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"Carta a uma jovem estudante de história"


Prezada Lúcia,

seu pai me mostrou sua carta de 26 de maio, com interessantes observações a respeito da História. Menos pelo fato de ser filha de quem é, e mais pelo fato de ter real interesse pelo estudo da História, quero discutir aquelas observações. Elas partem de uma pessoa - você - que está empenhada em conhecer e compreender e isso me obriga a tomar na melhor consideração o que consta de sua carta. Seriemos os pontos a discutir:

1. Você se fixou demasiado no problema do P.. Minha observação sobre o trabalho dele foi de passagem, sem nenhuma preocupação senão a de assinalar um tipo de trabalho, que, presumindo-se marxista, não o é, porque nega a essência do marxismo, que consiste em situar historicamente os fatos, episódios e processos. P. julga os autores de que se ocupou como se eles tivessem condições de serem muito melhores do que foram, isto é, retira-os do quadro histórico. Na verdade, eles não tinha condições de serem muito melhores. Seria certo mostrar o que eles foram, em relação à História, isto é, em relação à etapa em que viveram. Mas isso é um assunto menor e você deve fazer o seu próprio julgamento. Mas faça-os, sempre, considerando, como dizia o mestre: no quadro histórico em conexão com os outros e à luz da experiência concreta da História. Tudo se relaciona com tudo e está historicamente condicionado. Extrair do encadeamento histórico um episódio e julgá-lo isoladamente não é marxista.

2. Não interprete mal a frase em que C. refere-se a "raças inferiores". Procure o contexto e entenda a referência, inserindo-a naquele contexto. C. espera que o leitor subentenda que tais raças são consideradas inferiores pela classe colonial. E não por ele, C.. Não tenho procuração dele para a defesa. Faço-a, aqui, por questão de honestidade intelectual. Divirjo de C. em muitos e muitos pontos - na teoria e na prática - e não tenho trazido a público por serem questões menores, face às divergências com a cultura reacionária. É preciso sempre considerar o essencial e as propriedades. Ademais, é preciso lembrar que C. foi um pioneiro dos estudos marxistas no Brasil, sua obra tem um lugar no patrimônio cultural , ele já pagou alto preço por tudo isso, inclusive com a prisão. Precisamos sempre e sempre, velar pelo justo respeito ao trabalho intelectual.

3. Estou de acordo com você, e até fico satisfeito em verificar como pessoas de sua geração, nesse fundo de poço em que a ditadura nos colocou, ocupam-se disso - estou de acordo com você que é fundamental "ir ao concreto", pesquisar a formação do capital, as relações de produção, o trabalho no campo e na cidade, a diferença entre o escravismo clássico e o moderno. Estou de acordo com você, ainda, quando escreve que "não é por acaso que se começam a criar condições para que isso ocorra, hoje e não antes". É o condicionamento histórico, a que sempre me referi. Isto não poderia ocorrer na época em que Varnhagen escreveu. E, aqui, vamos entrar no fundamental de sua carta, no que se refere ao que venho fazendo.

4. Prefiro transcrever para ficar mais claro: "Daí entendo por que tenha saído um trabalho do tipo do do Sodré, que estabeleça as etapas do desenvolvimento do brasil, como foram as europeias, escravismo, feudalismo, capitalismo. Entendo, ao nível da importância política da afirmação de uma determinada perspectiva, em contraposição à corrente idealista weberiana (Faoro, Florestan) que campeava nos meios intelectuais (ainda que de "esquerda")". Continua você observando que é preciso desvendar "o caráter das relações de produção e da reprodução do capital em países como o Brasil, que não podem espelhar, simplesmente uma realidade que até na Europa não estava mais existindo como forma dominante (o feudalismo)", e por aí vai. Ora, o problema da sucessão dos modos de produção ou formações sociais, e das condições de passagem umas às outras (inclusive com obrigatoriedade ou não) está no centro das discussões do materialismo histórico, desde o início da desestalinização. A bibliografia a respeito é enorme. Há no caso, dois aspectos fundamentais a considerar: o primeiro diz respeito à lei do desenvolvimento desigual (certas áreas sob um Modo de Produção, enquanto outras já estão em outro); o segundo diz respeito à própria conceituação de Modo de Produção, sua caracterização. Deixemos de lado aquele, lembrando apenas a acumulação do capital se vale, inclusive, das formas pré capitalistas periféricas e está interessado em mantê-las. Tratamos da segunda. O engano comum dos principiantes (e por isso é que se torna indispensável, para quem quer conhecer História, conhecer a lógica Dialética) consiste em pretender encontrar nos casos particulares concretos aqueles traços que surgiram da linguagem conceitual, isto é, das abstrações científicas. Alguém disse esta coisa óbvia: não há matéria senão no concreto, mas a categoria pertence à linguagem conceitual, isto é, abstração científica. Marx estudou o capitalismo, em sua obra fundamental: não o capitalismo inglês (embora, vez por outra, a este se refira), mas, tão simplesmente, o capitalismo, isto é, determinado Modo de Produção, cuja lei essencial era a mais valia. Anos depois, Lênin estudou, no concreto, no particular, o capitalismo russo, não um capitalismo abstrato, mas determinado caso concreto de capitalismo. Um operou no nível geral; outro operou no nível do particular. Se você tiver tempo de confrontar, há de se constatar que o capitalismo concreto russo (negado por muita gente, naquele tempo, e por isso, Lênin se deu ao trabalho de mostrar que ele existia) difere enormemente do capitalismo abstratamente conceituado, isto é, não atende a alguns requisitos. Mas não deixa, por isso, de ser capitalismo. Se você respigar os medievalistas mais eminentes - alguns dos quais são russos, isto é, soviéticos -, verificará a enorme diversidade de tipo de feudalismo que existiram, mesmo considerando apenas o ocidente europeu. Mas há um Modo de Produção feudal, resultante da abstração científica, da generalização de algumas características tomadas aos casos concretos particulares. Nenhum dos casos particulares reproduz o modelo abstrato e conceitual, entretanto. Se você der ao escravismo brasileiro da área açucareira do Século XVII com o escravismo minerador brasileiro do século XVIII, há de encontrar enormes diferenças. Mas ambos são escravismo. E assim por diante.

Agora, algo que me diz respeito e, sendo assim, é menor, mas devo situar devidamente. Não escrevi que os Modos de Produção, no Brasil, seguiram o andamento escravismo-feudalismo-capitalismo, tão simplesmente. E não o fiz por política, como você supõe. Ademais, os autores a que você se refere, como idealistas, não pesavam, naquele tempo, no pensamento brasileiro, quanto ao problema. Eu o fiz por convicção científica. E não segui o modelo europeu. É afirmação gratuita, comum numa cátedra universitária carunchosa. Quem lê o meu livro sabe que procurei mostrar a contemporaneidade, aqui, de relações escravistas e de relações feudais; que apresentei a singularidade brasileira de um Modo de Produção mais avançado o feudal, acarretar atraso na economia, tratado, por isso, no meu livro, como regressão feudal; que busquei mostrar a singularidade brasileira do aparecimento da pequena burguesia antes do aparecimento da burguesia, como ocorrera no modelo europeu. O que eu aceitei e muitos negam - mas sem apresentar a alternativa -, foi a existência aqui, ao longo da História, daqueles modelos, daquele Modos de Produção. Fico com essa fórmula até que me apresentem outra melhor.

5. Há um outro trecho de sua carta que merece atenção, embora volte a tratar de mim e eu não apreciar muitos estar me ocupando de aspectos pessoais dos problemas. Diz o seguinte: "Quanto ao Sodré acho que somos bons amigos já, embora às vezes tema feri-lo com certas colocações, e não o faço. Feri-lo em brios, entende? Não que fosse meu intuito afrontá-lo, mas sim discutir apenas". A referência alonga-se , mas é suficiente o trecho acima reproduzido para situar o problema. Ora Lúcia, você não feriria de maneira alguma pelo de apresentar esta ou aquela divergência em relação ao que escrevi ou escrevo. Pelo contrário, estou sempre pronto a discutir, quando vejo a discrepância repousar numa honesta convicção, assumida de boa fé, haurida no estudo ou na pesquisa. Tenho - é certo - repulsa inequívoca, que não escondo e nem me é possível esconder, pela malevolência velada, escondida solerte, que afirma apenas divergências, mas não as fundamenta. Exemplo: há quem negue a sequência ou concomitância, ou existência, no brasil, divergindo do que escrevi, quanto aos Modos de Produção: escravismo-feudalismo-capitalismo. Muito bem, aceito a divergência e estou em condições de discuti-la, mas desde que o contestador apresente uma solução: não houve feudalismo, mas então o que houve? C. contesta as referências constantes a "restos feudais" etc. que apareciam em documentos nos documentos político. Mas tinha a coragem de afirmar a existência no brasil, de capitalismo: tudo era capitalismo, havia aqui nada de feudalismo. Bem, é uma posição. Mas, via de regra, não é o que acontece: negam a existência de escravismo e feudalismo, mas não apresentam alternativa. Outros, muito weberianamente, só admitem classes sociais a partir das sociedades capitalistas. Antes, não havia classes; quando muito, estamentos. É uma posição. Mas não é marxismo.

6. Estou com você, certamente com muitas outras pessoas que pensam um pouco mais ou menos como você que é preciso pesquisar, estudar, para confrontar fundamentos mais sólidos para a síntese histórica, para a definição das etapas do nosso processo histórico. Claro que, ao longo do tempo, todas as obras - e, evidentemente, a minha mais do que outras - são mais ou menos provisórias, sendo condenadas a serem superadas, com o avanço científico. Quem pretender o contrário está no mundo da lua. Não estou, ainda. Por isso, estude e volte, divirja, debata, forme a sua própria opinião sempre. Mas fundamente. Não o faça apenas para repetir o que os outros disserem. E acredite que foi um prazer discutir com você assim, por carta, agora, esperando fazê-lo pessoalmente logo. Grande abraço do amigo certo.

Do livro "História e Materialismo histórico no Brasil" (1985)

Escrito por Nelson Werneck Sodré

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