"Caminhando entre camaradas"
Uma nota concisa, datilografada, foi passada por baixo de minha porta em um envelope lacrado confirmando minha nomeação como a mais grave ameaça para a segurança interna da Índia. Eu esperei por meses saber isso através deles. Tinha que estar no mandir [templo] Ma Santeshwari em Dantewara, Chhattisgarh, em qualquer dos quatro encontros para os quais me davam dois dias. Isso significava ter em conta as péssimas condições climáticas, ferimentos, bloqueios, greves no transporte e o puro azar. O aviso dizia: “a escritora deve levar uma câmera, tika [adorno tradicional das mulheres usada pelas mulheres casadas ou comprometidas] e um coco. Meu contato levaria um gorro, a revista Hindi Outlook e bananas. Senha: Namashkar Guruji [é uma frase dita quando se vai visitar um mandir, Guruji é o que se busca dentro de si mesmo]. Me perguntei se o contato e o anfitrião esperariam a um homem. E se devia colocar um bigode. Há muitas formas de descrever Dantewara. É um oxímoro. É uma cidade fronteiriça justamente no coração da Índia. É o epicentro de uma guerra. Uma cidade onde as coisas estão ao revés.
Em Dantewara, a polícia se veste à paisana e os rebeldes usam uniformes. O superintendente da cadeia está atrás das grades. Os presos estão livres (trezentos deles escaparam da prisão da cidade faz dois anos). As mulheres que foram estupradas estão sob custódia policial. Os violadores fazem discursos no mercado.
Do outro lado do rio Indra, na zona controlada pelos maoístas, está o lugar que os policiais chamam de “Paquistão”. Ali os povoados estão vazios, mas a floresta está cheia de gente. As crianças que deveriam estar na escola correm desenfreadamente. Nas encantadoras aldeias da floresta deslumbrante, os prédios escolares de concreto ou foram bombardeados e convertidos em um monte de escombros, ou estão cheios de policiais. A guerra mortal que se desenvolve na selva é um guerra da qual o governo da Índia está tanto orgulhoso como envergonhado. A Operação “Caçada Verde” foi anunciada e também negada. Palaniappan Chidambaram, Ministro da Administração Interna da Índia (e máximo Diretor Executivo para a Guerra) disse que não existe, que é uma criação dos meios de comunicação. E entretanto, importantes fundos se designaram para esta, e dezenas de milhares de soldados estão se mobilizando para ela. Embora o teatro de operações esteja nas selvas da Índia central, essa guerra terá graves consequências para todos nós.
Se os fantasmas são espíritos imortais de alguém ou algo que deixou de existir, então talvez a nova estrada de quatro vias que se estende pela selva seja o oposto de um fantasma. Talvez seja o presságio de algo que está por vir.
Os antagonistas na floresta são díspares e desiguais em quase todos os sentidos. De um lado, está uma grande força paramilitar armada com dinheiro, poder de fogo, os meios de comunicação e a arrogância de uma superpotência emergente. Por outro lado, os aldeões comuns armados com armas tradicionais, respaldados por uma força de combate da guerrilha maoísta perfeitamente organizada, enormemente motivados e com uma extraordinária e violenta história de rebelião armada. Maoístas e paramilitares são velhos adversários e combateram as mais velhas manifestações de uns e outros muitas vezes antes: Telengana nos anos 50, Bengala Ocidental, Bihar, Srikakulam em Andhra Pradesh nos fins dos anos 60 e 70, e logo novamente em Andhra Pradesh, Bihar e Maharashtra desde os anos 80 até o presente. Cada um está familiarizado com as táticas do outro e estudou cuidadosamente os manuais de combate do outro. Cada vez se parece que os maoístas (ou seus avatares anteriores) não só haviam sido derrotados, mas fisicamente exterminados, literalmente. Mas sempre voltam a ressurgir, mais organizados, mais decididos e mais influentes que nunca. Hoje, uma vez mais, a insurreição se estendeu para as florestas mais ricas em minérios de Chhattisgarh, Jharkhand, Orissa e Bengala Ocidental, terra natal de milhões de pessoas dos povos tribais da Índia, terra dos sonhos do mundo corporativo.
É mais fácil para a consciência liberal crer que a guerra nas florestas é uma guerra entre o Governo da Índia e os maoístas, que consideram as eleições uma farsa, o parlamento um chiqueiro e declararam abertamente a sua intenção de derrocar o Estado indiano. É conveniente esquecer que os povos tribais na Índia Central têm uma história de resistência que antecede Mao por séculos (isso é uma verdade óbvia, certamente; se não fosse assim, não existiriam). Os Ho, os Oraon, os Kols os Santhals, os Mundas e os Gond se revoltaram inúmeras vezes contra os britânicos, contra os zamindars [recolhedores de impostos do império Mughal] e contra os agiotas. As rebeliões foram esmagadas com crueldade, milhares morreram, mas os povos nunca foram conquistados. Inclusive após a independência, as tribos estiveram no coração do primeiro levante que poderia se descrever como maoísta, na aldeia de Naxalbari em Bengala Ocidental (de onde se origina a palavra naxalita, que agora se usa indistintamente como maoísta). Desde então, a política naxalita esteve estreitamente ligada às insurreições tribais, o que diz muito sobre as tribos e também sobre os naxalitas.
Esse legado de rebelião deixou para trás um povo enfurecido que foi deliberadamente isolado e marginalizado pelo governo da Índia. A Constituição, a base moral da democracia da Índia, foi aprovada pelo Parlamento em 1950. Foi um dia trágico para os povos tribais. A Constituição ratificou a política colonial e transformou o Estado em tutor legal das terras tribais. Gradualmente converteu toda a população tribal em intrusos em sua própria terra. Se os nega seus direitos ancestrais aos produtos da floresta, criminaliza toda uma forma de vida. A mudança do direito ao voto, arrebatou seu direito à subsistência e dignidade. Sendo despojados de suas terras e empurrados em uma espiral descendente à indigência, em um cruel ato de ilusionismo, o Governo começou a utilizar sua própria penúria contra eles. Toda vez que precisava despejar uma grande população – por represas, projetos de irrigação, minas – se falou de “colocar as tribos no caminho da modernidade” ou de dar a elas “os frutos do desenvolvimento moderno”. Das dezenas de milhões de pessoas despejadas internamente, refugiados da causa do “progresso” da Índia (mais de 30 milhões por conta das grandes represas), a grande maioria são povos tribais. Quando o Governo começa a falar do bem-estar das tribos, é hora de se preocupar. A mais recente manifestação do assunto veio do Ministro da Administração Interna, P. Chidambaram, que disse que não quer que os povos tribais vivam em “culturas de museu”. O bem-estar dos povos tribais não pareceu ser uma prioridade durante sua carreira enquanto advogado de corporações, quando representava os interesses de várias das mais importantes empresas de mineração. Portanto, poderia ser interessante investigar as recentes causas da sua angústia recente.
Nos últimos cinco anos, Governos de Chhattisgarh, Jharkhand, Orissa e Bengala Ocidental firmaram Memorandos de Entendimentos (MDE) com centenas de corporações por vários milhões de dólares, tudo em segredo, para as plantas de aço, de concentrados de ferro, centrais elétricas, refinarias de alumínio, barragens e minas. A fim de que os MDE se convertam em dinheiro real, as tribos devem ser desalojadas.
Por isso há guerra.
Quando um país que se diz uma democracia declara abertamente a guerra dentro de suas fronteiras, o que podemos esperar desta guerra? A resistência significa uma oportunidade? O que pensam? Quem são os maoístas? São apenas niilistas violentos que, iludidos, apresentam uma ideologia antiquada aos povos tribais, os empurrando a uma insurreição sem esperança? Que lições foram aprendidas das experiências anteriores? A luta armada é intrinsecamente antidemocrática? É certada a teoria do sanduíche, tribos “normais” retidas no fogo cruzado entre o Estado e os maoístas? São “maoístas” e “tribos” duas categorias totalmente distintas tal como vem sendo apresentadas? Seus interesses se convergem? Não aprenderam nada um com o outro? Um transformou o outro?
No dia antes de eu ir, minha mãe me chamou, soava sonolenta “Eu estive pensando” – disse com o estranho instinto de mãe – “que o que esse país precisa é de uma revolução”.
Um artigo na internet disse que a Mossad de Israel está treinando 30 oficiais de alto cargo da polícia indiana em técnicas de assassinato seletivo para “decapitar” a organização maoísta. Se fala na imprensa sobre o novo equipamento que comprou de Israel: telêmetros de raio laser, equipes de imagem térmica e aviões não tripulados muito populares entre o exército dos Estados Unidos. Armas perfeitas para serem usadas contra os pobres.
A estrada de Raipur a Dantewara leva cerca de dez horas de carro através de zonas conhecidas por serem “infestadas de maoístas”. Essas não são palavras descuidadas. “Infestado/infestação” implica doença e pragas. A doença deve ser curada, as pragas devem ser exterminadas. Os maoístas devem ser eliminados. De formas inócuas, enigmáticas, a linguagem do genocídio se incorporou a nosso vocabulário.
Para proteger a estrada, as forças de segurança “garantiram” uma estreita faixa de floresta de ambos os lados. Mais adentro estão os domínios de “Dada”. Os Irmãos, os camaradas.
Nos arredores de Raipur, um poster enorme anuncia o Hospital do Câncer construído por Vedanta (a empresa na qual nosso Ministro do Interior trabalhou). Em Orissa, onde se desenvolve o minério de bauxita, Vedanta também está financiando uma Universidade. Com tais formas ocultas, inócuas, as mineradoras entram em nosso subconsciente: gigantes ternos que realmente se preocupam. Se chama RSC – Responsabilidade Social Corporativa. Permite às empresas mineradoras ser como o lendário ator e ex-Primeiro-Ministro NTR, que quis interpretar todos os papeis na mitológica Telugu – os bons e os maus, todos de uma vez, no mesmo filme. A RSC mascara a economia abjeta que se baseia o setor mineiro na Índia. Por exemplo, segundo o recente Informe Lokayukta para Karnataka, para cada tonelada de minério de ferro extraído por uma empresa privada, o Governo recebe uma regalia de 27 rúpias e a empresa mineradora obtém 5 mil rúpias. No setor de alumínio e da bauxita, as cifras são ainda piores. Estamos falando de roubo flagrante por uma soma de milhares de milhões de dólares, o suficiente para comprar eleições, juízes, governos, jornais, canais de televisão, ONGs e organismos de ajuda. Que importa um hospital de câncer aqui ou ali?
Não me lembro de ter visto o nome de Vedanta na longa lista de MDE firmada pelo governo de Chhattisgarh. Mas tenho uma mente suficientemente retorcida para suspeitar que se há um hospital de câncer deve haver uma enorme montanha de bauxita em algum lugar. Passamos Kanker, famoso por sua Escola de Treinamento de Guerra Antiterrorista e Combate de Selva desenvolvida pelo brigadista B.K. Ponwar, o Rumpelstiltskin [personagem de conto de fadas] dessa guerra, encarregado de converter policiais corruptos e negligentes (escória) em comandos de selva (ouro). “Combater a guerrilha com uma guerrilha”, o lema da Escola de Treinamento de Guerra está pintado em todas as rochas.
Aos homens lhes ensina a correr, deslizar-se, pular dentro e fora de helicópteros no ar, montar a cavalo (por algum motivo), comer serpentes e viver da selva. A brigada se orgulha de instruir carrochos da rua para lutar contra os “terroristas”. Oitocentos policiais se graduam na Escola de Treinamento de Guerra a cada seis semanas. Se planejam 20 escolas similares para toda a Índia. A força policial gradualmente vem se convertendo em um exército (em Kashmir é o inverso, o exército está se convertendo em uma força inflada e administrativa da polícia). As coisas de ponta cabeça. De qualquer forma, o inimigo é o povo.
É tarde. Jagdalpur está dormindo, a exceção dos muitos agentes de Rahul Gandhi [dirigente do Partido do Congresso, do governo], nos oferecendo a nos unirmos à juventude do Partido. Rahul Gandhi esteve duas vezes em Bastar nos últimos meses, mas não disse grande coisa sobre a guerra. É provavelmente muito sujo que o Príncipe do Povo interfira nesse assunto. O fato de que Salwa Judum [Caçadores da Paz] – o temido grupo parapolicial de vigilância patrocinado pelo governo, responsável por violações e assassinatos, de queimar povos e expulsar centenas de milhares de pessoas de seus lares – seja liderado por Mahendra Karma, um deputado do Partido do Congresso, não encaixa muito na publicidade cuidadosamente arquitetada em torno de Rahul Gandhi.
Cheguei ao Mandir de Ma Danteshwari a tempo para meu compromisso (o primeiro dia, primeira chance). Tinha minha câmera, meu pequeno coco e minha testa pintada com pó vermelho. Me perguntava se alguém me observava rindo. Em poucos minutos, uma jovem se aproximou de mim, levava um boné e mochila. Tinha as unhas pintadas com um esmalte vermelho descascado. Nem revista Hindi Outlook, nem bananas. “É você que tinha que vir? “, me perguntou. Nenhum Namashkar Guruji. Eu não sabia o que dizer. Sacou uma nota encharcada de seu bolso e me entregou, “Outlook nahi mila", dizia (Não se pode encontrar Outlook”).
“E as bananas?”
“Eu as comi – disse – tive fome”;
Realmente era uma ameaça para a segurança.
Sua mochila dizia “Charlie Brown – Não seu tonto ordinário”. Disse que seu nome era Mangtu. Logo aprendi que Dandakaranya, a floresta que estava a ponto de entrar, estava cheia de gente que tinha muitos nomes e identidades que mudavam constantemente. Era como um oásis para mim tal ideia. Que maravilhoso, não estar arraigado a si mesmo para se converter em outra pessoa por um momento!
Caminhamos até o ponto de ônibus, a apenas minutos de distância do templo. Estava cheio. As coisas aconteceram rapidamente. Havia dois homens em uma moto. Não houve nenhuma conversa, apenas um olhar de reconhecimento, retirada do peso corporal, o ruído dos motores. Não tinha ideia para onde íamos. Passamos pela casa do Superintendente da Polícia (SP), o qual conheci em minha última visita. Era um homem sincero “Veja senhora, falando com franqueza, esse problema não pode ser resolvido por nossos policiais, nem militarmente. O problema com essas tribos é que não entendem a ganância pelo poder. A menos que se tornem gananciosos, não há esperanças para nós. Eu disse a meu chefe: retire a força e no lugar coloque uma televisão em cada casa. Tudo se resolveria automaticamente”.
Em pouco tempo seguíamos caminho nos subúrbios da cidade. Nada nos seguia. Foi uma longa viagem, três horas em meu relógio. Terminou abruptamente no meio do nada, em uma estrada vazia com floresta de ambos os lados. Mangtu se abaixou, e eu também. Motos à esquerda, peguei minha mochila e segui a pequena ameaça à segurança interna até a floresta. Era um dia bonito, o solo da floresta era um tapete de ouro. De repente emergimos sobre as margens brancas e arenosas de um rio largo e plano. Era obviamente alimentado pelas monções, então agora era um piso de areia, no centro havia um córrego, que ia até os tornozelos, fácil de atravessar. Do outro lado estava o “Paquistão”. Quando começamos a cruzar, me lembrei do que o honesto superintendente havia me dito: “fique longe dali, senhora, meus garotos disparam para matar”. Nos imaginamos na mira de um rifle da polícia, pequenas silhuetas sobre o lugar, fáceis de se liquidar. Mas Mangtu parecia bastante indiferente e a segui.
Do outro lado do rio, Chandu nos esperava, com uma camisa de cor verde-lima que dizia “Horlicks!”. Uma ameaça de segurança um pouco maior, talvez 20 anos. Tinha um sorriso encantador, uma bicicleta, uma garrafa com água fervida e vários pacotes de bolachas de glicose para mim, presente do Partido. Retomamos o fôlego e voltamos a caminhar. A bicicleta, no final das contas era inútil, o trajeto quase em sua totalidade não permitia usá-la. Subimos colinas íngremes e descemos caminhos rochosos muito precários nas ladeiras. Quando não podia pedalar, Chandu levantava a bicicleta e a punha sobre sua cabeça como se não pesasse nada. Comecei a me perguntar sobre seu ar de garoto do povo desconcertado. Descobri (muito depois) que ele podia manejar todo tipo de armas, “exceto uma LMG”, me disse alegremente.
Três homens belos e ébrios com flores em seus turbantes caminharam conosco durante meia hora antes de nossos caminhos se separarem. No entardecer suas mochilas começaram a cantar. Tinham galos nelas, os haviam levado ao mercado, mas não conseguiram vender.
Chandu parece ser capaz de ver no escuro. Eu tenho que usar minha lanterna. Os grilos começam a cantar e logo há uma orquestra, uma cúpula de som sobre nós. Anseio olhar para o céu noturno, mas não me atrevo, tenho que manter meus olhos no chão. Um passo de cada vez, concentrada.
Escuto cachorros, mas não consigo dizer a que distância estão. O terreno se achata. Dou uma espiada no céu, fico extasiada. Espero que paremos logo. Chandu diz “pronto”. Resulta em mais de uma hora. Vejo silhuetas de árvores enormes. Chegamos.
A vila parece espaçosa, as casas muito longes umas das outras. A casa em que entramos é formosa. Há fogo, algumas pessoas sentadas ao redor. Há mais gente do lado de fora, no escuro. Não posso dizer quantos, apenas posso distinguí-los bem. Ocorre um murmúrio ao redor. Lal Salaam Kaamraid (Saudações vermelhas, camarada). Lal Salaam, digo eu. Eu estou mais que cansada. A dona da casa me chama e me dá frango cozido com curry e vargem verde e um pouco de arroz vermelho, fantástico. Seu bebê está dormindo a meu lado, suas tornozeleiras de prata brilham à luz do fogo.
Depois do jantar, eu estico meu saco de dormir. É um som estranho e intrusivo o fecho do zíper. Alguém liga o rádio, é a BBC em hindi. A Igreja da Inglaterra retirou seus fundos do projeto Niyamgiri da Vedanta, citando a degradação ambiental e violações aos direitos da tribo Dongria Kondh. Posso ouvir chocalhos de vaca, narizes fungando, patas se arrastando e o bufar do gado. Tudo está bem com o mundo. Meus olhos se cerram. Nos levantamos cinco da manhã. Ficamos ativos às seis e em umas duas horas cruzamos outro rio. Caminhamos através de algumas aldeias formosas. Cada aldeia tem uma família de árvores de tamarindo que observam o local, como um punhado de enormes deuses benevolentes. Doce tamarindo Bastar. Às onze, o sol está alto e é menos agradável andar. Paramos em uma vila para almoçar.
Chandu parece conhecer as pessoas da casa. Uma formosa jovenzinha flerta com ele. Ele parece um pouco tímido, talvez porque eu esteja por perto. O almoço é papaia crua com masoor dal [parecido com purê de lentilhas com especiarias], e arroz vermelho. E chili vermelho triturado. Vamos esperar o sol diminuir antes de começar a andar novamente. Tiramos um cochilo na varanda. Há uma beleza relaxante nesse lugar. Tudo está limpo, sem desordem. Um galo negro desfila de cima para baixo sobre uma parede de barro. Uma grade de bambu reforça as vigas do teto de palha e se dobra como um suporte de armazenamento. Há uma escova de palha, dois tambores, uma cesta de cana trançada, um guarda-chuva quebrado e toda uma pilha de caixas de cartão ondulado, achatadas. Algo me chama a atenção, preciso de meus óculos. O que está impresso no cartão: Ideal Power 90 High Energy Emulsion Explosive (Class-2) SD CAT ZZ. Explosivo de alta potência.
Começamos a andar de novo às 2h. Na aldeia que vamos, nos encontraremos com uma Didi (irmã, camarada) que sabe qual será o próximo passo da viagem. Chandu não sabe. Há uma economia de informação também, ninguém deve saber de tudo. Mas quando chegamos na aldeia, Didi não está lá, e não há notícias dela. Pela primeira vez vejo uma pequena sombra de preocupação em Chandu, uma sombra grande assenta-se sobre mim. Não sei como serão os sistemas de comunicação, mas o que acontece se algo saiu mal?
Estamos parados em frente a um prédio escolar abandonado, a pouca distância do povo. Por que todas as escolas rurais do governo estão construídas como bastões de concreto, com cortinas de aço nas janelas e portas corredoras dobráveis de aço? Por que não como as casas do povo, com barro e palha? Para que cumpram a dupla missão de quarteis e bunkers. “Nas aldeias em Abhujmad – disse Chandu – as escolas são assim...”. Ele traça um plano de construção sobre a terra com um pequeno galho, três octógonos unidos entre si como uma colmeia. “Assim que podem disparar em todas as direções”. Desenha flechas para ilustrar seu ponto, como gráfico explicativo, parece uma roda de carretilha. Não há professores em nenhuma das escolas, disse Chandu, todos foram embora. É porque vocês os expulsaram? Não, apenas a polícia os persegue. Mas por que os professores iriam à sala, quando recebem seus salários sentado em sua casa? Bom ponto.
Ele me informa que se trata de uma “área nova”. O Partido entrou recentemente.
Uns vinte jovens chegam, meninas e meninos. São adolescentes ou no máximo 20 anos. Chandu explica que se trata da milícia da aldeia, o grau mais baixo da hierarquia dos maoístas. Nunca vi nada como eles antes. Se vestem com saris e lungis [o sari é um vestido tradicional na mulher que pode ser de corpo inteiro ou um longo sarongue, o lungi é unissex, se veste tapando a coxa], alguns em uniforme verde oliva desgastado. Os meninos levam joias, chapéus. Cada um deles tem uma escopeta caseira, que se chama de bharmaar. Alguns também tem facas, machados, arco e flecha. Um menino carrega um morteiro feito de um pesado cano G1 de um metro. Está cheio de pólvora e balas e pronto para ser disparado. Faz um grande ruído, mas apenas se pode utilizar uma vez. Ainda assim, assusta a polícia, dizem, e riem entre si. Em suas mentes a guerra não parece ser o principal. Talvez porque sua área se encontre fora da área de operações de Salwa Judum. Eles acabam de terminar um dia ajudando a construir uma cerca ao redor de algumas casas da aldeia para manter as cabras de fora das plantações. Estão cheios de alegria e curiosidade. As meninas se sentem confiantes e seguras com os meninos. Tenho um sensor para esse tipo de coisa, e me sinto impressionada. Seu trabalho, diz Chandu, é patrulhar e proteger um grupo de quatro ou cinco aldeias e ajudar nos campos, limpar os poços ou reparar casas, fazer o que for necessário. Todavia não há notícias de Didi. O que fazer? Nada. Esperar. Ajudar em algo, cortar e descascar.
Depois do jantar, sem falar muito, todos se põem em fileiras. É evidente que estamos nos locomovendo. Tudo se move conosco, o arroz, verduras, panelas e frigideiras. Saímos do recinto escolar e caminhamos em fila até a floresta. Em menos de meia hora chegamos a uma clareira onde vamos passar a noite. Não há absolutamente nenhum som. Em questão de minutos todos estenderam sobre o chão seus lençóis de plástico azul, a onipresente “jhilli” (sem a qual não haveria revolução). Chandu e Mangtu dividem uma e oferecem a outra para mim. Me asseguram o melhor lugar, na melhor rocha cinza. Chandu disse que enviou uma mensagem a Didi, se ela a recebe estará aqui como primeira coisa de manhã. Se a recebe. É a habitação mais atraente que dormi em muito tempo, minha habitação privada em um hotel de mil estrelas. Estou rodeada desses estranhos, formosos rapazes com seu curioso arsenal. Com certeza todos são maoístas. Todos vão morrer? A Escola de Instrução para Guerra na Selva é para eles? E os helicópteros de combate, a imagem termográfica e a mira a laser?
Por que devem morrer? Para que? Para converter tudo isso em uma mina? Me lembro de minha visita às minas a céu abe–o do minério de ferro em Keonjhar, Orissa. Ali uma vez havia florestas e meninos como esses. Agora a terra é como uma ferida em carne viva, de cor vermelha. A água é vermelha, o ar é vermelho, as pessoas são vermelhas, seus pulmões e pelos são da cor vermelha. Todo dia e noite os caminhões ressoam em suas aldeias, em caravana, milhares e milhares de caminhões, levando minérios ao porto Pardip, até onde se vai para a China. Lá se tornarão carros e fumaça e cidades repentinas que surgem da mente durante a noite. Em uma “taxa de crescimento” que deixa os economistas sem fôlego. Em armas para a guerra.
Todo o mundo está dormindo com exceção dos sentinelas que revezam turnos de uma hora e meia. Finalmente posso ver as estrelas. Quando eu era criança e crescia às margens do rio Meenachal, costumava pensar que o som dos grilos – que sempre aparecia no crepúsculo – era o som das estrelas aquecendo seus motores, prontas para brilhar. Estou surpreendida do quanto gosto de estar aqui. Quem deveria ser eu essa noite? Camarada Rahel sob as estrelas? Talvez Didi venha amanhã. Eles chegaram no começo da tarde. Posso vê-los desde longe, uns quinze deles, todos de uniforme verde oliva correndo até nós. Inclusive desde longe, pela forma que correm, posso dizer que são pesos pesados. O Exército Guerrilheiro de Libertação do Povo (EGLP). Os equipamentos de imagem termográfica e miras a laser são para eles. A Escola de Instrução de Guerra é para eles.
Carregam armas de verdade, INSAS, SLR, dois tem AK-47. O líder do esquadrão é o camarada Madhav que está com o Partido desde que tinha nove anos. Ele é de Warangal, Andhra Pradesh. Está indignado e muito envergonhado: Houve uma séria falha de comunicação, disse uma e outra vez, que nunca voltará a ocorrer. Se supunha que você devia ter chegado ao acampamento principal na primeira noite; alguém perdeu direção no relevo na floresta; a descida na motocicleta devia ser em um lugar completamente diferente. “A fizemos esperar, fizemos andar muito. Viemos correndo quando recebemos a mensagem de que você estava aqui”. Eu disse a ele que estava bem, e que vim preparada para esperar e andar e escutar. Ele queria que fôssemos imediatamente, porque as pessoas no acampamento estavam ficando preocupadas.
São alguma