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Ideologia na historiografia da Música Soviética



Ideologia é uma maneira de explicar o mundo do ponto de vista da classe dominante. Devido à situação histórica decadente atual da burguesia, sua ideologia não pode mais corresponder à realidade e transformou-se em método de justificar seu poder e dominação sobre as outras classes. A historiografia burguesa, sendo parte da produção intelectual dessa classe, é uma manifestação dessa ideologia. Há no campo da ciência da história uma batalha de discursos, explicações e premissas que representam ideologias de diferentes classes em luta. No caso particular da música soviética, o que está em disputa são, antes de tudo, princípios estéticos que refletem os critérios de valor artístico de cada classe e, consequentemente, a validade da produção musical dessa sociedade, especialmente em comparação com a produção musical ocidental, ou seja, dos países capitalistas.


É importante, portanto, entender no que consiste a estética musical burguesa, como esta se manifesta no campo da historiografia musical soviética através de suas diferentes obras e linhas de pensamento e, do outro lado, no que ela difere fundamentalmente da estética musical proletária. Portanto, dedicaremos esta primeira parte a entender os princípios dessa estética musical para, em textos posteriores, apontar seus elementos falsos, conservadores e até reacionários para então justapormos a estética musical proletária desenvolvida pela união soviética. Por se tratar de uma historiografia cujo objetivo é a propaganda da cultura burguesa, não podemos deixar de apontar também suas estratégias de falsificação e difamação da história da cultura musical proletária e soviética. A essa falsificação é importante apontar os verdadeiros mecanismos históricos de base por trás da evolução da música soviética à luz do materialismo histórico.


A ideologia burguesa da arte parte do individualismo

Um dos aspectos principais da ideologia burguesa é o individualismo. No caso de sua estética, ou seja, nos princípios filosóficos da arte burguesa, o individualismo é o elemento fundamental. Ali, a imagem do artista como personificação da criatividade individual é seu ponto de partida, mesmo que na prática isso se manifeste apenas indiretamente. Vejamos como Marx caracteriza isso, quando comenta as chamadas robinsonadas (histórias do tipo Robinson Crusoé), que começaram a surgir já no século XVIII:


Nessa sociedade da livre-concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais que, em épocas históricas remotas, fizeram dele um acessório de um conglomerado humano limitado e determinado. Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam inteiramente Smith e Ricardo, imaginam esse indivíduo do século XVIII — produto, por um lado, da decomposição das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças de produção que se desenvolvem a partir do século XVI — como um ideal, que teria existido no passado. Vêem-no não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da História, porque o consideravam um indivíduo conforme à natureza — dentro da representação que tinham da natureza humana —, que não se originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. Essa ilusão tem sido partilhada por todas as novas épocas, até o presente (Marx 1999, pp. 25-26).


Assim como a burguesia imaginou que o indivíduo desprendido de seus laços naturais (e sociais) seria o ponto de partida da história (e não, ao contrário, o resultado de um processo histórico), a estética burguesa imagina um artista que inventa, a partir de sua criatividade individual, os valores estéticos de cada época. Em sua versão mais refinada, imagina uma linguagem artística que se desenvolve autonomamente, e cujo valor estético está em sua especulação e “evolução” ensimesmada, independente da realidade que de fato a determina.


No caso da música, o princípio estético que rege a ideologia burguesa (e a historiografia da música em particular) é justamente essa premissa da autonomia da linguagem musical, ou seja, de que o progresso, o avanço e as contribuições artísticas no campo da música se dão de acordo com uma evolução das criações e das “novidades” para essa linguagem ao longo da história. Isso se reflete, entre outras, na velha estética da chamada vanguarda musical europeia, que levou às últimas consequências esse trabalho individual, “de laboratório” em relação à linguagem musical. Segundo a visão história burguesa:


O progresso em música é o resultado da acumulação da experiência criativa e conhecimento passados de geração em geração. Portanto, a evolução da música é um processo lógico resultante do agregado da experiência anterior de compositores, intérpretes e ouvintes. A consolidação dessa herança dá origem a novos problemas criativos, que para sua resolução músicos de vários países contribuem com sua força e maestria da experiência criativa existente.(1) (Olkhovsky 1955, p. 4)


A linguagem musical, portanto, é resultado apenas de uma “acumulação de experiências”. Nenhuma luta de classe aparece nessa descrição. As obras refletem a “herança” e tentam resolver “problemas criativos”, sem nunca representarem, com isso, a classe da qual provêm. É, portanto, uma “experiência” que existe no vácuo de sua própria evolução, eis a estética burguesa em sua expressão mais nua.


Entender esse princípio geral, porém, não é suficiente para prever como este se manifesta na historiografia da música soviética. Como de se esperar, esse é um campo altamente disputado ideologicamente justamente por estar aí em jogo uma manifestação histórica de uma música que representou a estética proletária de acordo com suas necessidades práticas. A historiografia burguesa, portanto, esforça-se em demonstrar o suposto fracasso e impossibilidade dessa estética(2). Essa historiografia possui, portanto, sua interpretação particular (e ideológica) desse fenômeno. Uma leitura de suas obras mais importantes revela algumas premissas específicas que são, no fim das contas, diferentes manifestações de sua estética individualista aplicada à historiografia musical.


Premissas da historiografia musical soviética

Vejamos essas premissas. Nos parágrafos que se seguem, todas as citações provêm de Olkhovsky (1955). Trata-se de uma obra escrita por um dissidente soviético (Olkhovsky for professor do conservatório nacional de Kiev, na Ucrânia) que migrou para os Estados Unidos e cujo texto foi traduzido para o inglês através de um programa de investimento do governo estadunidense para pesquisa sobre a União Soviética. Embora não seja largamente citado por obras mais recentes, veremos que Olkhovsky coloca de maneira clara e crua os princípios utilizados por toda a historiografia burguesa até os exemplares mais modernos.


A estética do realismo socialista é arbitrária e foi imposta de cima para baixo pelas autoridades soviéticas

Em outras palavras, não somente não há possibilidade de uma revolução na União Soviética, mas não há lugar para uma liberdade de pensamento elementar e para a consciência criativa em geral, nem mesmo para qualquer oposição parcial às ordens do Partido e do governo. Para a arte e para a música isso significa uma completa servitude à crítica e autocrítica do Partido, isto é, às vontades, caprichos, objetivos, gostos e administração arbitrária de um pequeno grupo de burocratas de partido(3). (Olkhovsky 1955, p. 12)


Trata-se aqui, em última instância, da tese do “culto à personalidade”, tão repetida não somente pela ideologia burguesa, como pelo próprio revisionismo que começou a tomar a URSS após a tomada de poder de Khrushchev. Segundo esse princípio a estética soviética estava ligada aos caprichos, gostos e decisões da “elite política” (ou, mais vulgarmente, de Stalin). O Realismo Socialista, ou seja, a linguagem artística proletária, seria impossível de ser definido por ser fruto desses caprichos arbitrários ou, no máximo, modificava-se suas definições conforme conveniente para atender à sede de poder desses líderes.


Os compositores soviéticos eram perseguidos “pelas autoridades”

É por isso que a política soviética no campo da música, que abertamente testemunha sua hostilidade contra toda inovação corajosa, progresso e liberdade criativa em geral, coloca uma questão urgente não apenas para todo músico contemporâneo, mas para qualquer um preocupado com o destino da música: houve alguma evolução na música russa durante os anos recentes, nos anos entre os limites do período soviético? O nível criativo, a curva de seu desenvolvimento, aumentou ou diminuiu, e por quê?(4) (Olkhovsky 1955, p. 6, grifo meu)


Esse é o princípio apologético mais utilizado para justificar a qualidade artística de obras que, mesmo nascidas na sociedade soviética, desfrutam de reconhecimento no mundo capitalista. Segundo essa visão, os compositores foram vítimas da “hostilidade” do poder soviético e, portanto, cooptados a contribuírem com o regime.


A música soviética é, em geral, inferior e atrasada em relação à música europeia e estadunidense.


Os ideologistas do Partido julgam o trabalho criativo em comparação com música derivativa(5) que eles podem entender e onde tudo é regular, familiar, óbvio, e “inteiramente explicável”. O que poderia ser melhor? Eles não entendem que isso não é trabalho criativo, mas apenas uma lição em ortografia ou uma cópia de um livro-texto.(6) (Olkhovsky 1955, p. 35)


E sobre a superioridade da música estadunidense (ou ao menos da crítica musical no país):

Em 1951 o Instituto Americano Nacional de Artes presenteou Stravinsky(7) com uma medalha de outro for seus “grandes serviços no campo da cultura musical” e particularmente para algumas de suas obras como Petrushka, Les Noces e A Sagração da Primavera(8). Mais ou menos na mesma época, na terra natal de Stravinsky, surgiu um artigo na revista do governo, Izvestiya, pelo crítico do Partido Nest'yev(9) intitulado “A cacofonia do dólar”, um artigo obviamente inspirado pelos formuladores da política musical soviética, onde foi feita uma tentativa de provar que as obras de Stravinsky são uma evidência do “vazio espiritual completo” desse “cosmopolita sem-teto”.(10) (Olkhovsky 1955, p. 35-36)


Aqui a questão não é tanto obras isoladas, mas, em geral, a ideia de que a criação musical nascida no seio do realismo socialista seria “atrasada” se comparada com o suposto avanço na linguagem musical europeia. Aqui retorna a estética da vanguarda europeia e a ideia da evolução autônoma da linguagem musical, que teria alcançado um estágio superior nos países capitalistas avançados (embora, como veremos, às custas do divórcio completo com o público).


No próximo texto discutiremos como essas premissas, além de pressuporem os valores estéticos burgueses como universais, são falsas.



Bibliografia

Marx, Karl. 1999. Para a Crítica da Economia Política; Do Capital; O Rendimento e suas Fontes. São Paulo, SP: Nova Cultural.

Olkhovsky, Andrey. 1955. Music Under the Soviets: The Agony of an Art. New York: Frederick A. Praeger.



NOTAS

(1) Progress in music is the result of the accumulation of creative experience and knowledge handed down from generation to generation. Thus the evolution of music is a logical process resulting from the aggregate of the preceding experience of composers, performers and listeners. The consolidation of this heritage gives rise to new creative problems, to solve which musicians of various countries contribute their strength and their mastery of existing creative experience.

(2) Como veremos, as obras soviéticas cujo valor é reconhecido até mesmo no mundo burguês devem ser devidamente explicadas por essa historiografia e chega a ser cômico o esforço que alguns “teóricos” empenham para “absolver” os compositores e isolá-los de sua contribuição para a sociedade soviética.

(3) In other words there is not only no possibility of a revolution in the Soviet Union but there is no room for elementary freedom of thought and of the creative consciousness in general nor even for any partial opposition to the orders of the Party and the government. For art and for music this means complete servitude to the criticism and self-criticism of the Party, i.e., to the will, whims, aims, tastes, and arbitrary administration of a small group of Party bureaucrats.

(4) That is why Soviet policy in the field of music, which openly testifies to its hostility towards all courageous innovations, progress and elementary creative freedom in general, poses an urgent question not only to every contemporary musician but to everyone concerned with the destiny of music: has any evolution taken place in Russian music during recent years, the years which fall within the boundaries of the Soviet period? Has the creative level, the curve of its development, risen or fallen, and why?

(5) Ou seja, música derivada de fórmulas, clichês, ou de um repertório tradicional. Isto é, música sem criatividade.

(6) The Party ideologists judge creative work by comparison with the derivative music which they can understand in which everything is smooth, familiar, obvious, and “entirely explainable.” What could be better? They do not understand that this is not creative work but only a lesson in orthography or in copying from a textbook.

(7) Igor Stravinsky (1882 - 1971) foi um compositor russo emigrado para a França (1920) e posteriormente para os EUA (1945). Gozou de muito sucesso com suas obras de concerto e balés. Foi um ávido crítico da música soviética.

(8) Tratam-se de balés escritos por Stravinsky entre 1911 e 1923 sob encomenda do empresário russo Sergei Diaghilev. Essas obras são frequentemente citadas em todos os livros de história da música ocidental.

(9) Israel Vladimirovich Nestev (1911 - 1993). Musicólogo soviético.

(10) In 1951 the American National Institute of Arts presented a gold medal to Stravinsky for his “great services in the realm of musical culture” and particularly for such of his works as Petrushka, Les Noces and The Rites of Spring. At nearly the same time, in Stravinsky's fatherland, there appeared an article in the government organ Izvestiya by the Party critic Nest'yev entitled “The Dollar Cacophony,” an article obviously inspired by the formulators of Soviet music policy, in which an attempt was made to prove that Stravinsky's works are evidence of the “complete spiritual emptiness” of “this homeless cosmopolitan.”

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