fala na primeira pessoa, enfatiza logo de saída seu critério e sua capacidade de julgamento:

“Vou fazer a louvação

do que deve ser louvado

quem estiver me escutando

atenção, atenção

que me escute com cuidado

louvando o que bem merece

deixo o que é ruim de lado.”

Mas adiante, criteriosamente, procede à seguinte louvação:

“...louvo a paz pra haver na terra

louvo o amor que espanta a guerra...”

Afinal, uma versão nativa de “Make love not war”, deslocada do contexto que a gerou.

Mas não é só isso que há nessa canção. Tem mais. Por exemplo:

“...louvo o jardim que se planta

pra ver crescer a roseira

louvo a canção que se canta

pra chamar a primavera...”

Os dois primeiros versos trazem à mente do ouvinte o rico significado de expectação passiva do “cultiver son jardin”, acentuado pela relação do espectador (“ver”) face ao espetáculo que se cumpre espontaneamente: o crescer é da natureza das roseiras. Os dois últimos versos caem no desvio mágico, em que o papel do cantor é fazer as coisas acontecerem tendo por único instrumento a canção. E é muito razoável que um compositor-cantor louve aquilo que ele próprio faz.

Outra das canções de Gilberto Gil, “Lunik 9”, é uma confusão só, do início ao fim. De fato, é aparentada ao “Cordão da Saideira” de Edu Lobo. Gilberto Gil lamenta o progresso tecnológico porque traz alterações nas relações humanas. Não é de todo absurdo o que Gil diz inicialmente:

“...e lá se foi o homem

conquistar os mundos, lá se foi

lá se foi buscando

a esperança que aqui já se foi...”

Mas resta saber em nome de quem Gilberto Gil compõe uma canção melancólica sobre o primeiro foguete espacial a chegar à Lua. Parece que é mesmo em nome de certos elementos líricos que confundem a questão, que não continuam a linha anunciada nos versos acima, e que têm implicações sentimentais e saudosistas:

“...Poetas, seresteiros, namorados

correi

é chegada a hora de escrever e cantar

talvez as derradeiras noites de luar...”

Isto é: a esperança já não existe, mas em compensação ainda temos luar. E por isso faz-se um apelo, não para estabelecer uma nova esperança, ou uma razão de viver, mas para cantar algo que está em vias de desaparecer (é o que diz a canção). Canta-se aquilo que está acabando, não aquilo que está começando. E, como sempre, a grande e única tarefa coletiva é cantar.

Um caso curioso de incoerência quanto à função da canção reside no fato de se admitir que o ouvinte não a ouça. O melhor e mais chocante exemplo disso está na “Disparada”, de Vandré e Théo, na parte final:

“...Se você não concordar

não posso me desculpar

não canto para enganar

vou pegar minha viola

vou deixar você de lado

vou cantar noutro lugar.”

Este final arruína um belo testemunho de como uma consciência nasce da experiência. Para que serviu o nascimento dessa consciência? O boiadeiro-narrador conta sua trajetória numa canção e diz que se alguém não concordar ele se retira. Assumiu sua consciência, a duras penas, com consequências de parto da montanha. Em vez de utilizar sua consciência para uma ação por ela determinada, limita-se a sair cantando por aí. E, o que é pior, só para quem quiser ouvir, disposto a se retirar ao menos sinal de descontentamento.

Descontentamento que, na realidade, não ocorre. O ouvinte continua ali, no auditório de TV, no teatro, perto do rádio ou da vitrola, dando sua atenção ao que está sendo cantado. E se sente lisonjeado, porque não é como os outros de que a canção fala, outros que não concordam com o que a canção diz. Desse modo é assegurada a cumplicidade entre autor e público. Cada ouvinte se diz: “eu não sou desses, eu estou aqui ouvindo e gostando”. E o autor passa por ser valente e corajoso, porque ousa cantar coisas que desagradam a muita gente. E, como tudo se passa ao nível da canção, ninguém percebe que aquilo que o cantor-autor faz é o mesmo que sua personagem diz que faz: ele canta porque o público gosta, se o público não gostar ele pega sua viola e vai cantar em outro programa.

A mesma incoerência reaparece na “Roda” de Gilberto Gil. Por quatro vezes são repetidos estes versos, com pequenas modificações, servindo de refrão às denúncias feitas ao longo da canção; transcrevo aqui a primeira ocorrência:

“...quero ver quem vai sair

quero ver quem vai ficar

não é obrigado a me ouvir

quem não quiser escutar.”

Cada ouvinte é declarado livre de ouvir apenas o que deseja. Se a canção não o agrada, ele se retira e tudo continua como sempre. Mas, naturalmente, todos os ouvintes continuam ouvindo e se achando progressistas. Outras vezes a relação de cumplicidade entre autor e público se resolve em ameaça direta, porém colocada num vago futuro. Ameaça a alguém que não o ouvinte, é claro:

“Vim aqui só pra dizer

ninguém há de me calar

se alguém tem que morrer

que seja pra melhorar...

você que não me entendeu

não perde por esperar.” (Vandré, “Réquiem para Matraga”).

O desejo de definir a função da canção aparece frequentemente. Ora, num momento de desânimo, é posta em dúvida a eficácia possível:

“...não, nem há porque seguir cantando só para explicar

não vai nunca entender de amor

quem nunca soube amar.” (Vandré, “Pequeno concerto que virou canção”).

Ora, como no “Porta-estandarte” de Vandré e G. Lona, é afirmada, embora envolta em negativas, a importância da canção para o ouvinte:

“...e não cantava se não fosse assim

levando para quem me ouvir

certezas e esperanças...”

Volta e meia esse desejo de definir a função da canção se transforma em autojustificação. Como o autor opera com contradições insolúveis, confundidas para que possam ser engolidas pelo público e por ele mesmo, o peso da inconsistência se torna insuportável e provoca uma justificação, quase um pedido de desculpas:

“...desce o teu rancho cantando essa tua esperança sem fim

deixa que a tua certeza se faça do povo a canção

pra que o teu povo cantando o teu canto ele não seja em vão.” (Vandré e G. Lona, “Porta-estandarte”).

O “povo”, então, é quem legitima o ofício do compositor. Mas, se atento para que parcela do povo constitui o público desse tipo de canção, já me perco novamente na inconsistência. Validade da canção torna-se sinônimo de sucesso. Se o “povo” canta a canção que eu componho, ela é válida; se o “povo” não a canta, ela não é válida. Devo então compor sempre tendo em vista dar ao público o que ele quer. O que, me parece, não é grande novidade. Nem grande avanço.

Essa confusão entre almejar o sucesso (muito natural, não é?) e querer cumprir uma missão coletiva, aparece também na “Canção de não cantar”, de Sérgio Bittencourt:

“...Meu canto

para ser um canto certo

vai ter que nascer liberto

e morar no assobio

do ocupado e do vadio

do alegre e do mais triste...

ai que bom se eu ouvisse

o meu canto por aí.”

Dar um alcance coletivo a seu canto, para além do sucesso, eis a preocupação que borta de um modo particularmente intenso na “Ventania”, de Vandré e Hilton Acioly:

“Meu senhor, minha senhora

vou falar com precisão

não me negue nesta hora

seu calor, sua atenção

a canção que eu trago agora

fala de toda a nação.”

De fato, o autor-cantor está implorando a atenção do público, com certa ingenuidade até. E precisa justificar o direito que julga ter a esse calor e a essa atenção: o direito que lhe confere sua missão coletiva, especificada no último verso. Uma declaração de princípios ao nível da autojustificação é o fecho de “Ventania”:

“...cantador não por dinheiro

por justo anseio geral.”

Não é por dinheiro não; o dinheiro é um pormenor que por acaso vem junto. A necessidade do cantar tem outra determinação, o tal “anseio geral”. Agora, como legitimar esse anseio geral? Porque não é qualquer anseio que deve ser atendido, como por exemplo o anseio geral pela mulher do próximo, o anseio geral por dinheiro, o anseio geral pela despreocupação com os destinos do mundo. O mais seguro é não tentar legitimar por argumentação e limitar-se à mera declaração: “por justo anseio geral”. Mas quem é que declara que é justo? O próprio autor-cantor. É ele quem coloca a necessidade de seu canto numa solicitação que vem dos outros, e é ele o juiz que declara isso justo.

Dessa incoerência universal da MMPB quanto aos propósitos da canção, uma pergunta fica: será automistificação ou apenas mistificação do outro? O essencial – o caráter consolador dela – nunca é mencionado. Mas, na nebulosidade da MMPB, surge uma única vez, quase subliminarmente, uma fulguração de lucidez:

“...e uma canção me consola...” (“Alegria, Alegria”).

Tiremos o chapéu a Caetano Veloso: dentre nós todos, só ele ousou confessá-lo.

No capítulo da canção que se propõe a si mesma como solução para os males do mundo, Chico Buarque exige um exame à parte. Toda a sua obra constitui uma só e interminável reflexão sobre a canção. Para que serve a canção, qual seu alcance e poder, o que é que ela pode dar ao ouvinte, qual o papel e a importância do autor, tais são os problemas que permeiam toda a produção de Chico Buarque.

É possível reduzir – sem esquecer as traições que toda redução implica – a obra de Chico Buarque a dois tipos fundamentais. De um lado está a metacanção pura, ou seja, a canção sobre a canção, essencialmente lírica embora possa conter elementos narrativos. Pertencem a esse tipo “Sonho de um carnaval”, “Tem mais samba”, “A Banda”, “Roda-Viva”, “Olê, Olá”, “Realejo”, etc. De outro lado, a canção mediada por uma personagem, cheia de pormenores anedóticos. Neste tipo, não é mais o autor que medita em primeira pessoa sobre a canção; entre autor e canção está colocada uma personagem que fala ou sobre quem se conta uma estória. Mas a música é sempre importante para a compreensão do destino das personagens:

“Quem te viu, quem te vê” (“Hoje o samba saiu/procurando você/.../Hoje eu vou sambar na pista/...”), “Teresa Tristeza” (“...ao menos sou sincero/que te adoro, que te quero/mas não sei viver sem carnaval”), “Rita” (“...e além de tudo/me deixou mudo/o violão”), “Você não ouviu” (“Você não ouviu/o samba que eu lhe trouxe/.../Você diz... que o meu samba é plágio/é só lugar comum/.../A sua dança vai durar enquanto/você tem encanto/e não tem solidão./No fim da festa há de escutar meu canto...”), “Juca” (“Juca ficou desapontado/declarou ao delegado/não saber se amor é crime/se samba é pecado/em legítima defesa/batucou assim na mesa...”), “Logo eu?” (“Essa morena, de mansinho, me conquista/vai roubando gota a gota/esse meu sangue de sambista...”), “Com açúcar, com afeto” (“Vem a noite, mais um copo/sei que alegre ma non tropo/você vai querer cantar/Na caixinha um novo amigo/Vai bater um samba antigo...”), “Fica” (“...Diga que o meu samba é fraco...”), “Lua Cheia” (“...Meu violão ficou tão triste, pudera!/.../E eu fiquei sem versos/e eu fiquei em vão.”), etc.

Estas canções do segundo tipo são em geral “à maneira de” Noel Rosa, Sinhô, Ataulfo Alves, etc., isto é, têm formas mais tradicionais. Enquanto é nas do primeiro tipo que aparecem as formas mais originais, mais inventivas.

Se, na produção dos demais autores examinados se encontra uma preocupação difusa quanto ao seu ofício (“por quê?” e “para quê?” perguntam eles de vez em quanto), essa preocupação é dominante em toda a obra de Chico Buarque. E enquanto todos eles, de um modo ou de outro, acreditam ou fazem força para acreditar no poder da canção, Chico Buarque traça limites bem definidos para esse poder. Que é o de gerar felicidade e fraternidade, ambas efêmeras, com duração igual à duração de uma canção. É portanto a oferta de consolação, mas exclusivamente ao nível da música. Suas canções nunca dizem que o cantar leva a alguma coisa que perdure depois que a canção termina. Não há ali proposta alguma que transcenda ao ato de cantar, que prometa algo além da curta alegria do cantar em comum. Quando a canção chega ao fim, também chegam ao fim a felicidade e a fraternidade por ela geradas. E é claro que essa concepção, limitando tanto o poder da canção como as virtualidades humanas de felicidade e fraternidade, vai a par com a colocação taxativa da impossibilidade de mudança do mundo e do ser humano.

“A Banda”, que foi até hoje o maior sucesso do compositor, e é uma de suas mais completas metacanções, expressa a dor do poeta ao registrar uma série de modificações que a passagem da banda causa nos seres, modificações que se desvanecem assim que se deixa de ouvir o som da banda. E não é qualquer som: a banda passa “cantando coisas de amor”. O som da banda traz uma ilusão momentânea de felicidade a quem o ouve, arrancando as pessoas de seu estado normal de solidão e sofrimento (“A minha gente sofrida/despediu-se da dor”), para o qual elas voltam quando cessa o som. E o poeta, mais lúcido que essas pessoas, sofre com isso:

“...Mas para o meu desencanto

o que era doce acabou

tudo tomou seu lugar

depois que a banda passou.

E cada qual no seu canto

Em cada canto uma dor

Depois da banda passar

Cantando coisas de amor.”

A canção, ou a música, aparece na obra de Chico Buarque sob vários nomes: banda, samba, refrão, chorinho, batucada, violão, cavaquinho, dança, festa, realejo, viola, carnaval, etc. Mas sempre com o mesmo significado: ela é o lugar da fraternidade e por isso o lugar da felicidade:

“Vem, que passa

teu sofrer

Se todo mundo sambasse

Seria mis fácil viver.” (“Tem mais samba”).

Esses versos contêm um apelo fraterno, uma promessa de alegria e a colocação no condicional da dança coletiva como solução para o sofrimento dos homens, condicional que acentua a impossibilidade da solução. O caráter efêmero da consolação intersubjetiva que a dança oferece é mais marcado em “Sonho de um carnaval”:

“Carnaval, desengano,

deixei a dor em casa me esperando

e brinquei e gritei e fui vestido de rei

quarta-feira sempre desce o pano...

mão na mão, pé no chão

e hoje, nem lembra não,

quarta-feira sempre desce o pano...

Era uma canção, um só cordão, uma vontade

De tomar a mão de cada irmão, pela cidade...”

Como também em “Noite dos mascarados”:

“... Mas é carnaval

não me diga mais quem é você

amanhã tudo volta ao normal

deixa a festa acabar

deixa o barco correr

deixa o dia raiar

que hoje eu sou da maneira que você me quer...”

“Sonho de um carnaval” e “Noite dos mascarados” se beneficiam, é verdade, do velho lugar-comum da música popular brasileira que é o tema da exaltação carnavalesca à qual se segue a tristeza da quarta-feira de cinzas. Mas a maneira de tratar o tema é característica do autor, como se verifica em “Carolina”, que não tem relação com o carnaval:

“Carolina, nos seus olhos fundos

guarda tanta dor

a dor de todo este mundo.

Eu já expliquei que não vai dar

Seu pranto não vai nada ajudar

Eu já convide para dançar

É hora, já sei, de aproveitar.

Lá fora, amor,

Uma rosa nasceu

Todo mundo sambou...

Fui eu que avisei: vai acabar

De tudo lhe dei para aceitar

Mil versos cantei para lhe agradar

Agora não sei como explicar.

Lá fora, amor

Uma rosa morreu

Uma festa acabou...”

E se este “Eu” que fala nesse texto, no seu afã de consolar Carolina, convida-a para dançar e canta mil versos, em outra canção ele chama atenção de Teresa para a única alegria que resta e que é a da confraternização no canto e na dança:

“...Diz que não tem café

diz que não tem feijão

nem sandália no pé

nem aliança pro dedo da mão.

Oh, Teresa, é tão pouca a tristeza

Tem gente que nem carnaval não tem.” (“Teresa Tristeza”).

Outras canções se detêm mais na impotência da música em oferecer uma solução permanente. O autor se debruça sobre sua própria insuficiência:

“Estou vendendo um realejo,

quem vai levar?...

Já vendi tanta alegria

Vendi sonhos a varejo

Ninguém quer mais hoje em dia

Acreditar no realejo...

Hoje em dia já não vejo

Serventia em meu cantar

Então eu vendo o realejo

Quem vai me levar? (“Realejo”).

Para além do desencanto presente, para além mesmo da nota saudosista dada pela própria escolha do objeto – um instrumento musical de nosso passado suburbano – e reiterada pela contraposição entre passado e presente, persiste a oferta do “fazer música” para alcançar a felicidade, ainda que momentânea e ilusória:

“Quem comprar leva consigo

todo o encanto que ele traz

leva o mar, a amada, o amigo,

o ouro, a prata, a praça, a paz.” (“Realejo”).

Por vezes transparece o desânimo causado pela derrota da canção ante aquilo que é maior que a canção, que está fora da subjetividade, que está além da capacidade de um sujeito só mesmo que acompanhado da amada. Não basta o projeto privado para alcançar a felicidade:

“Ai, meu amor,

a sua dor, a nossa vida,

já não cabem na batida

do meu pobre cavaquinho.

Quem me dera

Pelo menos um momento

Juntar todo o sofrimento

Pra botar neste chorinho.

Ai, quem me dera

Ter um choro de alto porte

Pra cantar com a voz bem forte

E anunciar a luz do dia.

Mas quem sou eu

Pra cantar alto assim na praça

Se vem dia, dia passa

E a Praça fica mais vazia.” (“Um chorinho”).

Em “Roda-Viva”, prevalece o sentimento da derrota da canção:

“...A gente toma iniciativa

viola na rua a cantar

mais eis que chega a Roda-Viva

e carrega a viola pra lá...

O samba, a viola, a roseira,

Que um dia a fogueira queimou,

Foi tudo ilusão passageira

Que a brisa primeira levou...”

Mas é em “Olê, Olá” que temos o processo completo das possibilidade de consolação que a música pode dar. O próprio título, que se repete a intervalos no texto, é um apelo fraterno, tal como o da banda. A canção inteira resume-se ao esforço de um ser humano – o “Eu” que fala no texto – para impedir que outro ser humano chore, oferecendo-lhe em troca a consolação da música:

“Não chore ainda não,

que eu tenho um violão

e nós vamos cantar...”

Como o canto solitário não resolve, o chamado é dirigido a outros para que colaborem nessa tarefa de consolação:

“Seu padre, toca o sino

que é pra todo mundo saber...”

Se a música existe e está aí para ser fruída (“Tem samba de sobra”), quem sabe a persistência alcance algum resultado: é o que o poeta tenta explicar:

“Não chore ainda não

que eu tenho uma razão

pra você não chorar.

Amiga, me perdoa

Se eu insisto à toa

Mas vida é boa

Para quem cantar...”

E o apelo musical aos outros se faz mais insistente:

“Meu pinho toca forte

que é pra todo mundo acordar...”

Numa terceira tentativa, a argumentação vai se tornando mais fácil e passa a ser feita em nome de uma mera impressão:

“Não chore ainda não

que eu tenho a impressão

que o samba vem aí...”

Todavia, o apelo de fraternidade não atinge ninguém, nem as pessoas, nem as abstrações (felicidade, luar, samba). E o poeta desiste, reconhecendo a impossibilidade de consolar sozinho a outrem:

“...e você, minha amiga

já pode chorar.”

É verdade que as canções de Chico Buarque têm um lado simpático que revela um jovem em luta com seu próprio ofício. Que afinal de contas é um ofício público. Suas canções colocam a fraternidade como o mais alto valor humano e como a única via para a felicidade. Mas essa fraternidade e essa felicidade são encontradas somente no curto tempo que dura uma canção. Não existe fora da canção, porque vivemos num mundo degradado onde os únicos momentos de espontaneidade e plenitude são os da “mão na mão”, de um sambar coletivo. Ainda assim, o poeta se propõe a continuar causando esses rápidos relâmpagos de fraternidade com suas canções.

Mas não é menos verdade que, tal como os demais autores, e embora com maior lucidez, também a única proposta das canções de Chico Buarque é: “cantemos”. Sua perspectiva cética nega a possibilidade de as coisas virem a ser diversas, negam que o homem seja o sujeito da história e que ele possa transformar o mundo. Debruçar-se sobre a infelicidade humana e deplorar o destino de cada indivíduo no mundo em que vivemos, ao mesmo tempo que se afirma que não pode ser de outro jeito, redunda em fatalismo conservador.

Daí: não há na canção popular brasileira sinais de uma consciência avançada nem proposta para qualquer ação que não seja cantar. Como essa canção não é folclórica, mas semi-erudita, vale o cotejo com exemplos da mesma linha. Por isso, nem é preciso apelas para as canções de Brecht e Kurt Weil; basta pensar em “A Marselhesa”. Enquanto nossos autores oferecem ao público um confortável dia que virá, “A Marselhesa” diz que o dia já chegou:

“Allons, enfants de la patrie

Le jour de gloire est arrivé.”

Todavia, era uma vez uma canção chamada “Carcará”.


por Walnice Galvão, in: Saco de gatos: ensaios críticos. 2ª Ed. São Paulo: Duas Cidades, 1976, p. 93-119.

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