Os convidados da reabertura do Museu da Língua Portuguesa
“Minha cantiga é baguala
Porque traz xucros na estampa
E traduz o idioma pampa
Do garrão deste hemisfério
Meu canto é a voz do gaudério
Linguagem pátria de um povo
Que sonha com um mundo novo
E a ser livre se concentra
Neste milênio que adentra
No mais machaço retovo”
Linguagem Pátria de um povo,
Composição de Rogério Villagran / Cesar Oliveira
No dia 31 de julho, o Museu da Língua Portuguesa foi reaberto após reforma das partes consumidas por incêndio em 2015.
O evento contou com a presença dos ex-presidentes Michel Temer, Fernando Henrique – o acadêmico e latifundiário José Sarney justificou sua falta – e do governador João Doria, além de autoridades de nações lusófonas, como os Presidentes de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza, e Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca. Porém, a autoridade máxima do Executivo, o presidente Jair Bolsonaro, não compareceu, pois havia marcado passeio de motocicleta com apoiadores em Presidente Prudente.
Assim, para fins de discussão, podemos dividir os convidados em dois grupos: os presentes e os ausentes. Todavia, ainda antes de comentarmos sobre eles, é mister fazermos algumas ponderações gerais sobre “Cultura”, gênero do qual a “língua portuguesa” é espécie.
Lançamos mão do conceito de “Cultura” contido no “Dicionário Filosófico Abreviado”[1] de M. Rosental e P. Iudin, citado por Nelson Werneck Sodré em seu livro “Síntese de História de Cultura Brasileira”[2]:
“CULTURA – Conjunto dos valores materiais e espirituais criados pela humanidade, no curso de sua história. A cultura é um fenômeno social que representa o nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica: progresso, técnica, experiência de produção e de trabalho, instrução, educação, ciência, literatura, arte e instituições que lhes correspondem. Em um sentido mais restrito, compreende-se sob o termo de cultura, o conjunto de formas da vida espiritual da sociedade, que nascem e se desenvolvem à base do modo de produção de bens materiais historicamente determinado. Assim, entende-se por cultura o nível de desenvolvimento alcançado pela sociedade na instrução, na ciência, na literatura, na arte, na filosofia, na moral etc., e as instituições correspondentes. Entre os índices mais importantes do nível cultural, em determinada etapa histórica, é preciso notar o grau de utilização dos aperfeiçoamentos técnicos e dos desenvolvimentos científicos na produção social, o nível cultural e técnico dos produtores de bens materiais, assim como o grau de difusão da instrução, da literatura e das artes entre a população.”[3]
Portanto, a Cultura é a consequência de muitas causas que estão reunidas dentro das relações econômicas. Lembremos da fotografia que nasce da pesquisa técnico-científica de materiais fotossensíveis. Lembremos da capoeira, uma mistura de dança e luta, desenvolvida pelos negros escravizados para individual, coletiva e culturalmente resistirem à violência do branco.
Assim é possível depreendermos que, sendo a Cultura, como conjunto de produtos materiais e imateriais produzidos por uma comunidade, “o conjunto de formas da vida espiritual da sociedade, que nascem e se desenvolve à base do modo de produção de bens materiais historicamente determinado”, falar em defesa de Cultura nacional é falar, em última instância, da defesa da autonomia econômica nacional.
Falar em defesa Cultural nacional é dar condições para que o povo possa gozar deste conjunto de “valores materiais e espirituais criados pela humanidade, no curso de sua história”. Como poderíamos falar em condições de produção e fruição cultural quando o povo está voltando a cozinhar com carvão?[4]
Existe uma gradação de fatores que influem sobre a questão cultural, dos gerais, ações macroeconômicas que garantam a soberania de uma nação, sua independência política e econômica, aos específicos e particulares, como salas de aula adequadas, promoção de festivais, editais públicos para financiamento de projetos artísticos etc.
É imprescindível não olvidarmos que a instituição de políticas públicas não significa necessariamente a defesa da Cultura nacional, podendo ser simplesmente a adequação interna, como mercado consumidor para exportação dos grandes centros capitalistas.[5]
Feitos estes apontamentos, voltemos aos convidados da reabertura do Museu de Língua Portuguesa e vejamos qual foi o contributo de cada um para estabelecimento de condições básicas para o desenvolvimento da Cultura nacional.
Sarney criou o Ministério da Educação (Decreto nº 91.144/85[6]) – sob muita desconfiança da oposição, que via nessa mudança um populismo de direita[7] –, também redigiu a Lei nº 7.505/86[8], a chamada “Lei Sarney”, que instituía incentivo fiscal para doadores privados que financiassem projetos culturais.
Mas haveria condição econômica para a produção cultural nacional, sendo que em 1990 a taxa de inflação bateu 84,3%[9]? Sarney fracassou em todos os seus planos econômicos, mas logrou apoderar-se de canais de comunicação do Maranhão.[10]
Falemos do outro ausente: Jair Bolsonaro.
A falta do atual presidente explicita o desprestígio da sua gestão quanto à Cultura nacional e evidencia o seu projeto antinacional. Muitos são os fatos que reforçam essa conclusão.
Ainda em 2018, às vésperas do pleito, Bolsonaro já afirmava que rebaixaria o status da pasta da Cultura para secretaria do MEC[11]. Várias foram as suas ofensas dirigidas à categoria dos artistas, qualificadas por um demagógico apelo moralista e cristão[12], ou as críticas infundadas às medidas de incentivo à produção cultural (Lei Rouanet). O fascista ainda dissera que não demarcaria terras indígenas ou quilombolas durante a sua gestão – o que está adstrito à questão cultural.
Se por um lado há um menoscabo da produção artística e dos espaços culturais, por outro há também uma “reserva” elitista. É nesse sentido que se dá a declaração do Ministro da Educação Milton Ribeiro de que a universidade deve ser “para poucos”[13], ou a fala de Paulo Guedes de que “FIES é bolsa para todo mundo”, ou ainda que “filho de porteiro tira zero em prova e consegue financiamento”[14].
Caberia um estudo à parte e mais aprofundado sobre os impactos da gestão de Bolsonaro sobre o sucateamento das instituições públicas de cultura.
No campo da economia, o desastre é ainda maior. Paulo Guedes tenta privatizar empresas como Embraer[15], Petrobras[16] [17] (por vias criminosas[18]), Correios e Eletrobras[19]. Por meio de Medida Provisória, Bolsonaro efetua uma nova reforma trabalhista agravando ainda mais o processo de flexibilização de direitos[20]. Guedes ainda sugeriu a tributação de livros para aumentar a arrecadação (sic)! SIM, SUGERIU A TRIBUTAÇÃO DE LIVROS!
Sob a gestão fascista de Bolsonaro, a cada dia o país tem menos condições de se colocar como soberano ante as demais potências imperialistas e menos ainda o povo tem condições de produzir ou fruir o “conjunto dos valores materiais e espirituais criados pela humanidade”.
De outra parte, temos o grupo daqueles que compareceram ao evento.
Comecemos por FHC. O “intelectual”, que deu continuidade às medidas neoliberais iniciadas com Collor (“Plano Nacional de Desestatização”, alterado pela Lei nº 9.491/97), concorreu para a acentuação da subserviência econômica do Brasil – destacamos a venda criminosa da maior mineradora do mundo, a Vale do Rio Doce, dentre muitas outras. A ausência de políticas culturais federais efetivas, de participação direta, – dado que o governo apenas trabalhou pelos incentivos fiscais[21] – causou um esvaziamento e sucateamento[22] de espaços culturais.[23]
Em segundo temos Michel Temer, quem sancionou a maldita Reforma Trabalhista (Lei nº Lei 13.467/2017), a qual reduziu direitos e possibilitou a flexibilização de tantos outros previstos na CLT – seja previsão legal da terceirização seja pela possibilidade de estabelecimentos de acordos entre empregado e empregador sem o intermédio de sindicato. Não há argumentos: quando se reduz verbas salariais de um trabalhador, se está reduzindo o seu poder de acesso a bens e serviços culturais. A breve gestão do golpista não foi menos danosa. Em 2018, quando do incêndio do Museu Nacional em setembro, a instituição tinha recebido apenas 71 mil reais a título de recursos para manutenção das instalações[24] - em 2014, o montante transferido até julho era de 741 mil reais.
O terceiro presente é João Doria. O oportunista ganhou popularidade no combate à COVID-19 por “antagonizar” Jair Bolsonaro no atinente à campanha de vacinação. Mas a distinção ocorre, somente, neste ponto, pois ambos são entreguistas e privatistas: é imprescindível lembrarmos que em 2019, Doria foi à Davos para vender o Butantan[25]. Que seria do povo brasileiro sem o Butantan?
Em 2017, Doria intentou substituir a merenda por uma espécie de “ração humana”[26]. Antes da pandemia, o Governador afirmou que “São Paulo não remunera professores para ficarem em casa tomando suco de laranja e sendo preguiçosos”[27]. Em 2021, João Doria gastou apenas 5% da verba para melhoramentos da rede pública de ensino[28]. Atualmente o governador força a abertura das salas de aula para o ensino médio e fundamental, imediatamente após a redução do número diário de mortos e quando sequer se iniciara a vacinação dos menores de 18 anos[29]. Outro gravíssimo ataque aos professores estaduais é a reforma administrativa que está em curso neste momento.
É evidente que a Cultura, lato sensu, e a Língua Portuguesa, em sentido estrito, passam necessariamente pelo ensino público. Precarizar o ensino – ausência de recursos para manutenção de salas de aula, ajustes salariais insuficientes para os profissionais do ensino público, falta de merenda digna para os alunos etc. – é atacar a Cultura nacional e combalir sua reprodução pelas gerações seguintes.
Além disso, a presença de FHC no Museu da Língua Portuguesa também cumpria uma função eleitoreira para o PSDB: o ex-presidente declarara apoio à candidatura de João Doria à chefia do executivo federal em 2022[30]. A manifestação ocorre logo após FHC haver dito que poderia votar em Lula contra Bolsonaro e em meio às crescentes demandas por uma “terceira via” na disputa pela faixa presidencial.
Em suma, a reabertura do Museu merecia melhores convidados e não estes vendilhões e capachos do imperialismo. Nenhum deles, presentes ou não, defenderam ou defendem a Economia Nacional e muito menos a nossa Cultura. A cerimônia de reabertura foi apenas um palanque eleitoral para João Doria e não uma comemoração pela restauração de um espaço cultural.
Não representam o povo explorado, senão a velha classe dirigente que comanda o Brasil desde a invasão portuguesa. São apenas bacharéis que usam mesóclises e tantos outros arcaísmos para se distinguir do povo, ao melhor estilo de Odorico Paraguaçu.
NOTAS [1] Link para download gratuito: https://b-ok.lat/dl/10204933/0a8e8d [2] Link para download gratuito: https://b-ok.lat/dl/3628169/2ea50e [3] SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de história da cultura brasileira. 15ª edição. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988. P. 3-4 [4] “'Passei a cozinhar com carvão': como a inflação deve afetar os mais pobres em 2021”. Fonte: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/12/07/internas_economia,1217982/passei-a-cozinhar-com-carvao-como-a-inflacao-deve-afetar-os-mais-po.shtml [5] Sobre o cinema nacional, Nelson Werneck Sodré cita: “Alex Viany, na sua excelente Introdução ao cinema brasileiro, define o problema com clareza: ‘A raiz de todos males, em qualquer estudo honesto, é encontrada na crescente penetração dos monopólios estrangeiros, direta ou indiretamente na estrutura do movimento cinematográfico no Brasil’. Viany mostrou como o campo da distribuição ‘vem sendo, há muitos anos, dominado pelas agências dos monopólios estrangeiros, principalmente norte-americanos’;”. SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de história da cultura brasileira. 15ª edição. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988. P. 83 [6] Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D91144.htm [7] “Marilena Chaui, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Lélia Abramo e outros intelectuais e artistas que representavam o PT (partido formado pela confluência de diversos grupos de esquerda), por serem abertamente refratários à esquerda tradicional, eram contrários à criação do ministério. Desconfiavam do papel “progressista” das vanguardas intelectuais, elaborando uma crítica a respeito de tais concepções. Conforme a análise de Ridenti, os anos de 1970, tanto no campo da política como da cultura de esquerda, são marcados pelo fim do “ciclo das vanguardas” na sociedade brasileira: a derrota das esquerdas armadas, no início de 1970, deu início a um novo ciclo marcado na política de esquerda pelo surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT) (Ridenti, 2012, p. 1).” Fonte: Ferron, Fabio Maleronka, and Maria Arminda do Nascimento Arruda. "Cultura e política: a criação do Ministério da Cultura na redemocratização do Brasil." Tempo Social 31 (2019): 173-193. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ts/a/689GnqZZMCH9ghmXtwxKmQC/?lang=pt [8] Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7505.htm [9] Fonte: https://atlas.fgv.br/marcos/governo-jose-sarney-1985-1990/mapas/inflacao-do-governo-sarney-mes-mes [10] “O ex-presidente José Sarney (1985-1989) é um exemplo de político ligado diretamente aos veículos de comunicação a partir do “Sistema Mirante, 4º maior grupo de comunicação integrada do Nordeste e o maior do Maranhão” pertencente a sua família. No seu caso, em 1981 foi criada a Rádio Mirante e, enquanto presidente (1985), concedeu 4 canais de TVs no Maranhão, fundando em 1987 a TV Mirante. Atualmente possui cinco emissoras nas cidades de São Luiz, Região dos Cocais, Imperatriz, Santa Inês e Açailândia.” Fonte: Matos, Luana. "Concessão, Democracia e Cultura: O caso Sarney." COMUNICAÇÃO CULTURA & INFORMAÇÃO: 163. Disponível em https://www.academia.edu/download/66009883/Comunicacao_Cultura_e_informacao_em_perspectiva.pdf#page=164 [11] “Bolsonaro defende mudanças na Lei Rouanet e diz que se eleito vai tirar status de ministério da Cultura”. Fonte: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2018/noticia/2018/09/03/bolsonaro-defende-mudancas-na-lei-rouanet-e-diz-que-se-eleito-vai-tirar-status-de-ministerio-da-cultura.ghtml [12] “Bolsonaro: ‘Não admito dinheiro público em filme da Bruna Surfistinha’”. Fonte: https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/bolsonaro-nao-admito-dinheiro-publico-em-filme-da-bruna-surfistinha [13] “Ministro da Educação defende universidade ‘para poucos’: ‘Tem muito engenheiro dirigindo Uber’”. Fonte: https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/ministro-da-educacao-defende-universidade-para-poucos-tem-muito-engenheiro-dirigindo-uber/ [14] “Paulo Guedes diz que Fies é ‘bolsa para todo mundo’ e fala que filho de porteiro ‘tirou zero na prova’ e conseguiu financiamento”. Fonte: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/04/30/paulo-guedes-critica-o-fies-e-diz-que-filho-de-porteiro-tirou-zero-na-prova-e-conseguiu-financiamento.ghtml [15] “Boeing cancela compra da Embraer”. Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/acervo/economia/audio/2020-04/boeing-cancela-compra-da-embraer/ [16] ““A privatização é o melhor caminho”, afirma Roberto Castello Branco”. Fonte: https://exame.com/blog/instituto-millenium/a-privatizacao-e-o-melhor-caminho-afirma-roberto-castello-branco/ [17] “Implementamos, nos últimos sete meses, uma série de medidas com o intuito de atender as diretrizes definidas no Termo de Cessação de Conduta (TCC) assinado em julho de 2019 com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). O TCC visa reduzir de forma significativa a nossa participação no mercado de gás natural, de forma a aumentar a competitividade e a dinâmica do segmento.“ Fonte. “Petrobras acelera iniciativas para abertura do mercado de gás”, disponível em https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/petrobras-acelera-iniciativas-para-abertura-do-mercado-de-gas.htm [18] “TCC é instrumento utilizado para cessar um suposto ato concorrencialmente ilícito mediante acordo com o Cade. Se um TCC foi celebrado, a Petrobras estava sendo acusada de prática abusiva no âmbito do Cade. Certo? Curiosamente, não.” O curioso caso do TCC da Petrobras no Cade. Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-curioso-caso-do-tcc-da-petrobras-no-cade-03072019 [19] “Guedes cita Eletrobras e Correios como “privatizações óbvias”. Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-12/guedes-cita-eletrobras-e-correios-como-privatizacoes-obvias [20]“Câmara aprova MP de redução de jornada e salário, que incluiu ‘minirreforma’ trabalhista”. Fonte :