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"Caminhando entre camaradas"

  • Foto do escritor: NOVACULTURA.info
    NOVACULTURA.info
  • 17 de ago. de 2021
  • 73 min de leitura

Atualizado: 18 de ago. de 2021


Uma nota concisa, datilografada, foi passada por baixo de minha porta em um envelope lacrado confirmando minha nomeação como a mais grave ameaça para a segurança interna da Índia. Eu esperei por meses saber isso através deles. Tinha que estar no mandir [templo] Ma Santeshwari em Dantewara, Chhattisgarh, em qualquer dos quatro encontros para os quais me davam dois dias. Isso significava ter em conta as péssimas condições climáticas, ferimentos, bloqueios, greves no transporte e o puro azar. O aviso dizia: “a escritora deve levar uma câmera, tika [a­dorno tradicional das mulheres usada pelas mulheres casadas ou com­prometidas] e um coco. Meu contato levaria um gorro, a revista Hindi Outlook e bananas. Senha: Namashkar Guruji [é uma frase dita quando se vai visitar um mandir, Guruji é o que se busca dentro de si mesmo]. Me perguntei se o contato e o anfitrião esperariam a um homem. E se devia colocar um bigode. Há muitas formas de descrever Dantewara. É um oxímoro. É uma cidade fronteiriça justamente no coração da Índia. É o epicentro de uma guerra. Uma cidade onde as coisas estão ao revés.

Em Dantewara, a polícia se veste à paisana e os rebeldes usam uniformes. O superintendente da cadeia está atrás das grades. Os presos estão livres (trezentos deles escaparam da prisão da cidade faz dois anos). As mulheres que foram estupradas estão sob custódia policial. Os violadores fazem discursos no mercado.

Do outro lado do rio Indra, na zona controlada pelos maoístas, está o lugar que os policiais chamam de “Paquistão”. Ali os povoados estão vazios, mas a floresta está cheia de gente. As crianças que deveriam estar na escola correm desenfreadamente. Nas encantadoras aldeias da floresta deslumbrante, os prédios escolares de concreto ou foram bombardeados e convertidos em um monte de escombros, ou estão cheios de policiais. A guerra mortal que se desenvolve na selva é um guerra da qual o governo da Índia está tanto orgulhoso como envergonhado. A Operação “Caçada Verde” foi anunciada e também negada. Palaniappan Chidambaram, Ministro da Administração Interna da Índia (e máximo Diretor Executivo para a Guerra) disse que não existe, que é uma criação dos meios de comunicação. E entretanto, importantes fundos se designaram para esta, e dezenas de milhares de soldados estão se mobilizando para ela. Embora o teatro de operações esteja nas selvas da Índia central, essa guerra terá graves consequências para todos nós.

Se os fantasmas são espíritos imortais de alguém ou algo que deixou de existir, então talvez a nova estrada de quatro vias que se estende pela selva seja o oposto de um fantasma. Talvez seja o presságio de algo que está por vir.

Os antagonistas na floresta são díspares e desiguais em quase to­dos os sentidos. De um lado, está uma grande força paramilitar armada com dinheiro, poder de fogo, os meios de comunicação e a arrogância de uma superpotência emergente. Por outro lado, os aldeões comuns ar­mados com armas tradicionais, respaldados por uma força de combate da guerrilha maoísta perfeitamente organizada, enormemente motivados e com uma extraordinária e violenta história de rebelião armada. Maoístas e paramilitares são velhos adversários e combateram as mais velhas manifestações de uns e outros muitas vezes antes: Telengana nos anos 50, Bengala Ocidental, Bihar, Srikakulam em Andhra Pradesh nos fins dos anos 60 e 70, e logo novamente em Andhra Pradesh, Bihar e Maharashtra desde os anos 80 até o presente. Cada um está familiarizado com as táticas do outro e estudou cuidadosamente os manuais de combate do outro. Cada vez se parece que os maoístas (ou seus avatares anteriores) não só haviam sido derrotados, mas fisicamente exterminados, literalmente. Mas sempre voltam a ressurgir, mais organizados, mais decididos e mais influentes que nunca. Hoje, uma vez mais, a insurreição se estendeu para as florestas mais ricas em minérios de Chhattisgarh, Jharkhand, Orissa e Bengala Ocidental, terra natal de milhões de pessoas dos povos tribais da Índia, terra dos sonhos do mundo corporativo.

É mais fácil para a consciência liberal crer que a guerra nas florestas é uma guerra entre o Governo da Índia e os maoístas, que consideram as eleições uma farsa, o parlamento um chiqueiro e declararam abertamente a sua intenção de derrocar o Estado indiano. É conveniente esquecer que os povos tribais na Índia Central têm uma história de resistência que antecede Mao por séculos (isso é uma verdade óbvia, certamente; se não fosse assim, não existiriam). Os Ho, os Oraon, os Kols os Santhals, os Mundas e os Gond se revoltaram inúmeras vezes contra os britânicos, contra os zamindars [recolhedores de impostos do império Mughal] e contra os agiotas. As rebeliões foram esmagadas com crueldade, milhares morreram, mas os povos nunca foram conquistados. Inclusive após a independência, as tribos estiveram no coração do primeiro levante que poderia se descrever como maoísta, na aldeia de Naxalbari em Bengala Ocidental (de onde se origina a palavra naxalita, que agora se usa indistintamente como maoísta). Desde então, a política naxalita es­teve estreitamente ligada às insurreições tribais, o que diz muito sobre as tribos e também sobre os naxalitas.

Esse legado de rebelião deixou para trás um povo enfurecido que foi deliberadamente isolado e marginalizado pelo governo da Índia. A Constituição, a base moral da democracia da Índia, foi aprovada pelo Parlamento em 1950. Foi um dia trágico para os povos tribais. A Constituição ratificou a política colonial e transformou o Estado em tutor legal das terras tribais. Gradualmente converteu toda a população tribal em intrusos em sua própria terra. Se os nega seus direitos ancestrais aos produtos da floresta, criminaliza toda uma forma de vida. A mudança do direito ao voto, arrebatou seu direito à subsistência e dignidade. Sendo despojados de suas terras e empurrados em uma espiral descendente à indigência, em um cruel ato de ilusionismo, o Governo começou a utilizar sua própria penúria contra eles. Toda vez que precisava despejar uma grande população – por represas, projetos de irrigação, minas – se falou de “colocar as tribos no caminho da modernidade” ou de dar a elas “os frutos do desenvolvimento moderno”. Das dezenas de milhões de pessoas despejadas internamente, refugiados da causa do “progresso” da Índia (mais de 30 milhões por conta das grandes represas), a grande mai­o­ria são povos tribais. Quando o Governo começa a falar do bem-estar das tribos, é hora de se preocupar. A mais recente manifestação do as­sunto veio do Ministro da Administração Interna, P. Chidambaram, que disse que não quer que os povos tribais vivam em “culturas de museu”. O bem-estar dos povos tribais não pareceu ser uma prioridade durante sua carreira enquanto advogado de corporações, quando representava os interesses de várias das mais importantes empresas de mineração. Portanto, poderia ser interessante investigar as recentes causas da sua angústia recente.

Nos últimos cinco anos, Governos de Chhattisgarh, Jharkhand, Orissa e Bengala Ocidental firmaram Memorandos de Entendimentos (MDE) com centenas de corporações por vários milhões de dólares, tudo em segredo, para as plantas de aço, de concentrados de ferro, centrais elétricas, refinarias de alumínio, barragens e minas. A fim de que os MDE se convertam em dinheiro real, as tribos devem ser desalojadas.

Por isso há guerra.

Quando um país que se diz uma democracia declara abertamen­te a guerra dentro de suas fronteiras, o que podemos esperar desta guer­ra? A resistência significa uma oportunidade? O que pensam? Quem são os maoístas? São apenas niilistas violentos que, iludidos, apresentam uma ideologia antiquada aos povos tribais, os empurrando a uma insurreição sem esperança? Que lições foram aprendidas das experiências anteriores? A luta armada é intrinsecamente antidemocrática? É certada a teoria do sanduíche, tribos “normais” retidas no fogo cruzado entre o Estado e os maoístas? São “maoístas” e “tribos” duas categorias totalmente distintas tal como vem sendo apresentadas? Seus interesses se convergem? Não aprenderam nada um com o outro? Um transformou o outro?

No dia antes de eu ir, minha mãe me chamou, soava sonolenta “Eu estive pensando” – disse com o estranho instinto de mãe – “que o que esse país precisa é de uma revolução”.

Um artigo na internet disse que a Mossad de Israel está treinando 30 oficiais de alto cargo da polícia indiana em técnicas de assassinato seletivo para “decapitar” a organização maoísta. Se fala na imprensa sobre o novo equipamento que comprou de Israel: telêmetros de raio laser, equipes de imagem térmica e aviões não tripulados muito populares entre o exército dos Estados Unidos. Armas perfeitas para serem usadas contra os pobres.

A estrada de Raipur a Dantewara leva cerca de dez horas de carro através de zonas conhecidas por serem “infestadas de maoístas”. Essas não são palavras descuidadas. “Infestado/infestação” implica doença e pragas. A doença deve ser curada, as pragas devem ser exterminadas. Os maoístas devem ser eliminados. De formas inócuas, enigmáticas, a linguagem do genocídio se incorporou a nosso vocabulário.

Para proteger a estrada, as forças de segurança “garantiram” uma estreita faixa de floresta de ambos os lados. Mais adentro estão os domínios de “Dada”. Os Irmãos, os camaradas.

Nos arredores de Raipur, um poster enorme anuncia o Hospital do Câncer construído por Vedanta (a empresa na qual nosso Ministro do Interior trabalhou). Em Orissa, onde se desenvolve o minério de bauxita, Vedanta também está financiando uma Universidade. Com tais formas ocultas, inócuas, as mineradoras entram em nosso subconsciente: gigantes ternos que realmente se preocupam. Se chama RSC – Responsabilidade Social Corporativa. Permite às empresas mineradoras ser co­mo o lendário ator e ex-Primeiro-Ministro NTR, que quis interpretar todos os papeis na mitológica Telugu – os bons e os maus, todos de uma vez, no mesmo filme. A RSC mascara a economia abjeta que se baseia o setor mineiro na Índia. Por exemplo, segundo o recente Informe Loka­yu­kta para Karnataka, para cada tonelada de minério de ferro extraído por uma empresa privada, o Governo recebe uma regalia de 27 rúpias e a empresa mineradora obtém 5 mil rúpias. No setor de alumínio e da bauxita, as cifras são ainda piores. Estamos falando de roubo flagrante por uma soma de milhares de milhões de dólares, o suficiente para comprar eleições, juízes, governos, jornais, canais de televisão, ONGs e organismos de ajuda. Que importa um hospital de câncer aqui ou ali?

Não me lembro de ter visto o nome de Vedanta na longa lista de MDE firmada pelo governo de Chhattisgarh. Mas tenho uma mente suficientemente retorcida para suspeitar que se há um hospital de câncer deve haver uma enorme montanha de bauxita em algum lugar. Passamos Kanker, famoso por sua Escola de Treinamento de Guerra Antiterrorista e Combate de Selva desenvolvida pelo brigadista B.K. Ponwar, o Rumpelstiltskin [personagem de conto de fadas] dessa guerra, encarregado de converter policiais corruptos e negligentes (escória) em comandos de selva (ouro). “Combater a guerrilha com uma guerrilha”, o lema da Escola de Treinamento de Guerra está pintado em to­das as rochas.

Aos homens lhes ensina a correr, deslizar-se, pular dentro e fora de helicópteros no ar, montar a cavalo (por algum motivo), comer serpentes e viver da selva. A brigada se orgulha de instruir carrochos da rua para lutar contra os “terroristas”. Oitocentos policiais se graduam na Escola de Treinamento de Guerra a cada seis semanas. Se planejam 20 escolas similares para toda a Índia. A força policial gradualmente vem se convertendo em um exército (em Kashmir é o inverso, o exército está se convertendo em uma força inflada e administrativa da polícia). As coisas de ponta cabeça. De qualquer forma, o inimigo é o povo.

É tarde. Jagdalpur está dormindo, a exceção dos muitos agentes de Rahul Gandhi [dirigente do Partido do Congresso, do governo], nos oferecendo a nos unirmos à juventude do Partido. Rahul Gandhi esteve duas vezes em Bastar nos últimos meses, mas não disse grande coisa sobre a guerra. É provavelmente muito sujo que o Príncipe do Povo interfira nesse assunto. O fato de que Salwa Judum [Caçadores da Paz] – o temido grupo parapolicial de vigilância patrocinado pelo governo, responsável por violações e assassinatos, de queimar povos e expulsar centenas de milhares de pessoas de seus lares – seja liderado por Mahendra Karma, um deputado do Partido do Congresso, não encaixa muito na publicidade cuidadosamente arquitetada em torno de Rahul Gandhi.

Cheguei ao Mandir de Ma Danteshwari a tempo para meu compromisso (o primeiro dia, primeira chance). Tinha minha câmera, meu pequeno coco e minha testa pintada com pó vermelho. Me perguntava se alguém me observava rindo. Em poucos minutos, uma jovem se aproximou de mim, levava um boné e mochila. Tinha as unhas pintadas com um esmalte vermelho descascado. Nem revista Hindi Outlook, nem bananas. “É você que tinha que vir? “, me perguntou. Nenhum Namashkar Guruji. Eu não sabia o que dizer. Sacou uma nota encharcada de seu bolso e me entregou, “Outlook nahi mila", dizia (Não se pode encontrar Outlook”).

“E as bananas?”

“Eu as comi – disse – tive fome”;

Realmente era uma ameaça para a segurança.

Sua mochila dizia “Charlie Brown – Não seu tonto ordinário”. Disse que seu nome era Mangtu. Logo aprendi que Dandakaranya, a floresta que estava a ponto de entrar, estava cheia de gente que tinha muitos nomes e identidades que mudavam constantemente. Era como um oásis para mim tal ideia. Que maravilhoso, não estar arraigado a si mesmo para se converter em outra pessoa por um momento!

Caminhamos até o ponto de ônibus, a apenas minutos de distância do templo. Estava cheio. As coisas aconteceram rapidamente. Havia dois homens em uma moto. Não houve nenhuma conversa, apenas um olhar de reconhecimento, retirada do peso corporal, o ruído dos motores. Não tinha ideia para onde íamos. Passamos pela casa do Superintendente da Polícia (SP), o qual conheci em minha última visita. Era um homem sincero “Veja senhora, falando com franqueza, esse problema não pode ser resolvido por nossos policiais, nem militarmente. O problema com essas tribos é que não entendem a ganância pelo poder. A menos que se tornem gananciosos, não há esperanças para nós. Eu disse a meu chefe: retire a força e no lugar coloque uma televisão em cada casa. Tudo se resolveria automaticamente”.

Em pouco tempo seguíamos caminho nos subúrbios da cidade. Nada nos seguia. Foi uma longa viagem, três horas em meu relógio. Terminou abruptamente no meio do nada, em uma estrada vazia com floresta de ambos os lados. Mangtu se abaixou, e eu também. Motos à esquerda, peguei minha mochila e segui a pequena ameaça à segurança interna até a floresta. Era um dia bonito, o solo da floresta era um tapete de ouro. De repente emergimos sobre as margens brancas e arenosas de um rio largo e plano. Era obviamente alimentado pelas monções, então agora era um piso de areia, no centro havia um córrego, que ia até os tornozelos, fácil de atravessar. Do outro lado estava o “Paquistão”. Quando começamos a cruzar, me lembrei do que o honesto superintendente havia me dito: “fique longe dali, senhora, meus garotos disparam para matar”. Nos imaginamos na mira de um rifle da polícia, pequenas silhuetas sobre o lugar, fáceis de se liquidar. Mas Mangtu parecia bastante indiferente e a segui.

Do outro lado do rio, Chandu nos esperava, com uma camisa de cor verde-lima que dizia “Horlicks!”. Uma ameaça de segurança um pouco maior, talvez 20 anos. Tinha um sorriso encantador, uma bicicleta, uma garrafa com água fervida e vários pacotes de bolachas de glicose para mim, presente do Partido. Retomamos o fôlego e voltamos a caminhar. A bicicleta, no final das contas era inútil, o trajeto quase em sua totalidade não permitia usá-la. Subimos colinas íngremes e descemos caminhos rochosos muito precários nas ladeiras. Quando não podia pedalar, Chandu levantava a bicicleta e a punha sobre sua cabeça como se não pesasse nada. Comecei a me perguntar sobre seu ar de garoto do povo desconcertado. Descobri (muito depois) que ele podia manejar to­do tipo de armas, “exceto uma LMG”, me disse alegremente.

Três homens belos e ébrios com flores em seus turbantes caminharam conosco durante meia hora antes de nossos caminhos se separarem. No entardecer suas mochilas começaram a cantar. Tinham galos nelas, os haviam levado ao mercado, mas não conseguiram vender.

Chandu parece ser capaz de ver no escuro. Eu tenho que usar minha lanterna. Os grilos começam a cantar e logo há uma orquestra, uma cúpula de som sobre nós. Anseio olhar para o céu noturno, mas não me atrevo, tenho que manter meus olhos no chão. Um passo de cada vez, concentrada.

Escuto cachorros, mas não consigo dizer a que distância estão. O terreno se achata. Dou uma espiada no céu, fico extasiada. Espero que paremos logo. Chandu diz “pronto”. Resulta em mais de uma hora. Vejo silhuetas de árvores enormes. Chegamos.

A vila parece espaçosa, as casas muito longes umas das outras. A casa em que entramos é formosa. Há fogo, algumas pessoas sentadas ao redor. Há mais gente do lado de fora, no escuro. Não posso dizer quantos, apenas posso distinguí-los bem. Ocorre um murmúrio ao redor. Lal Salaam Kaamraid (Saudações vermelhas, camarada). Lal Salaam, digo eu. Eu estou mais que cansada. A dona da casa me chama e me dá frango cozido com curry e vargem verde e um pouco de arroz vermelho, fantástico. Seu bebê está dormindo a meu lado, suas tornozeleiras de prata brilham à luz do fogo.

Depois do jantar, eu estico meu saco de dormir. É um som estranho e intrusivo o fecho do zíper. Alguém liga o rádio, é a BBC em hindi. A Igreja da Inglaterra retirou seus fundos do projeto Niyamgiri da Vedanta, citando a degradação ambiental e violações aos direitos da tribo Dongria Kondh. Posso ouvir chocalhos de vaca, narizes fungando, patas se arrastando e o bufar do gado. Tudo está bem com o mundo. Meus olhos se cerram. Nos levantamos cinco da manhã. Ficamos ativos às seis e em umas duas horas cruzamos outro rio. Caminhamos através de algumas aldeias formosas. Cada aldeia tem uma família de árvores de tamarindo que observam o local, como um punhado de enormes deuses benevolentes. Doce tamarindo Bastar. Às onze, o sol está alto e é menos agradável andar. Paramos em uma vila para almoçar.

Chandu parece conhecer as pessoas da casa. Uma formosa jovenzinha flerta com ele. Ele parece um pouco tímido, talvez porque eu esteja por perto. O almoço é papaia crua com masoor dal [parecido com purê de lentilhas com especiarias], e arroz vermelho. E chili vermelho triturado. Vamos esperar o sol diminuir antes de começar a andar novamente. Tiramos um cochilo na varanda. Há uma beleza relaxante nesse lugar. Tudo está limpo, sem desordem. Um galo negro desfila de cima para baixo sobre uma parede de barro. Uma grade de bambu reforça as vigas do teto de palha e se dobra como um suporte de armazenamento. Há uma escova de palha, dois tambores, uma cesta de cana trançada, um guarda-chuva quebrado e toda uma pilha de caixas de cartão ondulado, achatadas. Algo me chama a atenção, preciso de meus óculos. O que está impresso no cartão: Ideal Power 90 High Energy Emulsion Explosive (Class-2) SD CAT ZZ. Explosivo de alta potência.

Começamos a andar de novo às 2h. Na aldeia que vamos, nos encontraremos com uma Didi (irmã, camarada) que sabe qual será o próximo passo da viagem. Chandu não sabe. Há uma economia de informação também, ninguém deve saber de tudo. Mas quando chegamos na aldeia, Didi não está lá, e não há notícias dela. Pela primeira vez vejo uma pequena sombra de preocupação em Chandu, uma sombra grande as­senta-se sobre mim. Não sei como serão os sistemas de comunicação, mas o que acontece se algo saiu mal?

Estamos parados em frente a um prédio escolar abandonado, a pouca distância do povo. Por que todas as escolas rurais do governo es­tão construídas como bastões de concreto, com cortinas de aço nas janelas e portas corredoras dobráveis de aço? Por que não como as casas do povo, com barro e palha? Para que cumpram a dupla missão de quarteis e bunkers. “Nas aldeias em Abhujmad – disse Chandu – as escolas são assim...”. Ele traça um plano de construção sobre a terra com um pequeno galho, três octógonos unidos entre si como uma colmeia. “Assim que podem disparar em todas as direções”. Desenha flechas para ilustrar seu ponto, como gráfico explicativo, parece uma roda de carretilha. Não há professores em nenhuma das escolas, disse Chandu, todos foram embora. É porque vocês os expulsaram? Não, apenas a polícia os persegue. Mas por que os professores iriam à sala, quando recebem seus salários sentado em sua casa? Bom ponto.

Ele me informa que se trata de uma “área nova”. O Partido entrou recentemente.

Uns vinte jovens chegam, meninas e meninos. São adolescentes ou no máximo 20 anos. Chandu explica que se trata da milícia da aldeia, o grau mais baixo da hierarquia dos maoístas. Nunca vi nada como eles antes. Se vestem com saris e lungis [o sari é um vestido tradicional na mulher que pode ser de corpo inteiro ou um longo sarongue, o lungi é unissex, se veste tapando a coxa], alguns em uniforme verde oliva desgastado. Os meninos levam joias, chapéus. Cada um deles tem uma escopeta caseira, que se chama de bharmaar. Alguns também tem facas, machados, arco e flecha. Um menino carrega um morteiro feito de um pesado cano G1 de um metro. Está cheio de pólvora e balas e pronto para ser disparado. Faz um grande ruído, mas apenas se pode utilizar uma vez. Ainda assim, assusta a polícia, dizem, e riem entre si. Em suas mentes a guerra não parece ser o principal. Talvez porque sua área se encontre fora da área de operações de Salwa Judum. Eles acabam de terminar um dia ajudando a construir uma cerca ao redor de algumas casas da aldeia para manter as cabras de fora das plantações. Estão cheios de alegria e curiosidade. As meninas se sentem confiantes e seguras com os meninos. Tenho um sensor para esse tipo de coisa, e me sinto impressionada. Seu trabalho, diz Chandu, é patrulhar e proteger um grupo de quatro ou cinco aldeias e ajudar nos campos, limpar os poços ou reparar casas, fazer o que for necessário. Todavia não há notícias de Didi. O que fazer? Nada. Esperar. Ajudar em algo, cortar e descascar.

Depois do jantar, sem falar muito, todos se põem em fileiras. É evidente que estamos nos locomovendo. Tudo se move conosco, o ar­roz, verduras, panelas e frigideiras. Saímos do recinto escolar e caminhamos em fila até a floresta. Em menos de meia hora chegamos a uma clareira onde vamos passar a noite. Não há absolutamente nenhum som. Em questão de minutos todos estenderam sobre o chão seus lençóis de plástico azul, a onipresente “jhilli” (sem a qual não haveria revolução). Chandu e Mangtu dividem uma e oferecem a outra para mim. Me asseguram o melhor lugar, na melhor rocha cinza. Chandu disse que enviou uma mensagem a Didi, se ela a recebe estará aqui como primeira coisa de manhã. Se a recebe. É a habitação mais atraente que dormi em muito tempo, minha habitação privada em um hotel de mil estrelas. Estou rodeada desses estranhos, formosos rapazes com seu curioso arsenal. Com certeza todos são maoístas. Todos vão morrer? A Escola de Instrução para Guerra na Selva é para eles? E os helicópteros de combate, a imagem termográfica e a mira a laser?

Por que devem morrer? Para que? Para converter tudo isso em uma mina? Me lembro de minha visita às minas a céu abe–o do minério de ferro em Keonjhar, Orissa. Ali uma vez havia florestas e meninos como esses. Agora a terra é como uma ferida em carne viva, de cor ver­melha. A água é vermelha, o ar é vermelho, as pessoas são vermelhas, seus pulmões e pelos são da cor vermelha. Todo dia e noite os caminhões ressoam em suas aldeias, em caravana, milhares e milhares de caminhões, levando minérios ao porto Pardip, até onde se vai para a China. Lá se tornarão carros e fumaça e cidades repentinas que surgem da mente durante a noite. Em uma “taxa de crescimento” que deixa os economistas sem fôlego. Em armas para a guerra.

Todo o mundo está dormindo com exceção dos sentinelas que revezam turnos de uma hora e meia. Finalmente posso ver as estrelas. Quando eu era criança e crescia às margens do rio Meenachal, costumava pensar que o som dos grilos – que sempre aparecia no crepúsculo – era o som das estrelas aquecendo seus motores, prontas para brilhar. Estou surpreendida do quanto gosto de estar aqui. Quem deveria ser eu essa noite? Camarada Rahel sob as estrelas? Talvez Didi venha amanhã. Eles chegaram no começo da tarde. Posso vê-los desde longe, uns quinze deles, todos de uniforme verde oliva correndo até nós. Inclusive desde longe, pela forma que correm, posso dizer que são pesos pesados. O Exército Guerrilheiro de Libertação do Povo (EGLP). Os equipamentos de imagem termográfica e miras a laser são para eles. A Escola de Instrução de Guerra é para eles.

Carregam armas de verdade, INSAS, SLR, dois tem AK-47. O líder do esquadrão é o camarada Madhav que está com o Partido desde que tinha nove anos. Ele é de Warangal, Andhra Pradesh. Está indignado e muito envergonhado: Houve uma séria falha de comunicação, disse uma e outra vez, que nunca voltará a ocorrer. Se supunha que você devia ter chegado ao acampamento principal na primeira noite; alguém perdeu direção no relevo na floresta; a descida na motocicleta devia ser em um lugar completamente diferente. “A fizemos esperar, fizemos andar mui­to. Viemos correndo quando recebemos a mensagem de que você estava aqui”. Eu disse a ele que estava bem, e que vim preparada para esperar e andar e escutar. Ele queria que fôssemos imediatamente, porque as pessoas no acampamento estavam ficando preocupadas.

São algumas horas a pé até o acampamento, estava de noite quando chegamos. Há várias linhas de sentinelas e círculos concêntricos de patrulha. Deve haver uma centena de companheiros alinhados em duas fileiras. Todo mundo tem uma arma. E um sorriso. Começam a cantar: Lal lal salam, lal lal salaam, aane vaaley saathiyon ko lal lal Salaam (saudações vermelhas aos camaradas que chegaram). Foi cantada com doçura, como se fosse canção popular sobre um rio ou uma flor dos bosques. Com a canção ia a saudação, o aperto de mãos e o punho cerrado. Todos saudam todos, murmurando Lalslaam, mlalslaa mlalslaam...

Além de uma grande jhilli azul estendida sobre o solo, não há mais sinais de um “acampamento”. Mas aqui há um forro de jhilli também, é a minha habitação para a noite. Ou estava sendo recompensada por meus dias de marcha ou era mimada com antecedência pelo que estava por vir. Ou as duas coisas. De qualquer forma, foi a última vez em toda a viagem que eu teria um forro sobre minha cabeça. Durante a janta, me reúno com a camarada Narmada, responsável pela Krantikari Adivasi Mahila Sangathan, KAMS [Organização Revolucionária de Mu­lhe­res Adivasi], que tem um preço sobre sua cabeça; o camarada Saroja do EGLP, que é tão alto como sua SLR; a camarada Maase (que significa Menina Negra em Gondi) que também tem um preço sobre sua cabeça; camarada Roopi, o asistente técnico; o camarada Raju que está a cargo da Divisão com que estive caminhando; e o camarada Venu (ou Murali ou Sonu ou Sushil, como quer que você queira chamá-lo), claramente o mais experiente de todos eles. Talvez do Comitê Central, talvez até do Politburo. Não me disse, não lhe perguntei. Entre nós, falávamos Gondi, Halbi, Telugu, Punjabi e Malayalam. Apenas Maase fala inglês (então todos se comunicam em hindi!). A camarada Maase é alta e tranquila, parece que tem que passar por um lago de dor para iniciar uma conversa. Mas pela maneira que ela me aborda, posso dizer que é muito leitora. E que sente falta de ter livros na selva. Ela vai me contar sua história apenas muito depois, quando confiar em mim sua dor.

Chegam más notícias, aos moldes da selva. Um corredor com “biscoitos”, notas manuscritas sobre folhas de papel, dobradas e agrafadas em quadrados pequenos. Há uma bolsa cheia delas, como fragmentos. Há notícias de todas as partes: A polícia matou cinco pessoas na al­deia de Ognaar, quatro da milícia e um aldeão comum: Santhu Pottai (25 anos), Phoolo Vadde (22), Kande Potai (22), Ramoli Vadde (20), Dalsai Koram (22). Podiam ter sido os jovens de meu dormitório estrelado da noite anterior.

Então chegam boas notícias. Um pequeno contingente de pessoas com uma jovem acima do peso. Ela está fatigada, mas tem um aspecto completamente novo. Todos a admiram e comentam sobre seu aspecto, ela parece tímida e encantada. É uma médica que veio viver e trabalhar com os camaradas na floresta. A última vez que um médico visitou Dandakaranya foi muitos anos atrás.

Na rádio há notícias sobre a reunião do Ministro de Assuntos Internos com os Ministros dos Estados afetados pelo “extremismo de esquerda” para discutir sobre a guerra. Os Ministros de Jharkhand e Bihar estão se reservando e não compareceram. Todos sentados ao redor do rádio riem. Em época de eleições, dizem, durante a campanha e inclusive depois de um ou dois meses do governo assumir, todos os políticos dizem coisas como “os naxalitas são nossos filhos”. Você pode configurar seu relógio para a hora que eles mudam de opinião e as suas presas crescem.

Me apresentam à camarada Kamla. Me indicam que em nenhum caso posso ir mais longe do que cinco passos de distância de minh jhilli sem acordá-la. Isso porque todos se desorientam no escuro e poderia a­cabar completamente perdida (não penso em acordá-la, eu durmo co­mo um tronco). Pela manhã Kamla me presenteia com um pacote de polietileno de cor amarela com o canto cortado. Antigamente era usado para guardar azeite de soja refinado Abis Gold, agora era minha caneca de chá. Nada se desperdiça no caminho da revolução (ainda hoje penso na camarada Kamla todo o tempo, todos os dias. Ela tem 17 anos. Carrega uma pistola caseira na cintura. E céus, que sorridente! Mas se a polícia cruzar com ela, vão matá-la. Talvez a estuprem primeiro. Não farão perguntas, porque ela é uma ameaça para a segurança interna).

Depois do café da manhã, o camarada Venu (Sushil, Sonu, Murali) está me esperando, sentado com as pernas cruzadas sobre seu jhilli, observando a todos como um delicado professor de escola. Vou ter uma aula de história ou, mais exatamente, uma conferência sobre a história dos últimos 30 anos na selva de Dandakaranya, que terminou na guerra que os envolve atualmente. Certamente, é a versão dos guerrilheiros. Mas que história não é versão de alguém? Em qualquer caso, a história secreta deve se fazer pública se é que vai ser impugnada, contrastada, ao invés de se limitar ao engano, que é o que está acontecendo agora.

O camarada Venu tem um estilo calmo, tranquilizante, e uma voz suave que irá conservar nos dias subsequentes ainda em um contexto que me deixaria nos nervos por completo. Essa manhã fala durante várias horas, quase continuamente. É como um administrador de uma tenda pequena que tem um molho enorme de chaves com as quais abre um labirinto de armários cheios de histórias, canções e reflexões.

O camarada Venu estava em um dos sete esquadrões armados que cruzaram o Godavari desde Adhra Pradesh e entraram na floresta de Dandakaranya (DK, no jargão do Partido) em junho de 1980, faz 30 anos. Ele é um dos primeiros quarenta e nove. Pertenciam ao Grupo Guerra Popular (GGP), uma facção do Partido Comunista da Índia (Marxista-Leninista), PCI (ML), os naxalitas originais. Em abril desse ano, GGP se apresentou oficialmente como um Partido separado e independente, sob a direção de Kondapalli Seetharamiah. GGP decidiu construir um exército permanente, para o qual precisavam de uma base. DK iria a ser essa base e os primeiros destacamentos foram enviados para reconhecer a zona e começar o processo de construção de zonas guerrilheiras. O debate acerca de que se os partidos comunistas devem ter um exército permanente e ter ou não um “Exército Popular” é uma contradição intrínseca, é antiga. A decisão do GGP de construir um exército resultava da sua experiência em Andhra Pradesh, onde sua campanha “terra para quem nela trabalha” deu passo a um enfrentamento direto com os latifundiários, e resultou em um tipo de repressão policial que o Partido considerou impossível resistir sem uma força de combate treinada para este fim (no ano de 2004 o GGP se fundiu com as outras facções do PCI (ML), Partido Unidade (PU) e o Centro Comunista Maoista (MCC) – que operavam em sua maior parte fora de Bihar e Jharkhand – para chegar a ser o que hoje é o Partido Comunista da Índia (Maoista)).

Dandakaranya é parte do que os britânicos, à sua maneira de ho­mem branco, chamaram Gondwana, terra dos gond. Hoje em dia os limites do estado de Madhya Pradesh, Chhatisgarh, Orissa, Andhra Pradesh e Maharashtra dividem essa floresta. Dividir os povos problemáticos em diferentes unidades administrativas é um truque velho. Mas esses maoístas e gonds maoístas não prestam muita atenção a coisas como as fronteiras estatais. Tem diferentes mapas de cabeça e igual às demais criaturas da selva, tem seus próprios caminhos. Para eles, as estradas não são feitas para andar sobre elas, são apenas para ser atravessadas, ou como é cada vez mais frequente, para uma emboscada. Embora os gonds (divididos entre as tribos koya e dorla) são a grande maioria da população, também há pequenos assentamentos de outras comunidades tribais. As comunidades não adivasi, os comerciantes e colonos, vivem nos arredores da floresta, perto das estradas e dos mercados.

Os membros do GGP não foram os primeiros a chegar em Dandakaranya. Baba Amte, o conhecido seguidor de Gandhi abriu seu ashram [comunidade espiritual] e um hospital de leprosos em Warora em 1975. A missão Ramakrishna havia começado a abrir escolas rurais nas remotas florestas de Abhujmad. No norte de Bastar, Baba Bihari Das havia começado um esforço agressivo para “trazer as tribos de novo ao redil hindu”, que implicou em uma campanha para difamar a cultura tribal, induzir o auto-rechaço e introduzir a grande dádiva do hinduísmo: as castas. Aos primeiros convertidos, os chefes das aldeias e os grandes latifundiários – gente como Mahendra Karma, fundador do Salwa Judum [força paramilitar amparada e financiada pelo Estado] – lhes foi outorgado o estatuto de Dwij, duas vezes nascido, brahmán (Certamente, isso foi algo fraudulento, porque nada pode se converter em um brahmán. Se pudesse, seríamos uma nação de brahmanes). Mas esse hinduísmo falsificado se considerou o suficientemente bom para os povos tribais, igual à falsificação de marcas de todo o resto que se vende nos mercados rurais, biscoitos, detergente, fósforos, azeite. Como parte do processo de Hindutva [hinduização, versão moderna e intolerante do hinduísmo], os nomes das aldeias foram mudados nos registros de terras e como resultado agora a maioria tem dois nomes, o nome da aldeia e o nome do governo. O povo Innar por exemplo, se converteu em Chinnari. Nos registros eleitorais, os nomes tribais foram transformados em nomes hindus (Massa Karma se converteu em Mahendra Karma). Aqueles que não se apresentaram para se juntar ao rebanho hindu, foram declarados “Katwas” (que para eles significa intocáveis) que mais tarde se converteram na base natural dos maoístas.

O GGP começou primeiro a trabalhar no sul de Bastar e Gad­chiroli. O camarada Venu descreve com detalhe os primeiros meses: os aldeãos suspeitavam deles e não os deixavam entrar em suas casas. Nin­guém oferecia comida nem água. A polícia espalhou o boato que eram ladrões e as mulheres escondiam suas joias nas cinzas dos fornos. Houve uma enorme repressão. Em novembro de 1980, em Gadchiroli, a polícia abriu fogo em uma reunião da aldeia e mataram um destacamento in­teiro. Esse foi o primeiro assassinato – “enfrentamento” em DK. Foi um refluxo traumático e os camaradas se retiraram através do Godavari e voltaram a Adilabad. Mas voltaram em 1981. Começaram a organizar os povos tribais pela demanda de um aumento no preço que se pagava para folhas de tendu [tabaco] (que se usam para fazer beedis [cigarros]). Nesse momento os comerciantes pagavam 3 paisa [três centavos de rupia, no câmbio atual, 1 euro equivale a 64 rúpias, o que dá uma ideia da quantidade que se pagava, ínfima e insignificante], para um pacote de cerca de 50 folhas. Foi um trabalho formidável organizar gente totalmente não familiarizada com esse tipo de política, e conduzi-los à greve. Eventualmente, a greve foi vitoriosa e o preço duplicou, a 6 paise por pa­cote. Mas o verdadeiro êxito para o Partido foi ser capaz de demonstrar o valor da unidade e uma nova forma de levar a cabo uma negociação política. Hoje, depois de várias greves e agitações, o preço de um pacote de folhas é 1 rúpia [não chega a dois centavos de euro]. (Parece um pouco improvável essas taxas, mas o volume de negócios do tendu se estima em centenas de crores de rúpias [1 crore equivale a 10 mi­lhões]). Toda temporada o governo gera ofertas e permite aos contratistas extrair um volume fixo de folhas de tendu – normalmente entre 1500 e 5000 sacolas padrão conhecidas como manak boras [aqui a chamaríamos de fardos]. Cada manak bora contém ao redor de 1000 pacotes (certamente não há forma de garantir que os contratistas não extraiam mais do que estão autorizados). Quando o tendu entra no mercado, se vende por quilos. A escandalosa matemática e o astuto sistema de medidas que converte pacotes em manak boras e depois em quilos é controlado pelos contratistas, e deixa muito espaço para manipulação da pior espécie. A estimativa mais conservadora coloca os lucros por bolsa padrão ao redor de 1100 rupias (isso é, depois de pagar uma comissão de 120 rupias por saco ao Partido). Inclusive por monte, um pequeno contratista (1500 sacos) consegue cerca de 16 lakh [1,6 milhões de rupias] em uma temporada e um grande contratista (5000 sacos) consegue até 55 lakh [5,5 milhões de rupias]. Uma estimativa mais realista resulta nessa quantidade várias vezes. Enquanto isso, a mais grave ameaça para a segurança interna faz apenas o suficiente para se manter viva até o próximo ano.

Somos interrompidos por algumas risadas e vemos Nilesh, um dos jovens camaradas do EGLP, caminhando rapidamente até o setor de cozinha, batendo em si mesmo. Quando ele se aproxima vejo que está carregando um ninho de formigas vermelhas que se estendem por todo seu corpo e mordem seus braços e pescoço. Nilesh está rindo também. “Já comeu chutney [conserva agridoce que se usa para acompanhar carnes, aves e patê] de formiga?”, o camarada Venu me pergunta. Conheço as formigas vermelhas e desde pequena em Kerala, eu era mordida por elas, mas nunca as comi (o chutney resulta em ser agradável; amargo, muito ácido fólico).

Nilesh é de Bijapur, que está no coração das operações de Salwa Judum. O irmão menor de Nilesh se juntou os Judum em uma de suas festas de saques e fogos e virou um oficial da Polícia Especial. Vive no acampamento Basaguda com sua mãe, seu pai se negou a ir e ficou na aldeia. De fato, se trata de uma disputa de sangue na família. Mais tarde, quando tive a oportunidade de falar com ele, o perguntei o porque de seu irmão ter feito isso. “Era muito jovem”, disse Nilesh. “Foi apresentada a ele uma oportunidade de expulsar, ferir pessoas e queimar casas. Voltou louco, fez coisas terríveis. Agora se prendeu nisso. Nunca poderá voltar para a aldeia, não será perdoado. Ele sabe”.

Voltamos para a lição da história. A próxima grande luta do Partido, disse o camarada Venu, foi contra a fábrica de Papel Ballarput. O governo deu à Thapars um contrato de 45 anos para extrair 1,5 lakh [150 mil] toneladas de bambu com preços enormemente subsidiados (coisa pequena em comparação com a bauxita, mas ainda assim). Se pagavam 10 paisa às tribos por um pacote que continha 20 canas de bambu (não vou ceder à tentação vulgar de comparar com os benefícios que a Thapars estava fazendo). Uma grande agitação, uma greve seguida de negociações com funcionários da fábrica de papel em presença do povo e o preço se triplicou a 30 paisa por pacote. Para os povos tribais, se tratava de grandes vitórias. Outros partidos políticos fizeram promessas, mas nunca mostraram sinais de cumpri-las. O povo começou a se aproximar do GGP perguntando se podiam se juntar a eles.

Mas as políticas voltadas ao tendu, bambu e outros produtos flo­restais eram sazonais. O problema permanente, o pesadelo real para a vida das pessoas era o maior latifundiário de todos, o Departamento Florestal. Toda manhã os funcionários florestais, inclusive os mais jovens [se refere aos recém-chegados no cargo], podem aparecer nas aldeias co­mo um pesadelo, impedindo os aldeões de arar suas terras, recolher le­nha, arrancar as folhas, colher os frutos, pastorear se gado, viver. Trouxeram elefantes às terras invadidas e espalham sementes de Babool [árvore espinhosa, muito agressiva] para destuir a terra onde eles passavam. O povo seria detido, humilhado, suas colheitas destruídas. Certamente, do ponto de vista do Departamento Florestal se tratava de pessoas em uma atividade ilegal inconstitucional e o departamento se limitava a cum­prir o Estado de Direito (sua exploração sexual das mulheres foi um bô­nus adicional acrescentado à dificuldade da empresa).

Incentivados pela participação do povo nessas lutas, o partido decidiu ir para o confronto com o Departamento Florestal. Ele encorajou o povo a ocupar as terras florestais e cultivá-las. O Departamento Florestal retaliou queimando novas aldeias que surgiam na área. Foi a­nun­ciado em 1986 um parque nacional em Bijapur, o que significava a expulsão de 60 aldeias. Mais da metade delas já haviam sido removidas e a construção do Parque Nacional iniciou quando o Partido chegou na região. Demoliu as obras de construção e deteve a expulsão das aldeias restantes. Impediu que o Departamento Florestal entrasse na zona. Em algumas ocasiões, os funcionários foram capturados, atados nas árvores e espancados pelos aldeões. Foi a catárquica vingança por gerações de exploração. Finalmente o Departamento Florestal foi embora. Entre 1986 e 2000, o Partido redistribuiu 300 mil hectares de terras florestais. Hoje em dia – disse o camarada Venu – não há camponeses sem terra em Dandakaranya.

Para a atual geração de jovens, o Departamento Florestal é uma memoria distante, como aquelas histórias que as mães contam a seus filos sobre um pasado mitológico de servidão e humilhação. Para a geração mais velha, libertar-se do Departamento Florestal significou uma verdadeira liberdade. Podia tocar, provar. É algo imensamente mais significativo do que poderia ser a independência da Índia. Começaram a se unir em torno do Partido que havia lutado com eles.

A equipe do esquadrão sete havia percorrido um longo caminho. Sua influência agora se estende por 60 mil quilômetros quadrados de flo­resta, milhares de aldeias e milhões de pessoas.

Mas a saída do Departamento Florestal anunciou a chegada da policía, junto a uma época de derramamento de sangue. Falsos “enfrentamentos” por parte da polícia, emboscadas por parte do GGP. Com a redistribuição da terra vieram outras responsabilidades: a irrigação, a produtividade agrícola e o problema de uma população em expansão que arbitrariamente abre terras na floresta. Se tomou a decisão de separar o “trabalho de massas” e o “trabalho militar”.

Atualmente Dandakaranya é administrada por uma estrutura e­laborada de Janatana Sarkars (governos populares). Os principios de organização provém da Revolução Chinesa e da guerra do Vietnã. Cada Janatana Sarkars é eleito por um grupo de aldeias cuja população conjunta pode ir desde 500 até 5 mil. Possuem nove departamentos: Krishi (agricultura), Vyapar-Udyog (comércio e indústria), Arthik (economia), Nyay (justiça), Raksha (defesa), Hospital (saúde), Jan Sampark (relações públicas), School-Riti Rivaj (educação e cultura) e Floresta. Um grupo de Janatana Sarkars, se inscrevem em um Comitê de Área. Três Comitês de Área constituem uma Divisão. Há dez Divisões em Dandakaranya. “Temos agora um departamento de Proteção da Floresta – disse o camarada Venu – você deve ter lido o informe do governo que diz que as florestas aumentaram nas zonas naxalitas”.

Ironicamente – diz o camarada Venu – os primeiros a se beneficiarem da campanha do Partido contra o Departamento Florestal foram os Mukhiyas (chefes de aldeia), a brigada Dwij. Utilizaram sua força de trabalho e seus recursos para tomar tanta terra quanto podiam, enquanto tudo ia bem. Mas então o povo começou a abordar o Partido com suas “contradições internas”, como curiosamente expõe o camarada Venu. O Partido começou a dirigir sua atenção a questões de equidade, de classes e injustiça na sociedade tribal. Os grandes latifundiários detectaram problemas no horizonte. A medida em que a influência do Partido crescia, eles começaram a decair. Cada vez mais pessoas expunham seus problemas ao Partido ao invés de expô-los aos Mukhiyas. As velhas formas de exploração começaram a ser questionadas. No dia da primeira chuva, tradicionalmente se supunha que o povo iria cultivar primeiro a terra dos Mukhiyas em lugar da própria. Isso acabou, já não se ofereceram mais para os primeiros dias de recolheita de mahua [um tipo de planta que cresce muito e produz uma espécie de azeite] ou outros produtos florestais. Obviamente, algo devia ser feito.

Chegou Mahendra Karma, um dos maiores latifundiários da região e ao mesmo tempo um membro do Partido Comunista da Índia (PCI). Em 1990, reuniu um grupo de Mukhiyas e latifundiários e começou uma campanha chamada Jan Jagran Abhiyan (Campanha Pública Despertar). Sua forma de “despertar” o “público” era formar um grupo de caça com uns trezentos homens para vasculhar a floresta matando o povo, queimando casas e abusando sexualmente das mulheres. O então governo de Madhya Pradesh (Chhattisgarh ainda não havia sido criada) os proporcionou proteção policial. Em Maharashtra, algo similar, de nome “Frente Democrática”, começou seu assalto. O Grupo Guerra Popular respondeu a todos eles ao estilo da guerra popular, executando alguns dos latifundiários mais conhecidos. Em poucos meses, o Jan Jagran Abhiyan, o “terror branco” – de acordo com o termo utilizado pelo camarada Venu – desapareceu. Em 1998, Mahendra Karma, que até então já havia entrado no Partido do Congresso, tratou de reviver o Jan Jagran Abhiyan. Desta vez, fracassou ainda mais rapidamente que antes.

Posteriormente, no verão de 2005, a sorte os favoreceu. Em a­bril, o governo do BJP [Partido do Povo, de corte hinduísta, e muito mais direitista que o Partido do Congresso] em Chhattisgarh firmou dois memorandos de acordo para estabelecer plantas integradas de aço (cujos termos são secretos). Uma de 7 mil crore [um crore equivale a 10 milhões de rupias] com a Essar Steel em Bailadila, e o outro por 10 mil crore com a Tata Steel em Lohandiguda. Nesse mesmo mês o primeiro-ministro Manmohan Singh lançou sua famosa declararação de que os maoístas são “a ameaça mais grave à Segurança Interna” da Índia (foi estranho ele dizer isso nesse momento, porque na realidade aconteceu o oposto. O Governo em Andhra Pradesh acabava de manobrar contra os maoístas, os dizimando. Perderam cerca de 1600 de seus quadros e estavam em completa desordem). A declaração do Primeiro-Ministro fez o valor das ações das empresas de mineração subir. Também enviou um sinal para a mídia que os maoístas eram um jogo limpo para qualquer um que decidisse ir atrás deles. Em junho de 2005, Mahendra Karma convocou reunião secreta de Mukhiyas na aldeia de Kutroo e anunciou o Salwa Judum (caça de purificação), uma mescla encantadora de terrenaliudade tribal e sentimento Dwij/nazista. Diferente da Jan Jagran Abhiyan, Salwa Judum foi uma operação de limpeza destinada a remover os povos de suas aldeias para acampamentos próximos das estradas, onde poderiam ser vigilados e controlados. Em termos militares, se chama aldeias estratégicas. Foram idealizadas pelo general Sir Harold Briggs em 1950, quando os ingleses estavam em guerra contra os comunistas na Malásia. O Plano Briggs se popularizou entre o exército indiano, que o aplicou em Nagaland, Mizoram e em Telengana. O Primeiro-Ministro do BJP de Chhattisgarh, Raman Singh, anunciou que no que tangia a seu governo, os aldeões que não se movessem para os acampamentos, se considerariam maoístas. E assim que em Bastar, para um aldeão comum, apenas ficar em sua casa vivendo uma vida comum se converteu no equivalente a se entregar à atividade terrorista.

Junto a uma xícara de aço com chá negro, como presente especial, alguém me entrega um par de fones de ouvido e liga um pequeno reprodutor MP3. É uma gravação do Sr. D.S. Manhar, então Superintendente da Polícia de Bijapur, informando por rádio a um funcionário subalterno sobre recompensas e incentivos que o Estado e o Governo Central oferecem às aldeias “jagrit” (as que eles ‘despertaram”), e para as pessoas que estão de acordo com se transferir para os acampamentos. Em seguida, dá instruções precisas de que as aldeias que se neguem a “ceder” devem ser queimadas e os jornalistas que desejam cobrir os na­xalitas devem ser fuzilados no ato (eu havia lido sobre isso nos jornais um tempo atrás. Quando a polícia tornou pública, como castigo – não está claro para quem -, o Superintendente foi transferido para a Comissão Estatal de Direitos Humanos).

A primeira aldeia que Salwa Judum incendiou (no dia 18 de ju­nho de 2005) foi Ambeli. Entre junho e dezembro de 2005 incendiaram, mataram, violaram e saquearam em seu caminho cerca de centenas de aldeias do Sul de Dantewara. O centro de suas operações foram os distritos de Bijapur e Bhairamgarh, perto de Bailadila, onde se projetava a nova planta de Essar Steel. Não é coinciência que esses também foram bastiões maoístas, onde os Janatana Sarkars haviam feito um grande trabalho, principalmente na construção, principalmente na construção de estruturas de recoleta de água. Os Janatana Sarkars se converteram no alvo principal dos ataques de Salwa Judum. Centenas de pessoas morreram da forma mais brutal. Cerca de 70 mil pessoas se transferiram para os acampamentos, alguns voluntariamente, outros pelo terror. Destes, cerca de três mil foram nomeados. Oficiais da Polícia Especial com um salário de 1500 rupias por mês.

Por estas migalhas miseráveis, os jovens, como o irmão de Nilesh foram condenados a prisão perpétua em um recinto de arame farpado. Crueis como foram, poderiam terminar sendo as piores vítimas dessa terrível guerra. Nenhuma das sentenças do Tribunal Supremo que ordena o desmantelamento de Salwa Judum pode mudar seu destino. Os centenas de milhares de pessoas restantes saíram do radar do governo (mas não os fundos de desenvolvimento destinados a estes 644 povos. O que acontece com essa pequena mina de ouro?). Muitas dessas pessoas se dirigiram para Andhra Pradesh e Orissa, onde geralmente voltam para trabalhar como mão de obra durante a temporada de recolheita de pimentão. Mas dezenas de milhares de pessoas voltaram à selva, onde ainda permanecem, vivendo sem abrigo e voltando a suas terras e famílias apenas durante o dia.

Na esteira de Salwa Judum apareceu um enxame de delegacias e quarteis policiais. A ideia era fornecer um cordão de isolamento para “reocupar” os territórios controlados pelos maoístas. Se supunha que os maoístas não se atreveriam a atacar uma grande concentração de forças de segurança. Os maoístas, por sua vez, se deram conta de que não romperem o cordão de isolamento equivaleria a abandonar o povo cuja confiança haviam conquistado e com quem haviam vivido e trabalhado durante 25 anos. Se devolveu o golpe em uma série de ataques no coração da rede de segurança.

Em 26 de janeiro de 2006, o EGLP atacou o acampamento da polícia de Gangalur e matou sete pessoas. Em 17 de julho de 2006, o a­campamento de Salwa Judum em Erabor foi atacado, 20 pessoas morreram e 150 foram feridos (é possível que se tenha lido a respeito: “Os maoístas atacaram o acampamento de refugiados que havia sido criado pelo governo do Estado para proporcionar moradia a quem fugiam de suas aldeias, produto do terror desatado pelos naxalitas”). Em 13 de de­zembro de 2006, atacaram o “acampamento de socorro” de Basaguda e mataram três oficiais da polícia especial e um delegado. Em 15 de março de 2007 ocorreu o mais audaz de todos os ataques: 120 guerrilheiros do EGLP atacaram o ashram de Rani Bodili Kanya, um albergue de meninas que havia sido transformado em quartel policial para 80 efetivos de Chhattisgarh (e agentes da polícia especial) enquanto as meninas viviam ali como escudos humanos. O EGLP entrou no recinto, isolou o edifício anexo que viviam as meninas e atacaram os quarteis, 55 policiais e agentes especiais foram aniquilados. Nenhuma das meninas se feriu (o sincero Superintendente da Polícia de Dantewara havia me mostrado sua apresentação em Power Point com fotos assustadoras dos destroços do prédio da escola que foi detonado. Era tão macabro que era impossível não olhar para o outro lado. Ele observou satisfeito minha reação). O ataque a Rani Bodili causou um alvoroço no país. Organizações de Direitos Humanos condenaram os maoístas não apenas por sua violência, mas também por sua posição anti-educação e pelo ataque às escolas. Mas em Dandakaranya, o ataque a Rani Bodili se converteu em lenda: can­ções, poemas e obras foram escritas sobre ele.

A contra-ofensiva maoísta rompeu com o cordão de isolamento e deu ao povo um respiro. A polícia e o Salwa Judum se retiraram dos seus acampamentos, e agora surgem apenas em grupos de 300 ou 1000 – em geral no meio da noite – para levar a cabo operações de isolamento e busca nas aldeias. Pouco a pouco, com exceção da polícia Especial e suas famílias, o resto do povo nos campos de Salwa Judum começou a voltar a suas aldeias. Os maoístas os deram boas vindas por seu retorno e anunciaram que inclusive oficiais de polícia especial poderiam voltar se realmente se arrependessem publicamente das suas ações. Os jovens começaram a entrar em bando para o EGLP (O EGLP se constituiu formalmente em dezembro de 2000. Nos últimos 30 anos, seus destacamentos armados se estenderam gradualmente até constituir seções, as seções se converteram em pelotões, e os pelotões em companhias. Mas depois das depredações ao Salwa Judum, o EGLP rapidamente foi capaz de alcançar a força de batalhão). Salwa Judum não só havia fracassado, havia fracassado veementemente. Como agora sabemos, não foi apenas uma operação local de pouca importância. Sem importar a linguagem ambígua da imprensa, Salwa Judum foi uma operação conjunta do Governo do Estado de Chhattisgarh e do Partido do Congresso, que estava no poder central. Não podiam se permitir um fracasso.

Não quando todos os memorandos de acordo estavam esperando, como buquês murchando no mercado matrimonial. O Governo ficou muito pressionado para desenvolver um novo plano e assim surgiu a Operação Caça Verde. Os oficiais de Polícia Especial de Salwa Judum agora se chamam Comandos Koya. Se desdobrou na Força Armada Chhattisgarh (CAF), a Força de Polícia de Reserva Central (CRPF), a Força de Segurança Fronteiriça (BSF), a Polícia de Fronteira Indo-Tibetana (ITBP), a Força de Segurança Industrial Central (CISF), os Grey Hounds (cães de caça), Escorpiões, Cobras e uma política que chamam carinhosamente de WHAM, Winning Hearts and Minds – ganhando corações e mentes.

Guerras importantes frequentemente se desenvolvem em lugares inesperados. O capitalismo de livre-mercado derrotou o comunismo soviético nas sombrias montanhas do Afeganistão. Aqui, nas florestas de Dantewara, se trava uma batalha pela alma da Índia. Muito se falou da profunda crise na democracia da Índia e o conluio entre as grandes corporações, os principais partidos políticos e as forças de segurança. Se alguém quiser dar uma espiadinha rápida, Dantewara é o lugar.

Um esboço de relatório sobre Relações Agrárias do Estado e a Inconclusa Tarefa da Reforma Agrária (Volume 1) indica que Tata Steel e Essar Steel foram quem financiaram a primeira aparição de Salwa Judum. Posto que se trata de um relatório do Governo, criou um frenesí quando foi apresentado na mídia (ese fato foi eliminado do relatório final; foi um erro legítimo ou alguém recebeu uma bronca?).

Em 12 de outubro de 2009 devia se celebrar a audiência pública de resolução para a planta siderúrgica de Tata em Lohandiguda, onde os povos locais poderiam ir, mas na verdade ocorreu em uma sala pequena no interior da Receptoria de Jagdalpur, a quilômetros de distância, isolada com extrema segurança. Um público contratado de 50 membros das tribos foi levado em uma escolta de jipes do governo. Depois da reunião, o receptor do Distrito felicitou “o povo de Lohandiguda” por sua colaboração. Os jornais locais informaram a mentira apesar de que conheciam bem (os patrocinadores os contrataram). Em que pese objeções dos aldeões, a aquisição de terrenos para o projeto havia começado.

Os maoístas não são os únicos que visam derrubar o Estado indiano. Este já foi deposto em várias ocasiões pelo fundamentalismo hin­du e pelo totalitarismo econômico.

Lohandiguda, a cinco horas de Dantewara, nunca foi uma zona naxalita, mas agora é. A camarada Joori, que estava sentada a meu lado enquanto comia o chutney de formigas, trabalha na zona. Disse que decidiram ir para lá depois que algumas pichações começaram a aparecer nas paredes das casas da aldeia dizendo “Naxali Ao, Hamein Bachao” (Naxalitas, venham nos salvar!). Faz uns meses que Vimal Meshram, presidente da aldeia Panchayat foi assassinado a tiros no mercado. “Era um homem da Tata”, disse Joori. “Ele obrigava o povo a abandonar suas terras e aceitar a indenização. É bom que ele tenha sido aniquilado. Perdemos um companheiro também, atiraram nele. Quer mais Chapoli?”. Ela só tem 20 anos. “Não vamos permitir que Tata chegue ali. O povo não quer eles”. Joori não é do EGLP, está no Chetna Natya Manch (CNM), ala cultural do Partido. Ela canta, escreve músicas. É de Abhuj­mad (está casada com o camarada Madhav, se apaixonou por sua voz quando visitou sua aldeia junto de uma tropa do CNM).

Sinto que devo dizer algo nesse momento. Sobre a inutilidade da violência, sobre o inaceitável das execuções sumárias. Mas, o que devo sugerir fazer? Ir para os tribunais? Fazer um dharna [protesto pacífico] em Jantar Mantar, em Nova Delhi? Uma marcha? Uma greve de fome? Soa ridículo. Aos promotores da Nova Política Econômica – a quem resulta muito fácil dizer “Não há Alternativa” – deve se pedir a eles que sugiram uma Política de Resistência alternativa. Uma específica para esse povo em particular, nessa floresta específica. Aqui, agora. Em qual partido deveriam votar? Em qual instituição democrática do país deveriam recorrer? Qual porta o Narmada Bacho Andolam não entrou durante os longos anos que lutou contra as grandes represas sobre o Narmada?

Está escuro. Tem muita atividade no campo, mas não posso ver nada. Apenas os pontos de luz que se movem ao redor. É difícil dizer se são estrelas, pirilampos ou maoístas em movimento. O pequeno Mangtu aparece do nada. Me inteirei de que ele pertence a um grupo de dez jovens que formam parte da primeira jornada das Escolas Móveis das Juventudes Comunistas, onde se ensina a ler e escrever e os instrui nos princípios básicos do comunismo (“A doutrinação das mentes jovens!”, como clamam nossa mídia corporativa. Os anúncios de televisão que fa­zem lavagem cerebral nas crianças antes que possam pensar não são vistos como uma forma de doutrinação). Os jovens comunistas não estão autorizados a portar armas ou usar uniformes. Mas veem os esquadrões do EGLP com estrelas nos olhos, como fãs de uma banda de rock.

Mangtu é muito cortês comigo. Ele encheu minha garrafa d’água e disse que devo fazer minhas malas. Soa um apito. A tenda de jhilli azul é desmantelada e dobrada em cinco minutos exatos. Outro assovio e cen­tenas de camaradas se alinham em fileiras. Cinco fileiras. O camarada Raju é o Diretor de Operações. Há um chamado de atenção. Estou na fila gritando também meu número quando a camarada Kanla, que está na mina frente, me instruí (contamos até vinte e depois começamos pelo um, porque ese é o máximo que a maioria dos gons sabe contar. Vinte é suficiente para eles. Talvez devesse ser suficiente para nós). Chandu veste uniforme agora, e leva uma metralhadora. Em um tom de voz baixo, o camarada Raju instrui o grupo. Tudo é em gondi, não entendo nada, mas consigo entender a palabra RV. Mais tarde Raju me disse que significa “Rendezvous” [local de reunião]. É uma palavra gondi agora. “Fazemos pontos RV para que, caso nos encontrarmos sob artilharia e devamos nos dispersar, todos saibamos onde nos reagrupar”. Não podem imaginar o tipo de pânico que isso induz em mim. Nõ porque medo de ser alvo, mas porque tenho medo de me perder. Sou disléxica em direção, posso me perder entre minha sala e meu banheiro. O que vou fazer em 60 mil quilômetros quadrados de floresta? Faça chuva ou faça sol, vou me segurar do pallu [vestido] do camarada Raju.

Antes de começar a caminhar o camarada Venu se aproxima de mim: “Estamos preparados, camarada. Com sua permissão”. Estou surpresa. Ele parece um pequeno mosquito com chapéu de lã e chappals [um tipo de sapato semelhante à sapatilha], rodeado de suas escoltas, três mulheres, três homens, fortemente armados. “Estamos muito agradecidos a você camarada, por vir até aqui”, disse. Uma vez mais o aperto de mãos, punho cerrado, “Lal Salaam camarada”. Some na floresta, o Guardião das Chaves. Em um momento é como se nunca estivesse aqui. Estou um pouco desconsolada, mas tenho horas de gravações para escutar. E como os dias se convertem em semanas, vou conhecer muitas pessoas que pintaram com cores e detalhes a rede que desenhou para mim. Começamos a andar na direção oposta. O camarada Raju, que fede analgésicos a uma milha de distância, diz com sorriso alegre: “Já não sinto meus joelhos. Só posso caminhar se tomo um punhado de remédios”.

O camarada Raju fala perfeitamente o hindi e tem uma forma inexpressiva de contar as histórias mais divertidas, Ele trabalhou como advogado em Raipur durante 18 anos. Tanto ele como sua esposa, Malti eram membros do Partido e parte do seu núcleo urbano. Nos fins de 2007, uma das pessoas chave na rede de Raipur foi presa, torturada e finalmente se converteu em informante. Foi conduzido ao redor de Raipur em um veículo policial fechado e forçado a delatar seus antigos companheiros. A camarada Malti foi uma delas. Em 22 de janeiro de 2008, foi presa junto com vários outros. A principal acusação contra ela é que enviou a vários deputados do Parlamento uns CDs que continham provas em vídeo das atrocidades do Salwa Judum. Seu caso dificilmente dará lugar a uma audiência dado que a polícia sabe que seu caso é débil, mas a nova Lei de Segurança Pública Especial de Chhattisgarh permite à polícia detê-la sem direito à fiança durante vários anos. “Agora o Governo estendeu vários batalhões de polícia de Chhattisgarh para proteger aos pobres membros do Parlamento de sua própria correspondência”, disse o camarada Raju. Ele não foi preso porque estava em Dandakaranya no momento, assistindo a uma reunião. Está aqui desde então. Seus dois filhos que ficaram sozinhos em casa foram interrogados intensamente pela polícia. Para encerrar, fizeram as malas e foram morar com um tio.

O camarada Raju recebeu noticias deles pela primeira vez penas umas semanas atrás. O que lhe dá essa força, essa capacidade de se manter em seu humor ácido? O que mantêm a todos em marcha, apesar de tudo que sofreram? Sua fé e sua esperança, seu amor pelo Partido. Eu o encontrei uma e outra, nas formas mais íntimas, mais profundas.

Não estamos nos movendo em fila única agora, eu e uma centena de “violentos sem sentido”, “insurgentes sedentos de sangue”. Dei uma olhada ao redor do acampamento antes de irmos. Não há sinais de que quase uma centena de pessoas acampou ali, com exceção de algumas cinzas onde havia fogo. Esse exército é incrível. No que tange o consumo, são mais gandhistas do que o próprio Gandhi e tem uma emissão de carbono menor que qualquer evangelista da mudança climática. Até tem um enfoque gandhiano para a sabotagem e, por exemplo, antes de queimar uma viatura da polícia, o desmantelam e cada parte é despeda­çada. O volante é nivelado e se converte em um bharmaar [escopeta caseira], o estofamento é retirado e utilizado para bolsas de munições, a bateria vira carga solar (as novas instruções do alto comando são que os veículos capturados sejam enterrados e não queimados. Assim podem ser revividos quando for necessário). Me pergunto se devo escrever uma obra: “Gandhi, pegue sua arma”. Ou seria linchada?

Estamos andando em total escuridão e silêncio. Eu sou a única que usa uma lanterna, apontada para baixo de forma que tudo que posso ver no círculo de luz são os calcanhares expostos da camarada Kamla em seus chappals negros listrados, me mostrando exatamente onde por meus pés. Ela leva dez vezes mais peso que eu, sua mochila, um fuzil, uma enorme bolsa de mantimentos sobre sua cabeça, uma das panelas grandes e dois grandes bolsos cheios de verduras. A bolsa em sua cabeça está perfeitamente equilibrada, e pode subir ladeiras e caminhos pelas pedras escorregadias sem sequer tocá-las. Ela é um milagre. É uma longa caminhada. Estou muito agradecida pela lição de história porque aparte de todo o demais, deu a meus pés um descanso de um dia inteiro.

É a coisa mais bela, andar na floresta à noite. Farei isso noite seguida de noite.

Vamos uma comemoração do centenário da rebelião Bhumkal de 1910, quando os Koyas se insurgiram contra os britânicos. A palavra Bhumkal significa movimento, rebelião. O camarada Raju disse que andamos vários dias para nos juntar à celebração. A floresta deve estar chei­a de gente se movendo. Há comemorações em todas as divisões de DK. Somos privilegiados porque o camarada Leng, o mestre de cerimônias, está andando conosco. Leng, em língua Gondi, significa “a voz”. O camarada Leng é um homem alto de idade mediana, de Andhra Pradesh. É colega do lendário e querido poeta-cantor Gadar, que em 1972, fundou a organização cultural radical Jan Natya Manch (JNM). Com o tem­po, JNM se converteu em parte formal do GGP e em Andhra Pradesh se podia convocar audiências numerosas de dezenas de milhares. O camarada Leng entrou em 1977 e se converteu em um cantor famoso por mérito próprio. Viveu em Andhra durante a pior repressão, a época dos “confrontos” – assassinatos em que morreram amigos quase todos os dias. O mesmo foi preso uma noite em sua cama de hospital, por uma mulher Superintendente de Polícia que se passou por médica. Foi levado para a floresta longe de Warangal para o “confronto”. Mas com muita sorte – disse o camarada Leng – Gadar recebeu a notícia e conseguiu levantar um alerta. Quando em 1998 o GGP decidiu iniciar uma organização cultural em Dandakaranya, o camarada Leng foi enviado para dirigir o Chetana Natya Manch (CNM). E agora está aqui, caminha comigo vestindo uma camisa verde oliva, e por algum motivo, pijama de cor púrpura com coelhinhos rosas nele. “Há 10 mil membros no CNM hoje”, me disse. “Temos 500 músicas, em hindi, Gondi, Chhattisgarhi e Halbi. Imprimimos um libro com 140 de nosss músicas. Todos escrevem canções.” A primeira vez que falei com ele, sua voz soava muito séria, muito determinada. Mas días depois, sentado ao redor de uma fogueira, ainda em seu pijama, nos falou do exitoso e influente diretor do filme Telugu (um amigo seu), que sempre interpretava um naxalita em seus próprios filmes. “Lhe perguntei” – disse o camarada Leng em seu adorável hindi com sotaque Telugu – “por que acredita que os naxalitas são sempre assim?”, e improvisou uma hábil caricatura de um homem agachado, dando passos largos, com sensação de se sentir observado, que sai da floresta com um fuzil AK-47, e nos fez gargalhar alto.

Não estou certa se estou ansiosa para celebrações de Bhumkal. Temo que verei as danças tribais tradicionais endurecidas pela propaganda maoísta e discursos entusiastas retóricos diante de uma audiência obediente com olhos vidrados. Chegamos à base bem tarde da noite. Foi erguido um monumento temporal com andaimes de bambu encoberto por um pano vermelho. Na parte superior, em cima da foice e martelo do Partido Maoísta, está o arco e flecha dos Janatana Sarkar cobertos em papel de prata. Adequada, a hierarquia. O cenário é enorme, tem­porário, sobre um resistente andaime coberto por uma capa grossa de argamassa de barro. Já há pequenas fogueiras espalhadas pelo solo, o povo come­çou a chegar e cozinha seu jantar, não são mais que sombras na escuridão. Seguimos nosso caminho através delas (lalsalaam, lalsalaam, lalsalaam) e seguimos marchando por uns quinze minutos até que entramos novamente na floresta.

Em nosso novo acampamento devemos nos reunir novamente. Outro chamado de atenção é a continuação das instruções sobre as posições de guarda e “arcos de fogo” – decisões sobre quem cobrirá qual zona em caso de ataque da polícia. Os pontos RV se fixam novamente.

Um posto avançado já havia chegado e preparado o jantar. Para sobremesa, Kamla me traz uma goiaba selvagem que pegou no caminho e sigilosamente guardou para mim.

Desde o amanhecer, se vê mais e mais pessoas se reunindo para a comemoração do dia. Há um murmúrio de entusiasmo que se levanta. As pessoas que não se viam em muito tempo se juntam de novo. Podemos escutar o som dos microfones sendo testados. Bandeiras, murais, pôsteres, estão sendo levantados. Se instalou também um mural com as fotos das 5 pessoas que foram mortas em Ongnaar no dia que chegamos.

Estou tomando chá com a camarada Narmada, a camarada Ma­a­se e a camarada Rupi. A camarada Narmada fala dos muitos anos que trabalhou em Gadchiroli antes de se converter em chefa do Krantikari Adivasi Mahila Sanghathan (KAMS) em Dandakaranya. Rupi e Maase foram militantes urbanas em Andhra Pradesh e me contam dos longos anos de luta das mulheres dentro do Partido, não apenas pos seus direitos, mas também para o Partido ver que a igualdade entre homens e mu­lheres é fundamental para um sonho de uma sociedade justa. Falamos dos anos 70 e das histórias das mulheres dentro do movimiento naxalita que se desiludiram com os companheiros de sexo masculino que se viam como grandes revolucionários, mas caiam no mesmo velho patriarcado, no chauvinismo de sempre. Maase disse que as coisas mudaram muito desde então, embora ainda tenham muito caminho a percorrer (todavia não há mulheres no Comitê Central do Partido e no Politburo).

Próximo do meio-dia chega outro contingente do EGLP. Esse é dirigido por um homem alto, esbelto, de aspecto jovem. Esse camarada tem dois nomes – Sukhdev e Gudsa Usendi – nenhum deles é seu nome verdadeiro. Sukhdev é nome de um camarada muito querido que foi e­xecutado (nesta guerra, apenas os mortos estão suficientemente seguros para usar seus nomes reais). Quando à Gudsa Usendi, muitos companheiros foram Gudsa Usendi em um momento ou outro (uns meses trás era o camarada Raju). Gudsa Usendi é nome do porta-voz do Partido para Dandakaranya. Assim, mesmo que Sukhdev passasse o resto da viagem comigo, não tenho ideia em como poderia encontrá-lo de novo. No entanto, poderia reconhecer sua risada em qualquer lugar. Ele chegou a DK em 1988 – disse – quando GGP decidiu enviar ali um terço de suas forças de Telengana do Norte. Ele se veste bem de “civil” (termo Gondi para a vestimenta comum) e não usa o “vestido” (o “uniforme” maoísta) e poderia se passar por um jovem executivo. Perguntei a ele por que não usa uniforme. Disse que estava de viagem e acabou de voltar de Keshkal Ghats perto de Kanker. Há relatos de depósitos de bauxita – 3 milhões de toneladas – em que uma empresa chamada Vedanta tem colocado sob sua mira.


Bingo! Dez de dez para meus instintos.

Sukhdev disse que foi para lá para medir a temperatura das aldeias. Para ver se estavam dispostas a lutar. “Eles querem destacamentos agora. E armas”. Vira para trás e solta uma gargalhada. “Eu lhes disse que não é tão fácil, bhai [irmão]”. A partir dos fios soltos de conversa e a facilidade com que leva sua AK-47, posso dizer que também faz parte do topo da hierarquia e do EGLP.

O correio da floresta chega. Há um biscoito para mim! É do ca­marada Venu. Em um pequeno pedaço de papel, dobrado e redobrado, ele escreveu a letra de uma música que me prometeu que enviaria. A camarada Narmada sorri quando lê. Ela conhece essa história. Remonta à década de 1980, na época que a aldeia havia começado a confiar no partido e chegava a ele com seus problemas, suas “contradições internas” como disse o camarada Venu. As mulheres estavam entre as pri­meiras a chegar. Uma noite, uma anciã sentada junto ao fogo se levantou e cantou uma música para o registro de Dada. Pertencia à tribo Maadiya, onde era costume para as mulheres tirar a roupa e ficar com o corpo nu depois de se casar.

Taane tasom intor Dada, Dakoniley

Bata Papam kittom Dada, Dakoniley

Duniya kadile maata Dada, Dakoniley

Eles dizem que nós não podemos deixar nossas blusas,

Dada, Dakoniley

Nos fazem tirá-la, Dada,

Como pecamos, Dada?

O mundo mudou, Dada.

Aatum hatteke Dada, Dakoniley

Aada nanga dantom Dada, Dakoniley

Id pisval Manni Dada, Dakoniley

Mava koyaturku vehat Dada, Dakoniley

Mas quando vamos ao mercado, Dada,

Temos que ir seminuas, Dada,

Não queremos esta vida, Dada,

Diga isso a nossos antepassados, Dada.

Esse foi o primeiro problema feminino contra o qual o Partido decidiu empreender uma campanha. Tinha que ser manejado com delicadeza, de maneira cirúrgica. Em 1986, se constituiu o Adivasi Mahila Sanghatana (AMS), que se converteu no Krantikari Adivasi Mahila Sangathan (KAMS) e agora possui 90 mil integrantes. Poderia muito bem ser a maior organização de mulheres do país (são todas maoístas, certamente, todas as 90 mil. Todas serão “eliminadas”? E os 10 mil membros do CNM? Eles também?). As campanhas de KAMS se levantam contra as tradições adivasi do casamento forçado e o sequestro, contra o costume de que durante a menstruação, as mulheres vivam fora da aldeia em uma cabana na floresta, contra a violência doméstica e a bigamia. Não ganharam todas suas batalhas, mas então o que as feministas conseguiram? Por exemplo, em Dandakaranya, até hoje em dia, as mulheres não podem semear sementes. Em reuniões do Partido, os homens concordaram que é injusto e deve acabar, mas na prática simplesmente não deixam. Assim, o Partido decidiu que as mulheres semeassem sementes nas terras comunais, que pertence ao Janatana Sarkar. Nessa terra elas plantam as sementes, cultivam vegetais e constroem diques de conten­ção. Uma meia vitória, não uma completa.

À medida que a repressão policial cresceu em Bastar, as mulheres do KAMS se converteram em uma força formidável e mobilizam centenas, às vezes milhares de pessoas para confrontar fisicamente a polícia. O fato de que o KAMS existe mudou radicalmente as atitudes tradicionais e se aliviam muitas das formas tradicionais de discriminação contra a mulher. Para muitas jovens, a adesão ao Partido, em particular ao EGLP, se converteu em uma forma de escapar da asfixia da sua pró­pria sociedade. A camarada Sushila, antiga membra do KAMS nos fala sobre a selvageria de Salwa Judum contra as mulheres do KAMS. Ela dis­se que um de seus lemas era Hum Do Bibi layenge! Layenge! (Vamos tomar duas esposas! O faremos!). Muitas das violações e a bestial mutilação sexual era dirigida contra as mulheres do KAMS. Muitas mulheres jovens que foram testemunha da barbárie se juntaram ao EGLP e agora as mulheres representam 45% dos seus quadros. A camarada Narmada chama algumas delas e em um momento elas se juntam a nós.

A camarada Rinki tem o cabelo muito curto, um corte Bob como se diz em Gondi. É corajoso por parte dela, porque aqui “corte Bob” significa “maoísta”. Para a política é prova mais que suficiente para justificar execuções sumárias. A aldeia da camarada Rinki, Korma, foi atacada pelo Batalhão Naga e pelo Salwa Judum em 2005. Nesse momento Rinki fazia parte da milícia do povo. Suas amigas Lukki e Sukki também eram membras do KAMS. Depois de queimar a aldeia, o Batalhão Naga capturou Lukki, Sukki e outra menina, as estupraram e mataram. “Eles as estupraram na grama” – disse Rinki – “mas depois disso já não havia grama”. Se passaram muitos anos, o Batalhão de Naga se foi, mas a polícia ainda chega, todavia. “Vem sempre que precisam de mu­lhe­res ou de galinhas”. Ajitha também tem um corte Bob. Salwa Judum chegou a Korseel, sua aldeia, e matou três pessoas afogando-nas em uma nallah [cisterna]. Ajitha estava com a milícia e seguiu o Judum a certa dis­tância até um lugar perto da aldeia chamada Paral Nar Todak. Ela os viu violar seis mulheres e atirar na garganta de um homem.

A camarada Laxmi que é uma bela menina com uma longa trança, me disse que ela viu o Judum queimar 30 casas em sua aldeia Jojor. “Não tínhamos armas nessa aldeia na época – disse ela – não podíamos fazer nada, senão observar”. Entrou no EGLP pouco depois. Laxmi foi parte dos 150 guerrilheiros que caminharam pela floresta por três meses e meio em 2008, até Nayagarh em Orissa [é capital desse departamento], para assaltar um arsenal da polícia onde capturaram 1200 fuzis e 200 mil cartuchos de munições.

A camarada Sumitra se uniu ao EGLP em 2004, antes de Salwa Judum iniciarem seu assalto. Se uniu, disse ela, porque queria escapar de sua casa. “As mulheres são controladas em todos os sentidos”, me disse. “Em nossa aldeia, as meninas não podiam subir nas árvores, e se o fizessem, tinham que pagar uma multa de 500 rupias, ou uma galinha. Se um homem batesse em uma mulher e ela revidasse, essa tem que dar uma cabra para a aldeia. Os homens vão juntos às montanhas durante meses para caçar. Não se permite que as mulheres cheguem perto de um animal morto, a melhor parte da carne vai aos homens. Tampouco elas podem comer ovos”. Bons motivos para ingressar em um exército guerrilheiro?

Sumitra conta a história de duas de suas amigas, Telam Parvati e Kamla, que trabalharam com o KAMS. Telam Parvati vem da aldeia Polekaya em Bastar do Sul. Como todos que vem de lá, ela também viu o Salw Judum queimar sua aldeia. Então se uniu ao EGLP e foi trabalhar nos Ghats de Keshkal. Em 2009 ela e Kamla acabavam de organizar as celebrações do 8 de Março, Dia da Mulher, na zona. Estavam juntas em um pequena cabana, nos arredores de uma aldeia chamada Vadgo. A po­lícia cercou a cabana à noite e começou a atirar. Kamla revidou os tiros, mas foi abatida. Parvati escapou, mas foi encontrada e assassinada no dia seguinte.

Isso é o que aconteceu no Dia da Mulher no ano passado. E a­qui está um informe da mídia de um jornal nacional sobre o Dia da Mulher desse ano: ‘Rebeldes de Bastar fazem um ataque pelos direitos da mulher’. Sahar Khan, Mail Today, Raipur, 7 de março de 2010. “O governo poderia ter suprimido todas as restrições para combater a amea­ça maoísta no país. Mas parte dos rebeldes em Chhattisgarh tem assuntos mais urgentes na mão do que a sobrevivência. Com o Dia Internacional da Mulher batendo na porta, os maoístas na região do Estado de Bastr chamaram uma semana de ‘celebrações’ para defender os direitos da mulher. “Também colocaram posters em Bijapur, distrito de Bastar. O chamado dos autoproclamados camponeses dos direitos da mulher deixou a polícia do Estado atónita. O inspetor-geral de Bastar T.J. Longkumer disse “nunca havia visto um chamamento desse tipo da parte dos naxalitas, que só acreditam na violência e no derramamento de sangue”.

E prosseguindo, o informe continua dizendo: “acredito que os maoístas estejam tentando neutralizar nossa altamente vitoriosa Jan Jagran Abhiyaan (campanha para conscientizar as massas). Começamos a campanha em curso com o objetivo de ganhar apoio popular para a O­peração “Caça Verde”, que foi lançada pela polícia para erradicar os extremistas de esquerda”, disse o inspetor geral. Esse coquetel de malícia e ignorância não é incomum. Gudsa Usendi, encarregado da imprensa do Partido conhece mais sobre isso do que a maioria das pessoas. Seu pequeno computador e gravador de MP3 estão cheios de declarações de imprensa, desmentidos, correções, literatura do Partido, listas dos mortos, clipes de televisão, de áudio e vídeos. “O pior de ser Gudsa Usendi” – disse – “é emitir esclarecimentos que nunca são publicados. Poderíamos fazer um livro grande com nossos esclarecimentos inéditos sobre as mentiras que dizem sobre nós”. Fala sem nenhum traço de indignação, e até com certa alegria.

“Qual a acusação mais ridícula que tiveram que negar?”

Pensa de novo. “Em 2007, tivemos que emitir um comunicado dizendo “Nahi bhai, humney gai ko hathode say mara nahin” (Não, ir­mão, não matamos as vacas com martelos). Em 2007, o Governo de Raman Singh anunciou um Gai Yojana (Projeto Vaca) como promessa eleitoral, uma vaca para cada adivasi. Um dia os canais de televisão e os jornais informaram que naxalitas haviam atacado um rebanho de vacas e as espancaram até a morte – com martelos –, porque eram anti-hindus, anti-BJP. Você pode imaginar o que aconteceu. Emitimos um comunicado desmentindo, quase ninguém o reproduziu. Mais tarde vimos que o homem que havia dado as vacas para redistribuí-las era um charlatão. As vendeu e disse que nós havíamos o pego em uma emboscada e matado as vacas”.

E a mais grave?

“Ah, há dezenas, eles levam a cabo uma campanha apesar de tudo. Quando surgiu o Salwar Judum, no primeiro atacaram uma aldeia chamada Ambeli, a incendiaram completamente e depois todos eles, oficiais da Polícia Especial, o Batalhão Naga, a polícia, foram para Kotrapal, você deve ter ouvido falar de Kotrapal. É uma aldeia famosa, a incendiaram 22 vezes por se recusar a se render. Quando a Judum chegou a Ko­trapal, nossa milícia estava no aguardo. Haviam preparado uma emboscada, dois oficiais de Polícia Especial morreram. A milícia capturou sete efetivos, o resto fugiu. No dia seguinte, todos os jornais relataram que os naxalitas haviam massacrados adivasis pobres. Alguns disseram que ha­vía­mos matados centenas de pessoas. Até mesmo uma revista respeitável como a Frontline disse que havíamos matado 18 adivasis inocentes. Até K. Balagopal, o ativista de direitos humanos que geralmente é criterioso com os fatos, repetiu a mesma coisa. Enviamos um esclarecimento, ninguém o publicou. Mais tarde, em seu livro, Balagopal reconheceu seu erro. Mas, quem noticiou?

Eu perguntei o que ocorreu com as sete pessoas que foram capturadas. “O Comitê de Área convocou um Jan Adalat (Tribunal Popular). Quatro mil pessoas assistiram e escutaram a história completa. Dois dos Policiais Especiais foram condenados à morte. Cinco foram advertidos e os deixaram ir. O povo decidiu. Até com os infiltrados – que estão se convertendo em um grande problema hoje em dia – escutamos o caso, as histórias, as confissões e falamos “Iska hum risk nahin le sakte” (Não estamos dispostos a assumir o risco de confiar nessa pessoa) ou “Iska risk hum lenge” (Estamos dispostos a assumir o risco de confiar nes­sa pessoa). A imprensa sempre relata sobre seus informantes que são assassinados, mas nunca sobre os muitos que deixamos ir embora, nunca sobre as pessoas que esses infiltrados haviam assassinado. Assim todos pensam que é um processo sedento de sangue onde todo mundo sempre é assassinado. Não se trata de vingança, se trata de sobreviver e salvar vidas futuras... Certamente há problemas, cometemos erros terríveis, inclusive matamos as pessoas erradas em nossas emboscadas, pensando que eram policiais, mas não da forma que é retratado na mídia”.

Os temidos Tribunais Populares. Como podemos aceitá-los? Ou aprovar essa forma de justiça rápida?

Do outro lado, e quanto aos falsos “confrontos” – a pior forma de justiça sumária – que significa medalhas de honra para policiais e soldados, prêmios em efetivos e promoções do Governo da Índia? Quanto mais matam, mais os recompensam. Os chamam de “Bravehearts” [Corações Valentes], os “especialistas em confrontos”. Nós que nos atrevemos a questioná-los somos chamados de “Antinacionais”. E quanto ao Tribunal Supremo que admitiu descaradamente que não tinha provas suficientes para condenar à morte Mohammed Afzal (acusado do ataque ao Parlamento em dezembro de 2001), mas o fez de qualquer forma porque a “consciência coletiva da sociedade só ficará satisfeita se a pena de morte for imposta sobre o condenado”.

Ao menos no caso do Jan Adalat de Kotrapal, o Coletivo estava fisicamente presente para tomar sua própria decisão. Não foi tomada por juízes que há muito tempo perderam o contato com a vida comum, presumindo falar em nome de um Coletivo ausente. Me pergunto que o povo de Kotrapal devia ter feito; chamar a polícia?

O som dos tambores passou a ficar bem alto. É hora de Bhum­kal. Andamos até o lugar e quase não consigo acreditar no que vejo. É um mar de gente, a mais selvagem, gente bonita, vestida das maneiras mais selvagens e formosas. Os homems parecem ter sido mais vaidosos consigo do que as mulheres. Usam chapéus de penas e pinturas em seus rostos. Muitos têm seus olhos pintados e seus rostos cobertos de talco branco. Há muitos milicianos, meninas em saris de cores impressionantes com rifles sobre seus ombros. Há anciãos, meninos e coroas de flores vermelhas que cruzam o céu.

O sol está alto e forte. O camarada Leng e vários dirigentes dos distintos Janatana Sarkars falam. A camarada Niti, uma mulher extraordinária que está no Partido desde 1997, é uma ameaça tão grande para a nação que em janeiro de 2007, mais de 700 policiais cercaram a aldeia de Innar porque ouviram que ela estava ali. A camarada Niti é considerada tão perigosa e está sendo perseguida com tamanho desespero não porque realizou muitas emboscadas (e realizou), mas porque é uma mulher adivasi que é amada pelo povo em cada aldeia e é uma verdadeira inspiração para os jovens. Ela fala com sua AK no ombro (é uma arma com história; a arma de quase todos tem uma história: de quem foi panhada, como e por quem). Um grupo CNM performa uma obra teatral sobre o levante Bhumkal. Os terríveis colonizadores brancos usam chapéu e pa­lha de ouro no cabelo e ameaçam e batem nos adivasis, causando grande alvoroço na plateia. Outra companhia de Gangalaur do Sul interpreta a obra chamada Nitir Judum Pito (História da Caça de Sangue). Joori traduz para mim. É a história de dois anciãos que procuram a aldeia de sua filha. Enqunto caminham pela floresta, se perdem porque tudo está queimado e irreconhecível. Salw Judum queimou até os tambores e os instrumentos musicais. Não há cinzas, já que estava chovendo. Não conseguem encontrar sua filha. Em sua dor, os dois anciãos começam a cantar, e ao escutá-los, a voz da sua filha canta novamente entre as ruínas: o som do nosso povo que foi silenciado, canta. Não há mais batida de arroz nem mais risadas junto ao poço. Não há mais aves, nem cabras balindo. O fio tênue da nossa felicidade se rompeu. Seu pai canta de novo: Minha encantadora filha, não chore hoje. Tudo que nasce tem que morrer. Essas árvores ao redor de nós cairão, as flores florescem e se desvanecem, um dia esse mundo vai envelhecer. Mas por quem morremos? Um dia nossos saqueadores irão aprender, um dia a verdade irá prevalecer, mas nos­so povo não a esquecerá, nem por milhares de anos.

Mais alguns discursos. Depois os tambores e começam as danças. Cada Janatana Sarkar tem sua própria companhia de teatro. Cada companhia preparou sua própria dança. Chegam uma a uma, com enromes tambores e representam histórias selvagens. O único personagem que todos os grupos têm em comum é o Vilão das Mineradoras, com capacete e óculos escuros e em geral fumando um cigarro. Contudo, não tem nada rígido ou mecânico em sua dança. Conforme dançam, a poeira so­be. O som dos tambores se faz ensurdecedor. Pouco a pouco a multidão começa a se agitar e então começam a dançar. Dançam em pequenas linhas de seis ou sete, homens e mulheres separadamente, com os braços ao redor da cintura do outro. Milhares de pessoas. É para isso que vieram. A felicidade se leva muito a sério aqui, na floresta Dandakaranya. O povo deve caminhar muitos quilômetros, durante vários dias para festejar e cantar, para colocar as plumas em seus turbantes e as flores no cabelo, para colocar seus braços ao redor do outro, beber mahua e dançar a noite toda. Ninguém canta ou dança sozinho. Isso, mais do que qualquer outra coisa, assinala seu desafio diante de uma civilização que quer aniquilá-los.

Não posso acreditar que tudo isso ocorre sob os narizes da polícia. Bem no meio da Operação “Caça Verde”.

No começo, os camaradas do EGLP observam os dançarinos, de pé em um canto com suas armas. Mas então, um a um, como os patos que não suportam estar parados na margem do rio vendo os outros patos nadar, se movem e começam a dançar também. Logo há linhas de dançarinos verde oliva girando com todas as outras cores. E depois, à medida que se irmãs e irmãos, pais e filhos e amigos que não se viam faz meses, às vezes anos, se encontram, as linhas se separam e se reformam e o verde oliva se distribui entre os redemoinhos de saris, flores, tambores e turbantes. Sem dúvida é um Exército do Povo. Por ora, pelo menos. E o que o Presidente Mao disse sobre as guerrilhas serem como pei­xes e o povo como a água em que nadam, é nesse momento, literalmente verdade.

Presidente Mao está aqui também. Um pouco sozinho, talvez, mas presente. Há um retrato seu, diante de uma tela vermelha. Marx também e Charu Mazumdar, fundador e dirigente teórico do movimen­to naxalita. Sua retórica ardente fetichiza a violência, o sangue e o sofrimento, e frequentemente emprega uma linguagem tão áspera que resulta quase genocida. Estando aqui, no dia de Bhumkal, não posso deixar de pensar que sua análise, tão vital para a estrutura dessa revolução, seja tão distante da sua emoção e textura. Quando disse que apenas “uma campanha de aniquilamento” poderia produzir “o homem novo que desafiará a morte e será livre de todo interesse pessoal”, poderia ter imaginado que esse antigo povo, dançando na noite, seriam aqueles em cujos ombros chegariam a descansar seus sonhos?

É muito contraproducente para tudo que está ocorrendo aqui, que o único que pareceu ir ao mundo exterior, seja a retórica dura e inflexível dos ideólogos de um partido que evoluiu muito desde seu passado problemático. Quando Charu Mazumdar disse a famosa frase, “O Presidente da China é nosso presidente e o caminho da China é o nosso caminho”, estava disposto a sustenta-la até o ponto que os naxalitas se silenciaram quando o general Yahya Khan realizou genocídios no Paquistão Oriental (Bangladesh), porque nesse momento a China era uma aliada do Paquistão. Se silenciaram também sobre o Khmer Vermelho e seus campos de extermínio no Camboja. Houve silêncio sobre os atrozes excessos das revoluções russa e chinesa. Silêncio sobre o Tibet. Dentro do movimento naxalita também houve excessos violentos e é impossível defender grande parte do que fizeram. Mas isso não se pode comparar com os atos sórdidos do Partido do Congresso e do BJP em Punjab, Cachemira, Delhi, Mumbai, Gujarat... E, no entanto, apesar dessas contradições terríveis, Charu Mazumdar foi um visionário na parte do que escreveu e disse. O partido que fundou (e seus muitos grupos fragmentados) manteve o sonho da verdadeira e atual revolução da Índia. Imagine uma sociedade sem esse sonho. Só por isso não podemos julgá-lo com tanta dureza. Principalmente se nos falam da fraude de dar pena de Gandhi sobre a superioridade da “via não-violenta” e sua noção de Economia da Confiança (Trusteeship): “O rico manterá a posição de sua riqueza, da qual usará o que razoavelmente requer para suas necessidades pessoais e atuará com confiança com o resto, que será utilizado para o bem de toda a sociedade”.

Que estranho é, contudo, que os czares contemporâneos do Establishment indiano – o Estado que esmagou sem piedade os naxalitas – devam agora estar dizendo o que Charu Mazumdar disse tanto tempo atrás: o caminho da China é nosso caminho.

As coisas de cabeça pra baixo.

O caminho da China mudou. A China se converteu em um poder imperial, se aproveitam de outros países, dos recursos de outros povos. Mas o Partido segue ali, apenas mudou de opinião. Quando o Partido é um pretendente do povo (como é hoje em Dandakaranya), atento a todas suas necessidades, então realmente é um Partido do Povo, e seu exército é verdadeiramente um Exército Popular. Mas depois da Revolução, com facilidade essa história de amor pode se converter em um casamento amargo. Com facilidade, o Exército Popular pode se voltar contra o povo. Hoje em Dandakaranya, o Partido quer manter a bauxita na montanha. Amanhã vai mudar de opinião? Mas podemos ou devemos deixar que os temores sobre o futuro nos imobilizem no presente?

A dança seguirá a noite toda. Caminho de volta para o acampamento. Maase está lá, acordada. Conversamos até as altas horas da noite. Dou a ela minha cópia dos “Versos do Capitão”, de Neruda (trazia comigo, por acaso). Ela pergunta uma e outra vez: “O que pensam de nós fora daqui? O que os estudantes dizem? Me fale do movimento das mu­lheres, quais são as grandes pautas de hoje? ”. Ela pergunta de mim, do que eu escrevo. Tento dar a ela um relato honesto do meu caos. Então ela começa a falar de si mesma, de como entrou no Partido. Ela me disse que seu companheiro foi assassinado em maio do ano passado, em um falso confronto. Foi preso em Nashik e levado a Warangal para ser assassinado. “Devem ter o torturado horrivelmente”. Ela ia encontrá-lo quando se inteirou de que havia sido preso. Está na floresta desde então. Depois de um longo silêncio, me disse que se casou uma vez, faz anos. “O mataram em um confronto também” – disse – e acrescentou com uma precisão de partir o coração, “mas em um de verdade”.

Acordei no meu jhilli pensando na tristeza prolongada de Maase, escutando os tambores e os sons da felicidade prolongada no cenário, e pensando na ideia de Charu Mazumdar sobre a guerra prolongada, o preceito central do partido maoísta. Isso é o que faz que as pessoas pensarem que a proposta dos maoístas de entrar em “conversas de paz” é um embuste, uma peça para obter um alívio para se reagruparem, voltarem a se armar e voltar a travar a guerra prolongada. O que é a guerra prolongada? É um coissa terrível em si mesma, ou depende da natureza da guerra? O que aconteceria se o povo daqui de Dandakaranya não tivesse travado sua guerra prolongada nos últimos 30 anos? O que seria deles hoje? E os maoístas são os únicos que acreditam em guerra prolongada? Quase desde o momento que a Índia se converteu em uma nação soberana, se converteu em uma potência colonial, anexando territórios, fazendo a guerra. Nunca hesitou em utilizar as intervenções militares para fazer frente aos problemas políticos de Caxemira, Hyderabad, Goa, Nagaland, Manipur, Telengana, Assam, Punjab, o levante naxalita em Bengala Ocidental, Bihar, Andhra Pradesh e agora nas regiões tribais da Índia Central. Dezenas de milhares foram assassinados impunemen­te, centenas de milhares de torturados. Tudo isso sob a máscara benigna da democracia. Contra quem foram travadas essas guerras?

Muçulmanos, cristãos, sikhs, comunistas, dalits, tribos e, sobretudo, contra os pobres que se atrevem a questionar sua sorte ao invés de aceitar as migalhas que jogam para eles. É difícil não ver o Estado Indiano em sua essência como um Estado Hindu das castas superiores (não importando qual partido esteja no poder), que porta uma hostilidade consciente para o “outro”. Um Estado que de forma verdadeiramente colonial envia os nagas e mizos para lutar em Chhattisgarh, os Sikhs para Caxemira, os Caxemiros para Orissa, os Tamiles para Assam e assim sucessivamente. Se isso não é guerra prolongada, o que é? Pensamentos desgradáveis em uma noite bonita e estrelada. Sukhdev está sorrindo sozinho, seu rosto se ilumina em sua tela do computador. É um viciado em trabalho. Eu perguntei o que o fazia sorrir. “Estava pensando nos jornalistas que vieram no ano passado para as celebrações de Bhumkal. Ficaram um dia ou dois. Um deles posou com minha AK, tirou foto e depois voltou e nos chamou de ‘máquinas de matar’ ou algo assim”. O baile não parou e já a­manhece. As filas da dança ainda estão aqui, centenas de jovens dançando. “Não vão parar” – disse o camarada Raju –, “não até que comecemos a guardar as coisas”.

Na esplanada me encontro com o camarada Doutor. Ele estava preparando um pequeno acampamento médico na beira da pista da dança. Quero beijar suas bochechas rechonchudas. Por que não pode ser no mínimo 30 pessoas ao invés de só uma? Por que não mil pessoas? Perguntei como está a saúde de Dandakaranya. Sua resposta me gelou o sangue. A maioria das pessoas que viu, disse ele, incluindo as mulheres do EGLP tem contagem de hemoglobina entre 5 e 6 (quando o padrão para mulheres na Índia é de 11). Há tuberculose causada por mais de 2 anos da anemia crônica. As crianças pequenas sofrem de subnutrição proteinoenergética Gru II, que na termologia médica se denomina Kwashiorkor (Procurei depois. É uma palavra derivada da língua Ga da costa de Gana e significa “a doença que um bebê adquire quando vem um novo bebê”. Basicamente o bebê mais velho deixa de receber o leite materno e não há alimento suficiente que o proporcione nutrição). “É uma epidemia aqui, como em Biafra”, disse o camarada Doutor. “Eu trabalhei nas aldeias antes, mas nunca vi nada como isso”. Além disso, a malária, a osteoporose, o verme, várias infecções de ouvido e dentes e amenorreia primária, que se produz quando a desnutrição infantil durante a puberdade faz com que o ciclo menstrual da mulher desapareça, ou nunca apareça.

Não há clínicas nessa floresta, além de uma ou duas em Gad­chiroli. Não tem médicos e nem remédios.

O camarada Doctor vai para fora agora, com sua pequena equi­pe em uma viagem de oito dias para Abhujmad. Ele está vestindo o uniforme, de modo que se eles o encontrarem, o vão matar.

O Camarada Raju diz que não é seguro para nós continuar a a­campar qui. Temos que ir. Sair de Bhumkal envolve muitos adeuses por longo do tempo

Lal lal salaam, lal lal salaam,

Jaane wale saathiyon ko lal lal salaam

(Saudações vermelhas aos camaradas que vão)

Phir milenge, phir milenge

Dandakaranya jungle mein phir milenge

(Nos encontraremos de novo, algum dia,

na floresta de Dandakaranya)

A cerimônia de chegada e saída nunca é levada sem reflexão, porque todos sabem que quando falam “nos encontraremos de novo”, eles querem dizer na verdade “podemos nunca mais nos ver de novo”.

Camarada Narmada, camarada Maase e camarada Rupi estão indo por caminhos separados. As verei de novo algum dia?

Então, mais uma vez, caminhamos. A cada dia fica mais quente. Kamla pega a primeira fruta da árvore de tendu para mim. Tem gosto de chikoo [sapoti]. Eu me tornei uma amiga do tamarindo. Dessa vez, acampamos próximo a um riacho. Homens e mulheres reservam turnos para se banhar em lotes. No fim da tarde, a camarada Raju recebe um pacote de “biscoitos”. Notícias: 60 pessoas presas na Divisão de Manpur no final de janeiro de 2010 não foram apresentadas ao tribunal ainda; Enormes contingentes da polícia chegaram em Bastar do Sul. Cometem ataques indiscriminados; Em 8 de novembro de 2009 na Aldeia Kachlaram, Bijapur Jila, Dirko Madka (60) e Kovasi Suklu (68) foram mortos; Em 24 de novembro, Madavi Baman (15) foi assassinado na aldeia de Pangodi; Em 3 de dezembro, Madavi Budram de Korenjad também foi morto; 11 de dezembro, aldeia Gumiapal, Divisão Darba, 7 mortos (nomes ainda a vir); 15 de dezembro, aldeia Kotrapal, Veko Sombar e Madavi Matti (ambas da KAMS), mortas; 30 de dezembro, aldeia Vechapal, Poonem Pandu e Poonem Motu (pai e filho) mortos; Em janeiro de 2010 (dia desconhecido), líder do Janatana Sarkar na aldeia Kaika, Gangalaur, morto; Em 9 de janeiro, 4 mortos na aldeia de Surpangooden, na região de Jagargonda; 10 de janeiro, 3 mortos na aldeia de Pullem Pulladi (sem nomes ainda); 25 de janeiro, 7 mortos na aldeia de Takilod, região de Indravati; 10 de fevereiro (Dia do Bhumkal), Kumli estuprada e morta na aldeia de Dumnaar, Abujhmad. Ela era de uma aladeia chamada Paiver; 2 mil tropas da Polícia da Fronteira Indo-Tibetana (ITBP) estão a­campadas nas florestas de Rajnandgaon; 5 mil tropas adicionais das Forças de Segurança da Fronteira chegaram em Kanker.

E depois: Cota do EGLP cumprida.

Alguns jornais antigos chegaram também. Tem muita coisa da imprensa sobre os naxalitas. Uma manchete berrante resume o clima político perfeitamente: “Khadedo, Maaro, Samarpan Karao (Eliminar, matar, os façam se render)”. Abaixo disso: “Vaart ke liye loktantra ka dwar khula hai (A porta da democracia sempre está aberta para conversas)”. Um segundo diz que os maoístas estão plantando maconha para ganhar dinheiro. O terceiro tem um editorial que diz que a região que acampamos e que estamos caminhando está inteiramente sob controle policial.

Os comunistas jovens pegam os recortes para praticar sua leitu­ra. Eles andam pelo acampamento lendo os artigos anti-maoístas em voz alta com entonação de radialista.

Novo dia. Novo lugar. Acampamos nas cercanias da aldeia Usi­re, sob enormes árvores de mahua. A mahua acabou de começar a florescer e está deixando suas flores verdes como joias no solo da floresta. O ar está banhado de um perfume levemente embriagador. Estamos esperando as crianças da escola de Bhatpal que foi fechada depois do confronto de Ongnaar. Se transformou em um acampamento policial. As crianças foram mandadas para casa. Essa é a verdade das escolas em Nelwad, Moonjmetta, Edka, Vedomakot e Dhanora.

As crianças da escola de Bhatpal não aparecen.

Camarada Niti (a mais procurada) e camarada Vinod nos guiam em uma longa caminhada para conhecer as estruturas de coleta de água e bombas de irrigação que foram construídos pelos Janatana Sarkar locais. Camarada Niti fala da gama de problemas agrícolas que têm que li­dar. Apenas 2% da terra é irrigada. Em Abujhmad, não se conhecia o arado até 10 anos atrás. Já em Gadchiroli, sementes híbridas e pesticidas químicas estão sendo inseridas gradualmente. “Precisamos de ajuda urgente do departamento de agricultura”. Camarada Vi­nod diz “precisamos de pessoas que saibam de sementes, pesticidas or­gâ­nicos, permacultura. Com um pouco de ajuda, podemos fazer muita coisa”.

Camarada Ramu é o camponês encarregado dessa área do Jantana Sarkar. Ele nos mostra orgulhosamente os campos, nos quais plantam arroz, beringela, gongura, cebolas, kohlrabi. Depois, com igual orgulho, nos mostra uma enorme bomba de irrigação, vazia. O que é isso? “Esse nem água tem durante a temporada de chuvas. Foi cavado no lugar errado”, diz, e um sorriso passa pelo seu rosto. “Não é nosso, foi cavada pelo Looti Sarkar (o governo que realiza saques)”. Há dois sistemas paralelos de governo aqui, Janatana Sarkar e Looti Sarkar.

Eu penso no que o camarada Venu disse a mim: “eles querem nos esmagar, não só por causa dos minérios, mas porque estamos oferecendo ao mundo um modelo alternativo”.

Não é uma alternativa ainda, a ideia de Gram Swaraj com uma arma. Há muita fome aqui, muitas doenças. Mas certamente criou as possibilidades para uma alternativa. Não para todo o mundo, não para o Alaska, ou Nova Delhi, e talvez nem para toda Chhattisgarh, mas para si mesma. Para Dandakaranya. É o segredo mais bem guardado do mun­do. Estabeleceu as bases para um alternativa à sua própria aniquilação. Desafiou a história. Contra toda as maiores dificuldades, forjou um programa para sua própria sobrevivência. Precisam de auxílio e imaginação, precisam de médicos, professores, agricultores.

Não precisam de guerra.

Mas se só receberem guerra, eles revidarão.

Nos dias que se seguiram, eu conheci as mulheres que trabalham no KAMS, funcionários dos Janatana Sarkars, membros do Dandakaranya Adivasi Kisan Mazdoor Sangathan (DAKMS), famílias de pes­soas que foram mortas, e apenas pessoas comuns que tentam seguir com sua vida nesses tempos terríveis.

Eu conheci três irmãs – Sukhiari, Sukdai e Sukkali -, não jovens, talvez com seus 40 anos, do distrito de Narayanpur. Estão no KAMS há 12 anos. Os aldeãos dependem delas para lidar com a polícia. “A polícia vem em grupos de 200 a 300. Eles roubam tudo: joias, galinhas, porcos, jarras e panelas, arcos e flechas”. Sukkali diz, “não deixam nem as facas”. Sua casa em Innar foi incendiada duas vezes, uma vez pelo Batalhão Naga e outra pela polícia de reserva do CRPF. Suhiari foi detida e presa em Jagdalpur por sete meses. “Uma vez levaram toda a aldeia falando que os homens eram todos naxalitas”. Sukhiari, juntamente com as mu­lheres e cria­nças, os seguiu. Eles rodearam a delegacia e se recusaram a ir embora até que os homens fossem libertados. “Sempre que eles levam alguém”, Sukdai diz, “você tem que ir imediatamente e apanhar a pessoa de volta, antes que escrevam qualquer relatório. Quando eles escrevem em seu livro, se torna mais difícil.”.

Sukhiari, que quando criança foi sequestrada e forçada a casar com um homem mais velho (ela fugiu e foi viver com sua irmã), agora organiza protestos de massas, fala nas assembleias. Os homens dependem dela para proteção. Eu perguntei a ela o que o Partido significa para ela. “Naxalvaad ka matlab hamara parivaar (Naxalvaad significa nossa fa­mília). Quando sabemos de um ataque, é como se nossa família tivesse sido machucada”, Sukhiari diz.

Eu perguntei se ela sabia quem era Mao Tsé-tung. Ela sorriu timidamente. “Ele foi um líder. Estamos trabalhando por sua visão”.

Eu conheci a camarada Somari Gawde. Vinte anos de idade, e já cumpriu uma sentença de dois anos na cadeia em Jagdalpur. Ela estava na aldeia de Innar em 8 de janeiro de 2007, no dia que 740 policiais fizeram um cordão em volta dela porque tinham a informação de que a camarada Niti estava ali (estava, mas havia ido embora quando chegaram). Mas a milícia da aldeia, da qual Somari era membra, ainda estava ali. A polícia abriu fogo no amanhecer. Mataram dois meninos, Suklal Gawde e Kachroo Gota. Então pegaram outros três, dois meninos, Dusri Salam e Ranai, e Somari. Amarraram Dusri e Ranai e atiraram. Somari apanhou até quase morrer. A polícia conseguiu um trator com um trailer e colocaram os corpos mortos nele. Somari foi obrigada a viajar com os cadáveres e levada a Narayanpur.

Eu conheci Chamri, mãe do camarada Dilip, que foi assassinado com um tiro em 6 de julho de 2009. Ela diz que depois que o mataram, a polícia amarrou o corpo de seu filho em um poste, como se fosse um animal, e levaram com eles (precisam de corpos para receber suas recompensas em dinheiro, antes que alguém pegue o dinheiro). Chamri correu atrás deles o caminho todo até a delegacia. Quando chegaram, o corpo sequer tinha um pedaço de roupa por cima. Chamri disse que no caminho, deixaram o corpo na estrada quando pararam em uma dhaba para tomar chá e biscoitos (que sequer pagaram). Imagine essa mãe por um momento, seguindo o cadáver de seu filho pela floresta, parando a uma distância para esperar seu assassino terminar um chá. Eles não a deixaram pegar o corpo de seu filho de volta para dar-lhe um enterro adequado. Eles apenas a deixam jogar um punhado de terra no fosso onde enterreraram os outros que mataram nesse dia. Chamri diz que ela quer vingança: Badla ku badla; Sangue por sangue.

Eu conheci os membros eleitos da Marskola Janatana Sarkar que administram seis aldeias. Eles descreveram um ataque policial: eles vêm à noite, 300, 400, ás vezes 1000 deles. Eles fazem um cordão em torno da vila e esperam. No amanhecer pegam as primeiras pessoas que saem para o campo e usam como escudos humanos para entrar na aldeia, e exigem que digam onde estão as minas terrestres, ou booby-traps (se tornou um termo Gondi. Todos sempre sorriem quan­do falam ou escutam. A floresta é cheia de booby-traps, reais e falsas. Até o EGLP precisa ser guiado ao redor das aldeias). Quando a polícia entra em uma aldeia, saqueiam, roubam e incendeiam as casas. Eles vêm com cachorros. Os cachorros pegam aqueles que tentam fugir. Eles perseguem galinhas e porcos e a polícia os matam e os roubam nos saques. Tropas especiais (SPO) também vem junto com a polícia. São quem sabem onde o povo esconde seu dinheiro e joias. Eles pegam as pessoas e as levam. E pegam dinheiro antes de soltá-las. Eles sempre levam alguns “vestidos” naxalitas extras caso encontrem alguém para matar. Eles ganham dinheiro matando naxalitas, então fabricam alguns assassinatos. Os aldeães estão muito assustados para ficarem em casa.

Nessa floresta que parece tranquila, a vida aparenta completamente militarizada agora. O povo sabe termos como isolamento e busca, disparo, avançar, retirada, abater, ação! Para cultivar sua colheita, precisam que o EGLP faça uma patrulha na área como sentinelas. Ir ao mercado é uma operação militar. Os mercados estão cheios de mukhbirs (informantes) que a polícia aliciou nas vilas com dinheiro. Me falam que há um mukhbir mohalla (colônia de informantes) em Narayanpur onde residem no mínimo 4 mil mukhbirs. Os homens não podem mais ir ao mercado. As mulheres vão, mas são vigiadas de perto. Se elas comprarem até um pouco a mais, a polícia as acusa de comprar para os naxalitas. As farmácias são instruídas a não deixar comprar remédios a não ser em quantidades muito pequenas. Rações a baixo custo do Sistema de Distribuição Pública (PDS), açúcar, arroz, querosene, são armazenadas ou perto ou em delegacias, tornando impossível o povo comprar.

O Artigo 2 da Convenção da ONU para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio o define como: “entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: assassinato de membros do grupo; atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo”.

Andar tudo aquilo parece que já deu para mim. Estou cansada. Kamla me dá um pote de água quente. Eu me banho atrás de uma árvore no escuro. Mas eu não consigo jantar e vou até meu saco de dormir para dormir. O camarada Raju anuncia que temos que seguir andando. Isso acontece frequentemente, claro, mas hoje a noite está difícil. Estávamos acampados em uma pradaria aberta. Nós escutamos bombas ao lon­ge. Tem 104 de nós. Mais uma vez, marchamos em fila única à noite. Grilos. O cheiro de algo que parece lavanda. Deve ser depois das 11 horas quando chegamos em um local onde iremos passar a noite. Um afloramento de rochas. Formação. Passar lista. Alguém liga o rádio. A BBC disse que há um ataque em um acampamento do grupo Eastern Frontier Rifles em Lalgarh, Bengala Ocidental. 60 maoístas em motos. 14 policiais mortos. 10 desparecidos. Armas confiscadas. Há um murmúrio de satisfação nas fileiras. O dirigente maoísta Kishenji está sendo entrevistado.

Quando vocês irão parar essa violência e começar as conversas?

Quando a Operação Caça Verde for cancelada. Quando quiserem. Diga a Chidambaram que iremos conversar.

Próxima pergunta:

Está escuro gora, vocês colocaram minas terrestres, reforços foram chamados, vocês os atacarão também?

Kishenji: É claro, senão o povo vai me bater.

As tropas riem. Sukhdev, o esclarecedor, diz “eles sempre falam de minas terrestres. Não usamos minas terrestres. Usamos artefatos explosivos improvisados (IEDs).

Outra suíte de luxo no hotel de mil estrelas. Eu estou me sentindo doente. Começa a chover. Há algumas risadinhas. Kamla joga um jhilli sobre mim. Do que mais eu preciso? Todo mundo apenas se enrola em seus jhillis.

Na manhã seguinte, a contagem de corpos em Lalgarh subiu pa­ra 21 desaparecidos.

Nessa manhã o camarada Raju está atencioso. Não andamos até o entardecer.

Uma noite, todos estão amontoados como mariposas em torno de um ponto de luz. É o pequeno computador do camarada Sukhdev, que funciona com um painel solar, e estão assistindo o filme Mother India – a ponta de seus rifles formam silhuetas contra o céu. Kamla não parece se interessar. Eu pergunto se ela gosta de assistir filmes. “Nahin Didi. Sirf ambush vídeo (Não, apenas vídeos de emboscada)”. Depois, pergunto a camarada Sukhdev sobre esses vídeos de emboscada. Sem pestanejar, ele coloca um para mim.

Começa com filmagens de Dandakaranya, rios, cachoeiras, detalhes de uma árvore pelada, um cuco cantando. Então de repente, um camarada está conectando um IED, o escondendo entre folhas secas. Uma fila de motocicletas explode. Há corpos mutilados e motos em chamas. As armas são confiscadas. Três policiais, parecendo traumatizados, são amarrados.

Quem está filmando? Quem está dirigndo as operações? Quem está assegurando aos policiais capturados que serão soltos caso se rendam? (Eles foram, me confirmam depois).

Eu conheço a voz tranquilizante e suave. É o camarada Venu.

“É emboscada de Kudur”, o camarada Sukhdev diz.

Ele também tem arquivos de vídeos de aldeias queimadas, testemunhos de pessoas que viram isso e parentes dos mortos. Na parede chamuscada de uma casa queimada, diz, “Nagaaa! Nascido para matar!”. Há filmagens de um menino, criança, cujos dedos foram cortados para inaugurar a Operação Caça Verde em Bastar (há até uma entrevista comigo, meu estudo, meus livros. Estranho).

À noite, no rádio, notícias de um ataque naxalita. Esse agora em Jamui, Bihar. Falam que 125 maoístas atacaram uma aldeia e mataram 10 pessoas que pertenciam à tribo Kora em retalização por dar informação para a polícia que levou à morte de seis maoístas. Claro, sabemos que o que a mídia fala pode ou não ser verdade. Mas, se for, é imperdoável. Camarada Raju e Sukhdev parecem visivelmente desconfortáveis.

As notícias que vem vindo de Jharkhand e Bihar são perturbadoras. A terrível decapitação do policial Francis Induvar ainda está fresca na mente de todos. É uma nota para lembrar o quão fácil a disciplina da luta armada pode se dissolver em atos lumpen de violência descirminada ou em guerras feias de identidade entre castas e comunidades e grupos religiosos. Ao institucionalizarem a injustiça da forma que fazem, o Estado indiano transformou esse país em um barril de pólvora de instabilidade massiva. O governo está bem errado se pensa que ao realizar “assassinatos seletivos” para cortar a “cabeça” do PCI (Maoísta), está pondo fim à violência. Pelo contrário, a violência vai se espalhar e se intensificar, e o governo não terá com quem conversar.

Em meus últimos dias, perambulamos pelo lindo e exuberante vale de Indravati. Conforme andamos pela colina, vemos outra marcha de pessoas andando na mesma direção, mas do outro lado do rio. Me falam que estão indo para uma assembleia anti-represa na aldeia de Kudur. Eles estão em público e sem armas. Um protesto local pelo vale. Eu me junto a eles em seu esforço.

A represa de Bodhghat irá afundar toda a área que estivemos andando nesses dias. Toda essa floresta, toda essa história, todas essas histórias. Mais de 100 aldeias. Então é esse o plano? Afogar pessoas co­mo ratos, para que essa planta de aço integrada em Lohandiguda e a mina de bauxita e a refinaria de alumínio nas montanhas de Keshkal?

Na assembleia, pessoas que vieram de milhas de distância dizem a mesma coisa que ouvimos por anos. Vamos afogar, mas não vamos sair daqui! Eles se encantam pelo fato de alguém de Delhi estar com eles. Eu digo a eles que Delhi é uma cidade cruel que nem conhece e nem liga para eles.

Semanas antes de eu vir para Dandakaranya, eu visitei Gujarat. A represa Sardar Sarovar alcançou mais ou menos seu nível máximo. Quase tudo que Narmada Bachao Andolan (NBA) advertiu que iria acon­tecer, aconteceu. Pessoas que foram removidas de suas casas não foram reabilitadas, mas ninguém fala disso. Os canais não foram construídos. Não há dinheiro. Estão desviando a água de Narmada para o leito vazio do Sabarmati (que foi represado faz muito tempo). A maior parte da água está sendo usada pelas cidades e grandes indústrias. Os efeitos posteriores – ingresso de água salgada em um estuário sem rio – estão se tornando impossíveis de ser apaziguados.

Houve uma época que acreditar que as grandes represas eram os “templos da Índia Moderna” era um erro, mas talvez compreensível. Mas hoje, depois de tudo que aconteceu, e quando sabemos o que sabemos, deve ser dito que grandes represas são um crime lesa-humanidade.

A represa de Bodhghat foi arquivada em 1984 após o povo local protestar. Quem vai impedi-la agora? Quem vai impedir que coloquem a primeira pedra? Quem vai impedir que o Indravati seja roubado? Alguém tem que fazer isso.

Na última noite, acampamos na base da íngreme colina que escalaríamos de manhã, para sair em uma estrada onde uma moto nos pegaria. A floresta mudou desde a primeira vez que eu entrei nela. As árvores de algodão, chiraunji e manga começaram a dar flores.

Os aldeãos de Kudur enviaram um enorme pote de peixes recém-pescados para o acampamento. E uma lista para mim, de 71 tipos de frutas, vegetais, legumes e insetos que eles pegam da floresta e plantam em seus campos, junto com o preço de mercado. É só uma lista. Mas também é um mapa de seu mundo.

O correio da selva chega. Dois biscoitos para mim. Um poema e uma flor prensada da camarada Narmada. Uma linda carta de Maase (quem é ela? A conhecerei algum dia?)

Camarada Sukhdev pergunta se ele pode baixar a música de meu Ipod em seu computador. Escutamos a gravação de Iqbal Bano cantando Hum Dekhenge (Iremos testemunhar o Dia) de Fais Ahmad Faiz, no famoso show em Lahore no ápice da repressão durante os anos de Zia-ul-Haq.

Jab ahl-e-safa-Mardud-e-haram,

Masnad pe bithaiye jayenge

(Quando os heres e os insultados sentarem no alto).

Sab taaj uchhale jayenge Sab takht giraye jayenge

(Todoas as coroas serão confiscadas

Todos os tronos derrubados

50 mil pessoas no público no Paquistão começaram um grito desafiador: Inqilab Zindabad! Inqilab Zindabad! (Viva a Revolução). Todos esses anos depois, esse grito reverbera nessa floresta. Estranho, as conexões que são feitas.

O Ministro do Interior vem soltando ameaças veladas a aqueles que “erroneamente oferecem apoio material e intelectual aos maoístas”. Compartilhar música entra nisso?

No amanhecer, me despeço do camarada Madhav e Joori, do jovem Mangtu e todos os outros. Camarada Chandu veio organizar as bicicletas, e virá comigo para a estrada principal. Camarada Raju não vem (escalar seria o inferno para seus joelhos). Camarada Niti (a mais procurada), camarada Sukhdev, Kamla e mais cinco irão me levar para a colina. Quando começamos a andar, Niti e Sukhdev casual, mas simultaneamente destravam suas AKs. É a primeira vez que os vejo fazerem isso. Estamos chegando na “Fronteira”. “Você sabe o que fazer se estivermos sob artilharia?”, Sukhdev pergunta casualmente, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

“Sim”, disse, “declarar greve de fome sem fim determinado”.

Ele senta em uma pedra e ri. Nós escalamos por uma hora. Logo abaixo da estrada, sentamos em um esconderijo pedregoso, completamente escondido, como se fosse uma emboscada do Partido, escutando o som das motos. Quando chegar, a despedida deve ser breve.

Lal Salaam Camaradas.

Quando olhei para trás, todos ainda estavam ali. Acenando. Um pouco de perplexidade. Pessoas que vivem em seus sonhos, enquanto o resto do mundo vive em seus pesadelos. Toda noite penso nessa jornada. O céu daquela noite, os caminhos das florestas. Eu vejo os calcanhares da camarada Kamla em seus chappals listrados, iluminados pela luz de minha lanterna. Eu sei que ela está em movimento. Marchando, não apenas por ela mesma, mas para manter a esperança viva para nós todos.

Publicado na revista Outlook, em 2010

Escrito por Arundhati Roy

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