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Uma investigação no Vale do Ribeira (SP)


Estive com o compromisso de ir novamente ao campo fazer uma investigação acerca das condições rurais ali existentes, como fiz no sertão e zona da mata alagoanos. Dessa vez, darei informes acerca da situação de parte das zonas rurais do estado de São Paulo, o estado maior e mais desenvolvido de nosso país, de tão grande importância para o avanço da luta popular-revolucionária. A região onde fiz os levantamentos, o Vale do Ribeira, é a mais pobre e mais atrasada do estado (há alguns anos, o Pontal do Paranapanema ocupava esse posto), com um forte peso de uma população camponesa e indígena. A região do Vale do Ribeira cobre quase 40 municípios tanto de São Paulo quanto do Paraná. Tratando de São Paulo, o documento "Vale do Ribeira - Um ensaio para o desenvolvimento das comunidades rurais" divide os municípios do Vale do Ribeira em cinco classes, em ordem crescente de desenvolvimento econômico-social, do 1 para o 5. Os municípios mais atrasados do Vale, da classificação 1, são Barra do Turvo, Apiaí, Barra do Chapéu, Iporanga, Itaóca, Itapirapuã Paulista e Ribeira. Na classificação 2, encontram-se os municípios Cananéia e Peruíbe. Na classificação 3, Eldorado, Tapiraí, Juquiá, Miracatu, Jacupiranga, Cajati, Iguape, Itariri e Pedro de Toledo. Na classificação 4, Registro (conhecido como "capital do Vale do Ribeira"), Sete Barras e Pariquera-Açu. Na classificação 5, São Lourenço da Serra. Quanto aos municípios da classe 1, nos quais me concentrei, vou expor alguns dados que o documento coloca.


77,47% dos produtores diretos do campo trabalham em regime familiar (ou seja, camponês); 9,54% dos produtores diretos são empregados permanentes; 12,14% dos produtores diretos são crianças ou adolescentes; 32,85% dos estabelecimentos agrícolas possuem energia elétrica; 31,06% dos estabelecimentos agrícolas possuem água encanada; 39,31% dos chefes de família não possuem instrução; 57,56% dos chefes de família possuem menos de quatro anos de instrução; 27,18% dos estabelecimentos agrícolas utilizam adubação ou corretivos do solo; a despesa por hectare é de R$220,00; a valor da produção agrícola por hectare é de apenas R$80,00; 75% dos estabelecimentos agrícolas utilizam agrotóxicos; a densidade de mecanização no arado é de 1 trator para cada 642 hectares; 9,51% dos estabelecimentos agrícolas possuem alguma área irrigada.


Observamos, portanto, que a classe 1 dos municípios do Vale do Ribeira possuem uma agricultura extremamente atrasada, com parco uso de tecnologias modernas (salvo para o uso de agrotóxicos), baseada no trabalho de pequenos produtores individuais, camponeses, em minifúndios ou pequenas áreas. Comparando os cultivos da classe 1 com os das outras classes de município do Vale do Ribeira, observamos que na classe 1 há a presença predominante de lavouras de auto-abastecimento, de arroz, feijão, mandioca, tomate, etc., de fraca conexão com o mercado. Nos municípios de todas as outras classes, predomina a lavoura da banana, com a produção voltada parcial ou completamente para o escoamento no mercado. Ainda assim, a produção mercantil (simples ou capitalista) verificada na lavoura da banana é submetida ao massacre do atravessamento, da feita que mais de 80% da produção é vendida para atravessadores, que controlam os preços dos produtos.


A situação na qual saí de São Paulo rumo ao interior, já de início, foi bastante diferente da situação na qual saí de Maceió para Inhapi, em Alagoas. Existem ônibus (saindo do Terminal Rodoviário da Barra Funda) que fazem o trajeto da capital para Apiaí, portanto, poderia deixar para o passado os transtornos com vans privadas que saem no horário que bem entendem. Se o horário de saída está marcado para 12h30, qual o problema de sair 12h00? Aqui isso não vai acontecer, por sorte. São as várias vantagens de se fazer um trabalho desse tipo na região economicamente mais desenvolvida do Brasil...


As várias glebas cobertas por lavouras mercantis de banana, paisagens típicas da beira de estrada por quem passa pela região do Vale do Ribeira, não estiveram presentes no meu trajeto. Afinal, o ônibus não fez o convencional caminho Registro-Pariqueraçu-Cajati, etc. (como de quem vai para Curitiba), mas atravessou a região próxima a Sorocaba, passando não apenas por Sorocaba como por cidades como Capão Bonito, Capela do Alto e Itapetininga. Mesmo olhando da maneira mais superficial possível, a paisagem à beira de estrada por esta região era inteiramente diversa à que presenciei pelas regiões sertanejas alagoanas. Aqui, lavouras brotando verdes, vigorosas. Ali, lavouras destruídas pela seca, carcaças de gado por todos os cantos devido à ausência de técnicas modernas capazes de superarem os longos períodos de estiagem. Aqui, tempo nublado e chuvas constantes. Ali, meses e até mesmo anos sem chover. O fato de ser possível de se observar à beira de estrada os gigantescos silos para o armazenamento de grãos, somados à enorme extensão das lavouras, em geral, de milho e soja, indica ser Sorocaba e as cidades limítrofes uma das regiões brasileiras onde a modernização agrícola se deu de forma imensamente mais consolidada e profunda em relação ao resto do país. Portanto, outra comparação a ser destacada: Aqui, uso intenso de insumos agrícolas como fertilizantes, agrotóxicos, adubação; arado da terra quase que inteiramente mecanizado, e colheita também realizada de forma quase que inteiramente mecanizada; trabalhos no campo realizados por operários agrícolas que operam máquinas. Ali, inexistência de técnicas modernas tão necessárias para a região, como a irrigação, inexistência do uso de fertilizantes, agrotóxicos e adubação; arado da terra realizado por animais de tração (arado a boi), limpezas dos terrenos feitas à foice ou tocando fogo, e colheita realizada de forma 100% manual; trabalhos no campo realizados por camponeses arrendatários sem terra ou com pouca terra, ou por assalariados ou semi-assalariados sazonais que colhem no facão ou na mão. Ali, economia semi-natural, com pouca ou nenhuma ligação com o mercado, trocas realizadas em grande parte em espécie. Aqui, economia mercantil capitalista, de forte integração com o mercado imperialista internacional por conta de sua dependência sobre a importação de insumos e sobre a exportação de grãos.


A região das proximidades de Sorocaba, onde o capitalismo agrícola brasileiro se encontra enormemente mais desenvolvido em relação ao restante do país (ainda que, segundo informações que me foram passadas, parte considerável dos produtores diretos da região ainda sejam camponeses individuais que moram em assentamentos, ainda assim, sob condições inteiramente diversas dos lavradores sertanejos), certamente será a região de onde sairão as primeiras fazendas estatais socialistas de nosso país, que cumprirão um espetacular papel na expansão do desenvolvimento das forças produtivas nacionais e na construção socialista, ao invés de servirem ao interesse (como nos tempos presentes) de um punhado de monopolistas estrangeiros através da importação de insumos e maquinários, pagamento de royalties para o uso de sementes modificadas geneticamente, etc.


O quadro de modernidade gradualmente desapareceria à medida que o ônibus fosse indo mais adentro do estado, aproximando-se do Paraná, rumo ao Vale do Ribeira. Por aqui, nada de colheitadeiras ou silos imensos do tamanho de edifícios. Cada vez mais, a beira da estrada era tomada por pequenas e pequeníssimas glebas de plantações em terras em declive, numa região montanhosa, sempre com uma ou outra casa próxima à gleba. O fato de eu haver chegado na região numa época praticamente de fim de colheita permitiu que se somassem à paisagem camponeses e assalariados agrícolas trabalhando na colheita das lavouras, pegando tudo na mão mesmo. A entrada na região do Vale do Ribeira me fez lembrar de um comentário que um camarada, em tom de brincadeira, fez ao passarmos por lá quando íamos para o Paraná, há cerca de três ou quatro meses - "toma cuidado por aqui, 'tamo' entrando em zona de insurgência". Aqueles que gostam de romantizar os cenários de luta certamente olharão para o Vale do Ribeira, com suas belíssimas montanhas sempre com neblinas em volta somadas ao tempo nublado, e lembrarão das imensas labaredas revolucionárias que durante uma década inteira incendiaram as montanhas do Nepal, mobilizando dezenas de milhões de camponeses para a Guerra Popular contra o imperialismo estrangeiro, o neocolonialismo indiano e o feudalismo, não culminando contudo na conquista do poder político por conta da ação do revisionismo dos dirigentes Prachanda e Baburam Battharai. Este alguém olhará também os casebres de madeira típicos da região e se lembrará das Filipinas, onde, nas montanhas, o Partido Comunista deste país organiza os povos originários na luta contra a entrada de atividades econômicas anti-desenvolvimento, anti-nação e anti-industrialização como mineradoras e madeireiras, acumulando forças para elevar a Guerra Popular para um patamar superior em relação ao qual se encontra atualmente. Fazer do Vale do Ribeira e de todos os rincões deste país um novo Nepal, uma nova Filipinas, um novo Vietnã, uma grande trincheira de resistência anti-imperialista e anti-feudal, será algo que dependerá inteiramente de os comunistas e revolucionários reorganizarem o partido de vanguarda da classe operária com uma linha política justa e correta e se apoiarem solidamente nas massas populares, tal como os peixes se apóiam nas águas, tal como as lavouras se apóiam nas chuvas e no sol.


Depois de mais alguns minutos após adentrar a região montanhosa e de matagais, paramos na rodoviária de Guapiara. Após descerem algumas pessoas e entrarem outras, começo a conversar com o rapaz que sentou do meu lado, um professor de educação infantil, já na tentativa de buscar informações sobre a região e possuir maiores elementos para se traçar uma correta análise de classes do local. Segundo as informações dadas por ele, há em Guapiara a presença de arrendamentos criminosos praticados pelos proprietários de terra, em sua maioria japoneses, que obrigam os lavradores a pagarem a eles rendas que atingem 70% da produção (sobrando para os lavradores apenas 30% do que produzem), produção esta formada principalmente por produtos típicos da "agricultura familiar": alimentos. Tomate, hortigranjeiros, feijão, milho, etc. Nos trabalhos do campo, ainda segundo o professor, os camponeses lavram a terra principalmente com arado puxado a cavalo, utilizando a enxada e também o arado em trabalhos secundários como afofar a terra, riscar, arrancar as ervas daninhas, etc. A colheita se dá de forma 100% manual, com presença nula de colheitadeiras. Ele segue ainda segue me falando que, nos últimos anos, por meio do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), os camponeses têm conseguido empréstimos a juros baixos e créditos para a aquisição de estufas para os hortigranjeiros. Informações muito boas para se aclarar e investigar depois que eu passar por aqui por Guapiara de novo...


Continuando a conversar com ele sobre algumas coisas genéricas após falarmos sobre a questão dos camponeses locais, o rapaz me pergunta o que estou fazendo aqui numa região tão inóspita como a de Guapiara e Apiaí. Respondo falando que sou estudante, fazendo um trabalho de faculdade e que me mandaram para a região aqui para conhecer a situação da "agricultura familiar" do Vale do Ribeira. Afinal, qual resposta melhor para uma pergunta como essa do que falar que é estudante? Quem receberia mal estudantes bem intencionados da cidade, que agora querem transformar a vida desse povo do mato, tão esquecido, num objeto de estudo acadêmico? É assim que eles pensam. Após falar sobre minhas intenções na empreitada, o professor vai e me solta: "Ah, no seu caso, era melhor você ter ficado por Guapiara mesmo. Em Apiaí, tem um pessoal muito endinheirado, e por causa disso é mais desconfiado com quem vem de fora. Agora em Guapiara, é um pessoal muito sofrido, mais humilde, são bem mais receptivos." Alguns dias depois descobriria que as diferenças entre Apiaí e Guapiara são apenas pontuais, não substanciais. Veria depois que, sem dúvidas, salta a vistas que Apiaí, no seu pequeno centro urbano (onde está localizada a prefeitura municipal), possui um comércio muito mais consolidado e desenvolvido, com maior variedade de produtos - indicando o maior contato da população de Apiaí com o dinheiro, com o consumo, e, portanto, com a economia de mercado. O pequeno centro urbano de Guapiara, contudo, parece se limitar à rodoviária e a uma ou duas padarias próximas à rodoviária. Nada muito além disso. Creio que aí, pelo menos observando a nível superficial, residiriam as diferenças entre os dois municípios. A menor ligação que possui a população de Guapiara com o dinheiro em comparação com Apiaí, no futuro, viria a me trazer algumas dificuldades. Eu descobriria depois que não conseguiria sacar dinheiro, tampouco teria dinheiro suficiente para me alimentar ou fazer outras coisas (ir de um povoado para outro, somente a pé a partir de então, e as dificuldades de andar aumentam quando falamos de uma região montanhosa), dado que uma quadrilha de assaltantes que atua na região colocou uma bomba na única agência bancária existente na cidade. Sacar dinheiro? Só se esperasse naquelas filas de três horas dos Correios...



APIAÍ

Logo após descer na rodoviária de Apiaí, almoço, descanso um pouco e logo parto para o povoado do Encapoeirado, na região mais alta de Apiaí, onde vivem cerca de 80 famílias (400 pessoas) lavradoras, entre camponeses pobres, médios, ricos, e proletários rurais bóias frias, que trabalham nas roças dos camponeses ricos. Os capitalistas agrários e latifundiários, por regra, não vivem lá. Certamente, um excelente panorama para traçarmos uma análise de classes da região. Ainda que a região rural de Apiaí possua mais dezenas de bairros ou povoados, com concentração semelhante de famílias camponesas, tive que me limitar a este bairro por questões financeiras... na zona rural, tudo fica longe de tudo, e andar a pé numa região montanhosa, com subidas e descidas por todo canto, certamente não seria a melhor opção pelo fato de estarmos no finzinho da tarde, com a noite por se aproximar...


Ao chegar no Encapoeirado, me deparo com uma cena com a qual já estava esperando me deparar: Casebres de madeira, moradias tradicionais dos lavradores da região; um menino (cuja idade estimo em não mais de 10 anos) com uma enxada, na frente de sua casa plantando alguma coisa; um morador local com seu chapéu de palha cobrindo o rosto, descansando embaixo de uma árvore. Somavam-se à cena elementos que eu não esperava presenciar no local: Lavradores dirigindo tratores e um ônibus trazendo bóias frias após um dia inteiro de trabalho nos campos de tomate (como os camponeses ricos não têm condições de arcar com ônibus para os assalariados ou semi-assalariados que contratam sazonalmente, imagino que aqueles bóias frias trabalhavam em terras dos agrários capitalistas). Mais coisas para investigarmos por aqui.


Na busca por informações, não deu certo bater de porta em porta. Todos eram muito desconfiados (confirmando o que o meu colega de viagem já havia dito) e não muito receptivos. A Associação do Produtor Rural, associação que organiza os camponeses locais e que, portanto, poderia me fornecer informações relevantes sobre a região, ficava muito longe de onde eu estava. Não dava para ir até lá. Minha alternativa acabou sendo ir até a Associação do Artesão, mais perto de onde eu estava, e buscar as informações necessárias para se ter elementos maiores para se fazer uma análise de classes do local.


Aqui, fui muito bem recebido pela artesã com seus 40 e poucos anos, Marina, presidenta da associação, e pela dona Lourdes, artesã também, com a mesma idade. Apesar de não haver perguntado grandes questões sobre a Associação do Artesão, me pareceu ser este, no Encapoeirado, um trabalho desempenhado quase que exclusivamente por mulheres. Após a conversa com Marina, pude traçar o seguinte quadro acerca da situação dos lavradores locais.


A grande maioria dos lavradores do Encapoeirado trabalham em regime de arrendamento feudal, pré-capitalista, do tipo renda-dinheiro, pagando anualmente para os latifundiários pesadas rendas de R$ 6 mil por alqueire (1 alqueire equivale a 2.4 hectares), confirmando aqui o predomínio das relações feudais de produção. Quando perguntei a Marina sobre outras formas de renda que os lavradores pagam aos proprietários, em espécie ou em trabalho, ela me avisa que, nos dias de hoje, em Apiaí, o arrendamento se dá exclusivamente em forma de dinheiro, lembrando da época de quando era pequena e seu pai, tendo um sítio grande em comparação com outros camponeses da região, dava terras em arrendamento para outros que necessitavam, e estes pagavam a seu pai em parcelas da produção (em feijão, milho, etc.) pelo arrendamento, caracterizando a renda agrária pré-capitalista do tipo renda-produto. Nas terras que arrendam, os lavradores do Encapoeirado desenvolvem a produção simples de mercadorias, dada que a colheita é voltada 100% para a venda, sem a presença da produção de subsistência. Porém, ainda segundo Marina, os camponeses da região não raro possuem (ou seja, não tomam em arrendamento) algumas pequenas glebas de, no máximo, 1 hectare, onde cultivam lavouras de subsistência. A terra que cada família camponesa do Encapoeirado trabalha, desenvolvendo a produção simples de mercadorias, varia entre 2 e 3 alqueires (entre 4.84 hectares e 7.26 hectares). Os que arrendam mais que 5 ou 6 alqueires, por regra, são camponeses ricos, dado que um sítio de tal extensão não consegue ser trabalhado por uma única família. A contratação de assalariados sazonais ou permanentes, para estes elementos, torna-se uma necessidade constante.


Ao perguntar sobre como é a relação dos lavradores com o arrendamento, ela me informa que todos os lavradores reclamam violentamente do ônus das rendas, sendo estas excessivamente caras para os lavradores pagarem. Nos empecilhos que se colocam à frente do desenvolvimento da produção, aparece também o problema dos atravessadores, dos comerciantes criminosos que pagam aos lavradores baixos preços pelas colheita devido à falta de recursos que estes possuem para garantir o escoamento da produção para os mercados, aproveitando-se também do fato de que, sendo as verduras e os tomates alimentos perecíveis, os lavradores devem vendê-las com rapidez sob pena de verem a colheita se deteriorar, fator este que os constrange também a venderem a produção a baixo preço. Questionei a Marina sobre o porquê de ainda existirem problemas tão grandes com os atravessadores mesmo com a existência de programas de escoamento para os camponeses como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o programa de compra de alimentos para a merenda escolar. A grande questão é que as verbas que tais programas recebem fornecem mercado apenas para uma pequena parte da produção dos camponeses. Exemplificando: Cada lavrador do Encapoeirado produz anualmente, em média, o equivalente a entre R$ 30 mil e R$ 50 mil (ainda que o atravessamento faça esse valor despencar para, em média, entre R$ 18 mil e R$ 30 mil anuais). Porém, neste mesmo ano de 2015, o PAA irá adquirir apenas R$ 8 mil de cada lavrador. Levando tudo isso em conta e ainda extraindo do dinheiro da produção o que cada lavrador deve pagar anualmente pelo arrendamento e com os gastos com insumos agrícolas (agrotóxicos, fertilizantes e adubação), observamos que não sobra mensalmente para as famílias camponesas, em sua grande maioria, o mínimo elementar para se manterem. Caso tais famílias não possuíssem pequenas glebas para cultivos de subsistência, passariam fome sem a menor sombra de dúvidas. Tais constatações mostram a urgente necessidade de, através da Revolução Agrária, varrermos de uma vez por todos tais elementos feudais e mercantis do campo como o arrendamento e o atravessamento, com o intuito de se melhorar urgentemente as condições de vida das massas camponesas e expandir o desenvolvimento das forças produtivas nas regiões rurais.


Antes de entrar pelas portas da Associação do Artesão e conversar com Marina e Lourdes, já havia constatado a presença de muitos tratores pelo Encapoeirado, no meio da estrada. De fato, segundo Marina, a maior parte do arado da terra no povoado já é realizado de maneira mecanizada, por tratores, embora a lavoura ainda seja colhida de forma 100% manual. O questionamento natural aparece: Como foi possível para os lavradores adquirirem tais tratores (ainda que estes sejam, em sua maioria, tratores obsoletos) se o arrendamento e o atravessamento sugam sem pena suas rendas mensais e anuais, e, se estes dificultam a aquisição até mesmo de produtos básicos, que dirá de meios de produção da indústria, como maquinários agrícolas? O PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) tem cedido aos lavradores a possibilidade de adquirirem tratores, dando a eles uma carência de três anos a partir da aquisição do trator para darem a entrada nas prestações e começarem a pagar o trator em parcelas. Porém, por conta dos problemas já conhecidos como o ônus do arrendamento e dos comerciantes inescrupulosos que impõem baixos preços sobre as colheitas dos camponeses, somados às adversidades naturais recentes (geadas que não raro varrem por completo às lavouras), a inadimplência de camponeses com o PRONAF tem aumento de forma exponencial. O endividamento dos lavradores da região por conta dos históricos problemas da agricultura camponesa torna-se fato corrente. Assim, diante de tais fatos, muitos lavradores, na impossibilidade de darem a entrada no pagamento ou de se manterem pagando as prestações, estão perdendo os tratores que haviam adquirido pelo PRONAF e aumentando seu endividamento. Ao perderem os tratores, voltam a arar e trabalhar as terras com os velhos instrumentos agrícolas rudimentares, como o arado a cavalo e a enxada, resultando numa brusca queda na produtividade e no aumento de prejuízos. Marina me alerta que as perspectivas dos camponeses para o ano de 2015 não são boas, por conta do aumento da inadimplência e das chuvas de granizo que destruíram muitas lavouras.


Diante do quadro descrito, penso que alguns comentários devem ser feitos acerca do programa da Revolução Agrária a ser aplicado na região: Como mobilizar os camponeses? Em torno de quais reivindicações? Por quais motivos? Para aplicar quais medidas? Já compreendemos como está organizada a estrutura agrária do local. Não existem imensas sesmarias improdutivas passíveis a serem ocupadas por camponeses sem terra e retalhadas em pequenas e médias propriedades, como feitas em ações de estruturação de acampamentos ao estilo MST. Toda a estrutura agrária está organizada em pequeníssimas parcelas anti-econômicas de terra (minifundismo) com camponeses atados aos minifúndios através do arrendamento. Não há a possibilidade efetiva de fazer ocupações de terras onde até mesmo os sítios organizados sob bases capitalistas (de propriedades dos camponeses ricos ou dos agrários capitalistas) possuem extensão muito inferior a 40 alqueires (aproximadamente 100 hectares). Há a absoluta predominância da produção simples de mercadorias, isto é, da produção de mercadorias baseada no trabalho pessoal, individual, dos produtores diretos, em detrimento da produção mercantil de tipo agrário-exportador (absolutamente predominante na zona da mata nordestina) ou da economia semi-natural (produção de subsistência que só comercializa os excedentes, como acontece no sertão nordestino).


Sob o princípio de nos apoiarmos principalmente nos camponeses pobres (por serem no campo a camada mais numerosa, mais pobre e cuja situação está mais próxima da do proletariado, tendendo a ter menos ilusões e vacilações pequeno-burguesas), nos assalariados agrícolas e na camada inferior dos camponeses médios (isto é, os camponeses médios que estão em vias de se arruinar), isolando politicamente os camponeses ricos e os agrários capitalistas, devemos trabalhar, na região, para aplicarmos o programa mínimo da reforma agrária proposto pela União Reconstrução Comunista: redução das rendas pagas pelos camponeses aos proprietários de terras (medida esta que tende a beneficiar inclusive a situação dos camponeses ricos, que também são oprimidos pelo arrendamento, transferindo grande parte deste ônus para os camponeses pobres e proletários rurais); execução de medidas emergenciais que golpeiem o capital comercial que se sustenta parasitariamente através da exploração dos extremos (pagando baixos preços para a produção dos camponeses e espoliando os consumidores urbanos), garantindo para os lavradores o pagamento de preços justos pela produção; cancelamento das dívidas dos camponeses; aumentos salariais para os assalariados agrícolas, barbaramente explorados.


Na aplicação do programa mínimo da reforma agrária no Encapoeirado, esta aplicação esbarra nos seguintes problemas, ponto por ponto: 1) a situação dos arrendatários no Encapoeirado é diferente da situação onde um punhado de senhores de terras detêm todas as terras do povoado e arrendam para os camponeses. Aqui, diferentes proprietários de diferentes glebas as arrendam para diferentes lavradores, tornando difícil unificar a reivindicação de todos os camponeses pela redução das rendas, dado que as relações entre o lavrador e o proprietário tomam formas infinitamente distintas. No caso em que há a situação onde um ou um punhado de proprietários arrendam as terras para todos os lavradores, pode-se aproveitar das contradições que todos possuem com este ou estes proprietários (muitas vezes, um ou outro é grileiro que já tomou algum pedaço de terra de alguém, esse ou aquele já gritou ou tratou mal algum membro da família de algum lavrador, etc.) para se culminar na questão final que é a redução das rendas. Tal situação, contudo, não se apresenta aqui; 2) o pagamento de preços justos para a produção dos camponeses equivaleria ao fim de uma fonte de lucros fabulosos para os comerciantes locais. Pagar R$20 ou R$30 pela caixa de 18 kg do tomate (o preço justo seria R$50 por caixa) na roça e negociá-la em Campinas, Sorocaba ou São Paulo por R$100 é uma mamata que estes comerciantes não estão dispostos a perder. Combater o atravessamento ao nível de impor sobre os atravessadores os preços a serem pagos demandaria um enorme nível de organização dos camponeses que ainda está longe de ser atingido na região. Caso porventura os camponeses do Encapoeirado se organizem e comecem a cobrar preços justos ou altos na venda, os atravessadores imediatamente sairiam do povoado e começariam a explorar camponeses em outros povoados de Apiaí, deixando os camponeses do Encapoeirado sem nenhuma possibilidade, de fato, de escoarem a produção, nem mesmo a preços baixos. Realizar uma ação deste tipo demandaria um nível de organização que cobrisse não apenas os camponeses de todo o Apiaí como também dos municípios limítrofes, tal que para os atravessadores não fosse rentável buscar fontes de lucro em regiões mais remotas (o preço do combustível, pedágios, etc., certamente não compensaria) e eles fossem realmente constrangidos, pela organização dos camponeses, a pagarem os preços justos pela produção (ou até mais caro, dependendo da situação concreta). Outra questão que se torna um empecilho para a luta contra o atravessamento é o problema da pistolagem. Os atravessadores costumam, diante de situações em que aparecem empecilhos a seus superlucros, empregarem o artifício da violência, da força física, das armas. Escutei histórias de uma situação que havia ocorrido alguns dias antes de eu chegar em Apiaí, de um conflito que ocorreu entre dois atravessadores. Um deles (cujo nome me esqueci), que dominava o povoado do Encapoeirado e pagava preços baixos pela colheita, passou a ter de concorrer com um atravessador novo que chegou por aquelas bandas, pagando preços maiores (ainda que não exatamente justos) pela produção dos camponeses. Ninguém mais queria vender para o primeiro, o que o fazia perder sua fonte de lucros. Imediatamente, este atravessador organizou a 'piazada' (termo local que se refere aos jovens vagabundos da região que se desinteressam pelo trabalho na roça e passam a vaguear errantes pelos bares e botecos, servindo ocasionalmente como pistoleiros destes atravessadores para conseguirem algum dinheiro) local e começou a fazer ameaças sobre o outro comerciante que estava pagando preços maiores pela produção e debandando-o na concorrência. Pela força do medo, este comerciante teve de deixar a região - o outro se manteve dominando os camponeses por meio dos baixos preços. A violência por parte de tais elementos, portanto, é um fator que não pode ser desprezado no decorrer da luta; 3) os camponeses ricos, devido ao fato de não possuírem meios técnicos modernos para extraírem dos camponeses pobres e assalariados agrícolas a mais-valia extraordinária ou relativa, extraem a mais-valia destes das maneiras mais arcaicas possíveis, através da mais-valia absoluta (isto é, o aumento do trabalho do operário apropriado pelo capitalista através da intensificação do trabalho dos operários agrícolas e do aumento da jornada de trabalho). Portanto, dado que parte considerável dos camponeses pobres e proletários rurais trabalham nas terras dos camponeses ricos, certamente o programa mínimo da reforma agrária esbarraria nestes interesses desses elementos semi-capitalistas e semi-feudais do campo. Mais um empecilho cuja solução devemos buscar ao examinarmos o problema de perto; 4) Salvo uma experiência guerrilheira ainda pouco conhecida durante os anos 70, levada a cabo no Vale do Ribeira pela VPR - Vanguarda Popular Revolucionária, o Vale do Ribeira permanece como uma região com parca experiência da luta camponesa em comparação com outras regiões de São Paulo, como o Pontal do Paranapanema, e Apiaí não foge a esta regra (para termos uma ideia, nos anos de 2013 e 2014, a região do Vale do Ribeira foi palco de apenas cinco conflitos pela posse da terra e da água, envolvendo cerca de 409 famílias indígenas e quilombolas, nos municípios de Iporanga, Iguape e Barra do Turvo). O sindicato rural de Apiaí e a Associação do Produtor Rural do Encapoeirado possuem uma atuação demasiadamente reformista e não combativa. Limitam-se a auxiliar os lavradores locais a passarem por cima da burocracia no processo de adquirirem empréstimos ou créditos do PRONAF, a cobrarem linhas de crédito do governo, nada além disso. Nada de ocupações de bancos ou edifícios do poder burguês-latifundiário, nada de enfrentamentos com os atravessadores e latifundiários. Assim, a concepção revolucionária sobre como deve prosseguir a luta agrária diante da predominância de concepções ultra-reformistas e semi-cristãs de "conciliação" é algo a ser propagandeado entre os lavradores para superarmos tal obstáculo. Explicar aos lavradores sobre a necessidade da aliança operário-camponesa é a tarefa fundamental dos revolucionários aqui da região.


Logo verificando meu interesse em conhecer de forma ainda mais profunda a situação local, Marina logo me põe em contato com a lavradora Juraci. Já em fim de época de colheita, Marina me avisa que Juraci ficaria feliz de conversar comigo e me conhecer, como estudante. Precisando de braços para ajudar na colheita, me ofereci como peão para expressar minha gratidão por novas informações que ela viria a me passar. Essa era também, claro, uma forma de pedir comida sem ter que pagar nada, e não sair com fama de cara de pau por entre a região. No outro dia, me encontro com Juraci e ela faz a gentileza de me levar até sua casa, localizada na cidade de Apiaí (não na zona rural) para tomar café antes do trabalho na lavoura. Quando chego a sua casa, me surpreendo ao ver que o que eu imaginava que seria uma casa simples de uma família camponesa mais se parece com uma mansão de um bairro rico da cidade de São Paulo. Na casa, televisões de última geração, três carros na garagem... Certamente, Juraci não me pareceu ser do estereótipo que a imprensa pinta como "vagabundo baderneiro do MST que não quer trabalhar e fica invadindo terras dos outros". De onde viria a fonte de renda para ostentar uma morada desse tipo? De fato, Juraci está entre as poucas lavradoras do Encapoeirado que é proprietária da terra que cultiva. Contudo, ainda que sendo proprietária de um sítio de 2 alqueires (4.84 hectares) onde planta principalmente tomate e, de forma secundária, outros hortigranjeiros como alface, couve e cebolinha, nem de longe isso seria o suficiente para adquirir uma casa luxuosa como aquela. De fato, perguntando a ela, Juraci me fala que não possui qualquer outra fonte de renda além da agricultura que pratica no sítio de 2 alqueires. Logo depois descobriria que o grande motivo de ostentar seu excelente padrão de vida, incomparável com qualquer morador do Encapoeirado que seja, é o fato de, apesar de ter origem camponesa (nasceu na roça, no mato, tendo trabalhado na lavoura desde pequena), viveu a maior parte de sua vida na cidade, onde conseguiu acumular bastante dinheiro para conseguir depois, cansada da vida urbana, regressar para seu local de origem, contudo, sob condições infinitamente diversas em comparação com a qual viveu na infância. Além disso, seu marido (que também a ajuda com o trabalho na lavoura) foi técnico em edificações na Odebrecht, de profissão. Deixou o emprego na cidade para acompanhar sua mulher no desejo de regressar ao local de origem, também com muito dinheiro acumulado.


Após tomarmos café, seu marido pega o carro e vamos juntos para o sítio de Juraci nas proximidades do Encapoeirado. Olhando para os instrumentos de trabalho dentro do armazém próximo à lavoura do sítio, testemunho um indivíduo entrando no armazém de moto. Logo o cumprimento. Ele se apresenta como o lavrador João, irmão de Juraci, que trabalha em "parceria" com ela na lavoura. E que tipo de parceria? João é o irmão pobre de Juraci, possui poucas terras (além disso, ruins) e poucos recursos financeiros para levar a cabo um empreendimento como o da lavoura do tomate. Assim, a parceria consiste em que João trabalha o sítio da irmã, possui o direito de ficar na casa do sítio, e, no final da colheita, dá a ela metade da produção pelos direitos que recebe. É o meeiro do sítio, caracterizando aqui a relação feudal da renda-produto - fato curioso diante das informações dadas pela artesã Marina, segundo a qual o arrendamento na região se dava exclusivamente na forma de renda-dinheiro. Acabei depois entendendo que todas as formas feudais de exploração diferentes da renda agrária do tipo renda-dinheiro (isto é, as formas do tipo renda-trabalho e renda-produto) não são compreendidas pelas pessoas da região pelo termo "arrendamento". Para se referirem à renda-produto, utilizam exclusivamente o termo "meeiro" (compreendendo aquele lavrador sem terra que concede metade da produção para o proprietário pelo direito de trabalhar a terra) ou "parceria". Em Guapiara, escutei de um senhor aposentado, ex lavrador, o termo "fôro" para referir-se à renda paga pelo lavrador ao proprietário - "às vezes o preço fica tão baixo que nem pagar o 'fôro' o pessoal aqui consegue". Creio que daí surge a incompreensão de Marina ao ter me dito que em Apiaí e no Encapoeirado só existe a renda-dinheiro. Juraci, no final do dia, me diria que "têm bastante" meeiros por aqui. No sítio de Juraci, ainda que o trabalho no arado seja feito pelo trator do armazém (pelo elevado poder de compra de Juraci em comparação com outros da região, desconfio seriamente que o trator que usam no sítio seja dela mesmo, sem ter precisado adquiri-lo pelo PRONAF), há várias partes das terras do sítio que, por conta do terreno montanhoso e com muitos declives, o trator não consegue entrar. Para arar essas partes, eles contrataram um lavrador que possui um cavalo para puxar o arado e trabalhar essas partes que o trator não consegue entrar, dando ao lavrador uma diária de R$ 30. Segundo João me havia dito, este mesmo lavrador que eles pagaram para passar o arado a cavalo nessas terras, trabalha por diária em terras de muitas pessoas e é ao mesmo tempo um camponês sem-terra. Trabalha de meeiro um pedaço de terra de um terceiro e, na impossibilidade de se manter apenas como meeiro, precisa de tais pequenos trabalhos para complementar a renda. É o elemento do campo que se encaixa no que definimos como camponês pobre, o "semi-proletário da aldeia", nas palavras de Lênin. Verificar a parcela dos camponeses do Encapoeirado que vivem nas mesmas condições (é o pessoal que vive sob as piores condições de vida por serem camponeses pobres) seria algo que me demandaria mais alguns dias na região.


Quando chego no sítio, o trabalho na colheita já havia começado há alguns minutos. João me mandou descer e ir ajudar Leonardo, seu sobrinho, na colheita, enquanto ele pulverizava o agrotóxico na lavoura. Tudo estaria 100% bem - afinal, a fadiga do trabalho pesado na colheita era compensado pelo clima frio, muito bom, e pela paisagem bonita, montanhosa - se não fosse o agrotóxico vir todo no meu rosto enquanto eu colhia os tomates na rua de baixo. Enfim, faz parte do trampo... após umas duas ou três horas depois de trabalho na lavoura, eu e Léo subimos para almoçar, é bom para aproveitar e experimentar a comida que João fez. Esse camponês, por sinal, é um exímio cozinheiro...


O almoço é sempre uma hora boa para descontrair, contar piadas, conversar e puxar mais informações sobre a situação dos camponeses. Fora Léo dando risada do fato de eu não haver conseguido de fato fazer as pazes com o cachorro com quem pisei acidentalmente na patinha antes de entrar no sítio para começar o trabalho na colheita, tudo andou bem. Apostei que até o final do dia conseguiria conquistar a confiança do cão, empreitada na qual fracassei, infelizmente. Ao longo do almoço, pude perceber em alguns comportamentos por parte do tio de Leonardo aquilo que aqui na cidade conhecemos como a "ingenuidade do homem do campo". Recordo-me de que, quando pedi a João para tirar uma foto sua, ele me solta: "acho que se você colocar isso na interrrrnetê, é capaz até de eu ficar famoso" (sim, muita ênfase nos "erres" e no "ê", reproduzindo o sotaque típico do sul brasileiro na parte do Paraná). Porém, ele não falou isso em tom de brincadeira, falou sério. Comentando isso, dessa vez em tom de brincadeira, falei que como ele vai ficar famoso porque vou colocar a foto na internet, qualquer dia o Ratinho apareceria lá no sítio, levaria ele pro programa e deixaria ele milionário. Seria a leva pra deixar de ser meeiro e virar fazendeiro, sem ter que ficar se matando todo santo dia na colheita...


Leonardo, sobrinho de João, é um lavrador de 16 anos de idade, e desde os 13 trabalha junto com a família nos trabalhos pesados típicos do campo. Antes dos 13, porém, fazia apenas alguns poucos trabalhos mais leves, como apanhar frutos nas árvores, cuidar das galinhas, alimentar animais, etc. Além de lavrador, João também é estudante - estuda na parte da noite após ficar o dia todo trabalhando no campo - e, segundo ele, todos seus amigos de classe também são camponeses. Conciliar o trabalho difícil no campo com a vida de estudante parece não ser a coisa mais fácil do mundo. No dia em que conversei com ele, ele teria prova pela noite, embora nem soubesse de qual matéria seria a prova... afinal, isso se justifica (não pela preguiça). Por várias vezes, ele comentou comigo que estava preocupado pois deveria acordar amanhã cedo de novo, para continuar colhendo tomate. Dessa vez, na terra que sua família tem em arrendamento, não na terra da tia Juraci. Com tanta cabeça na roça, não sobra muita cabeça para estudar. A educação e o estudo por aqui por essas bandas, pelo que me pareceu, serão mais um problema a ser resolvido pelos revolucionários.


Depois do almoço, eu e Léo descemos para o rio, um pouco mais abaixo da lavoura. Descansamos e jogamos conversa fora, em conversas que iam desde debates sobre preços justos para a colheita e ajustes corretos dos preços para o arrendamento até times de futebol (ele é corinthiano) e Playstation. Após alguns minutos descansando lá, subimos o morro e voltamos para a lavoura para continuarmos a colheita. Após João voltar da cidade de Apiaí, já havíamos acabado a colheita do dia e ficamos apenas conversando. A chegada de João coincidiu mais ou menos com a chegada de dona Juraci ao sítio, quando terminamos o dia basicamente tirando as folhas secas das cebolinhas e arrancando as ervas daninhas que cresciam próximas à alface.


Já no por do sol, por volta de umas 17h, me despeço de Léo (já estava próximo do horário de ele ir para a aula), de João, que ia deixar o sobrinho de moto no ponto de ônibus, e desço com Jura e seu marido para a cidade de Apiaí, para dormir e acordar cedo no outro dia para ir para Guapiara.


GUAPIARA

Levando em conta as informações que já havia recebido anteriormente sobre alguns aspectos do campesinato de Guapiara, fui lá aprofundar a investigação e tirar certos pontos a limpo. Acordei às 6h30 para pegar, na rodoviária de Apiaí, o ônibus que saia às 8h da manhã. Com os ouvidos sempre a postos, uma conversa que escuto entre um rapaz e uma mulher sentados bem ao meu lado me remete a uma questão que esqueci de questionar entre os lavradores de Apiaí: A relação entre a população e os políticos. A moça falava para o rapaz sobre um político que, em época de eleição, apareceu pelo povoado Fazendinha, em Guapiara, prometendo melhor acesso por parte dos lavradores aos tratores (ou seja, aumentar o número de tratores em posse da prefeitura) que a prefeitura possui. Como na prefeitura há apenas um pequeníssimo número de tratores para as dezenas de milhares de lavradores de Guapiara, as filas para o uso do trator demoram meses e sempre caem em épocas que não são época de arado, ou seja, em períodos em que os lavradores não estão precisando dos tratores. Por conta disso, os lavradores permanecem lavrando a terra com os instrumentos rudimentares (arado a cavalo e enxada). Os que possuem condições um pouco melhores conseguem contratar o caríssimo serviço do tratorista (R$120 por hora). Ainda que prometendo para a população da Fazendinha estes tratores e não cumprindo a promessa após ser eleito, certamente aparecerá no próximo ano algum politiqueiro fazendo as mesmas promessas enganosas para a população. Este que agora prometeu os tratores e não cumpriu a promessa, segundo o que a moça falava, não aparece mais na Fazendinha com medo de ser linchado. Nesse caso, o boicote ativo e politizado à farsa eleitoral deve ser uma atitude estimulada entre os camponeses por parte dos revolucionários, boicote este aliado à propaganda ativa das tarefas e reivindicações concretas do programa mínimo da reforma agrária proposto pela União Reconstrução Comunista.


Ao chegar à rodoviária de Guapiara e descer do ônibus, já sabia exatamente para onde ir graças às informações anteriormente fornecidas. O negócio agora seria esperar umas duas ou três horas até o ônibus chegar para me dirigir ao povoado Santana e continuar a investigação. Após o ônibus chegar, uns vinte minutos de corrida bastariam para chegar em frente a uma estrada de barro, com uns jumentos em volta, com umas placas indicando que eu deveria ainda andar uns 5 quilômetros até chegar ao "Santanão" (o povoado Santana divide-se em "Santaninha" e "Santanão"). Sigo andando até encontrar uma lavradora numa lavoura, cuidando das verduras, e pergunto qual caminho tenho que seguir (se tenho ou não que pegar alguma estradinha auxiliar ao lado). Era só seguir reto e chegava tranquilamente no Santanão, após passar pelo Santaninha. A lavradora que me deu a informação não era proprietária da terra que cultivava, era posseira; seu marido era um assalariado agrícola nas plantações de eucalipto, indicando que muito provavelmente encontrei uma mãe de uma família de camponeses pobres daqui do Santana. Continuando a andar, logo depois me para uma Land Rover vermelha, aqueles carrões do ano, bem na minha frente. Era um morador da região querendo me dar uma carona, naquele típico habito das pessoas locais de serem prestativas e de darem ajuda a quem precisa. O homem que me deu carona era Toninho Mineiro, lavrador, com quem tive oportunidade de ter uma breve conversa enquanto íamos para o Santanão. Logo após começarmos a conversar, ele me solta que não é arrendatário de terras alheias. É proprietário de um sítio de apenas 2 hectares que trabalha com a família e ocasionalmente contrata funcionários. Reclamou muito da alta do dólar, pois como os insumos agrícolas como adubação, agrotóxicos, fertilizantes, etc. são quase todos importados, o aumento do dólar imediatamente golpeia os produtores do campo dependentes de tais pacotes tecnológicos do estrangeiro. Atacou também Dilma Rousseff por conta do aumento da conta de luz e dos cortes de linhas de crédito para os lavradores, feitas logo no início deste ano de 2015. Posto diante de tais informações, os questionamentos me aparecem. Como patavina um proprietário de um minúsculo minifúndio de apenas 2 hectares teria dinheiro suficiente para comprar o carrão do ano e, também, para adquirir um caminhão (e ainda pagar o caminhoneiro!) que levasse sua produção para os mercados em Campinas e Sorocaba? Ele mentiu sobre seus verdadeiros domínios. "Escondeu o leite", na linguagem popular. Eu descobriria depois que este homem, Toninho Mineiro, é um grande proprietário (somente um dos sítios dos quais ele é proprietário, na entrada no Santanão, possui ao menos 20 alqueires, quase 50 hectares, segundo informações passadas... isso porque este nem é o único sítio do qual ele é dono!) e atravessador ocasional. Em época de safra, sempre compra parte da produção dos camponeses do Santanão a preços baixos para escoar nos mercados e manter seus altos lucros, como bom capitalista comercial.


Ao longo de nosso trajeto, pude constatar algumas coisas que me ajudariam a traçar uma análise de classes local. Toninho Mineiro sempre parava para cumprimentar pessoas próximas que andavam na estrada. A primeira pessoa que paramos para conversar foi com um lavrador jovem, proprietário de 0.25 hectare de terra (segundo Toninho Mineiro), que ficara de fazer uns trabalhos como caminhoneiro para Toninho Mineiro. Camponês pobre? É o primeiro indício que constato. Também paramos na estrada um lavrador, bem em frente a sua casa de madeira palafita, que, após conversar com ele (era amigo de Toninho Mineiro), descobri que se tratava de um meeiro (camponês sem terra, parceiro, que dá metade da colheita para o proprietário em forma de renda da terra) que, ao mesmo tempo, trabalhava de "forma" - isto é, assalariado agrícola em terras alheias, trabalhando por salário mensal (ao invés de diária). Mais um que aqui se encaixa na definição de camponês pobre. Nossa principal base de apoio para levar a cabo a Revolução agrária anti-feudal na região.


A casa do meeiro pobre que vi, palafita, fica já nos limites do povoado Santaninha. Mais um pouco, chegamos no povoado Santanão, me despedindo de Toninho Mineiro, agradecendo pela carona e descendo para continuar a conhecer a região. Com fome, faço questão de, na cara de pau, me "instalar" na primeira (e única) mercearia do povoado Santana que vejo pela frente, após me apresentar para o seu dono, Mauro. Sendo ele o dono da mercearia, onde todo mundo sempre aparece para tomar uma pinga de noite, conversar e falar da vida, certamente ele seria uma das pessoas mais apropriadas para falar sobre a situação dos camponeses. Descrevendo, em síntese, as informações que Mauro me passou:


Algumas coisas que o professor de educação infantil me informou na ida para Apiaí acabaram se confirmando através do relato do Mauro. Mauro me informou que, assim como em Apiaí, a grande maioria dos lavradores do povoado Santana, e de Guapiara como um todo, não possuem terras para plantar e são obrigados a tomá-las em arrendamento. Um lavrador que viria a conhecer logo depois, Lazinho (seu Lázaro), me diria que, de cada dez lavradores do Santana, seis ou sete são arrendatários. O fato de as rendas que os lavradores pagam anualmente aos senhores de terras ser relativamente menor em comparação às que os camponeses de Apiaí pagam (enquanto que em Apiaí os senhores de terras cobram R$ 6 mil por alqueire anualmente, por aqui esse preço varia entre R$ 1,5 mil e R$ 3 mil anuais, podendo em casos excepcionais chegar a R$ 4,5 mil anuais) indica ser a agricultura de Guapiara menos produtiva que a de Apiaí. Aqui, apesar de a cultura do tomate (a que dá mais dinheiro) ser também forte, há uma diversificação muito maior em comparação com Apiaí no plantio de outras culturas, como repolho, alface, pimentão, milho, feijão, etc., para venda. Em Apiaí, por exemplo, não conheci nenhum lavrador que não fosse também "tomateiro". Em Guapiara, parte considerável dos camponeses não planta tomate ou só o tem como cultura acessória. Aqui em Guapiara, também, as extensões das terras são menores que em Apiaí, há uma maior presença do minifundismo em comparação com Apiaí. O lavrador Lazinho, por exemplo, trabalha apenas 1 alqueire de terra arrendado, pagando R$1,5 mil anualmente, achando esse valor muito caro para arcar diante da pouca produção (não produz tomates). Outro lavrador que conheci, Marcão, arrenda somente 0.5 alqueires (1.21 hectare), pedaço de terra demasiadamente pequeno para uma pessoa ter em arrendamento, encontrando-se este indivíduo, assim, na categoria de camponês pobre. O próprio Mauro, ainda que a maior parte de sua renda venha da mercearia que mantém dentro de sua própria casa, é também um camponês nos 0.31 alqueires (0.75 hectares) que toma em arrendamento. Solange, uma amiga da família de Mauro que tive também a oportunidade de conhecer, é lavradora nos 0.4 alqueires (quase 1 hectare) de terra que arrenda.


Na aplicação, por aqui por essas bandas, do programa mínimo da reforma agrária proposto pela União Reconstrução Comunista, há algumas facilidades no que tange à luta contra as rendas, em comparação com Apiaí. Segundo Mauro me informou, há, no povoado Santana, cerca de quatro ou cinco famílias donas de grandes extensões de terras, que arrendam suas terras para os lavradores do Santana, constituindo a classe latifundiária local (leia-se: quando falamos, para os padrões da região, em latifundiários, não nos referimos aos proprietários de imensas porções de terras de mil ou 2 mil hectares, mas de, na melhor das hipóteses, 41, 62 ou 83 alqueires, por volta disto). Neste sentido, há a possibilidade fácil e efetiva de se unificar a reivindicação de todos os camponeses na luta pela redução das rendas, tarefa que no povoado Encapoeirado, em Apiaí, esbarra nas dificuldades que já mencionamos.


A extensão muito pequena das terras trabalhadas no Santana, o menor preço das rendas pagas aos senhores de terras, são duas características que diferenciam Guapiara de Apiaí, ou o Santana do Encapoeirado. E quanto ao nível técnico do arado, da colheita e dos demais trabalhos acessórios da roça? Assim como no Encapoeirado, a maior parte do arado das terras (uns 60%, segundo Antônio Mineiro) é realizado por tratores que os camponeses adquirem através do PRONAF, embora o arado a cavalo ainda seja usado não só no arado como em outros trabalhos acessórios no campo. A colheita, aqui, assim como no Encapoeirado, é feita de maneira 100% manual. A única exceção para a colheita manual é a cultura da soja, que somente de uma maneira incipiente tem chegado pelos arredores do povoado Santana. Na cultura da soja, a colheita é feita de maneira mecanizada, por máquinas colheitadeiras importadas do exterior e emprestada para os capitalistas agrícolas. A situação da relação dos camponeses com os tratores tende a se desenvolver de maneira semelhante à dos camponeses do Encapoeirado, excepcionando-se que, ainda que no povoado Santana o endividamento de camponeses seja também um triste acontecimento generalizado, o fato de o PRONAF ser em Guapiara um programa extremamente recente até mesmo em comparação com Apiaí (os camponeses do Santana só começaram a adquirir tratores pelo PRONAF de uns três ou quatro anos para cá), não se deu ainda a situação em que apareceram agentes do governo no povoado para tomarem de volta tratores emprestados para lavradores inadimplentes. A maioria dos que aqui entraram no PRONAF sequer atravessaram o período de carência para darem a entrada no pagamento, anterior às prestações.


A relação da população com os atravessadores, aqui, toma uma forma não muito diferente da forma que toma em Apiaí, salvo exceção para algumas histórias bizarras que escutei no que tange a isto. Sabemos que o preço justo que um lavrador, na roça, negocia uma caixa (18 kg) de tomate é R$ 50. Porém, os atravessadores, por regra, só pagam para os camponeses preços como R$ 20, R$ 30. Na safra que houve ano passado, apareceu pelo Santana um atravessador que estava prometendo R$ 70 por caixa, fazendo os olhos dos camponeses brilharem diante da possibilidade de lucro fácil. Todos foram vendendo e ele, o espertalhão, foi distribuindo cheques para todo mundo, a torto e a direito. Quando os lavradores foram ao banco retirar o dinheiro do cheque, haviam visto que tinham sido enganados. O cheque que o atravessador distribuiu para os camponeses era sem fundo, impondo duros prejuízos sobre a população do Santana. Um pilantra sem tamanho o fulano. Nesta última safra, deste ano de 2015, ocorreu mais um conflito entre os atravessadores e os camponeses. O conflito se deu da seguinte maneira: Ainda que os lavradores tenham escoado toda sua produção para o mercado por meio dos atravessadores, estes ainda não pagaram para os camponeses o dinheiro que ainda estão devendo da colheita que compraram. João, um lavrador de 60 anos da região, dono de um sítio grande de 14 alqueires (quase 34 hectares), está entre os lavradores para os quais os atravessadores ainda devem dinheiro. Ele me solta de uma maneira otimista que eles "vão pagar", não parecendo demonstrar dúvida no que diz respeito a isso. Contudo, enquanto o dinheiro da colheita não vem, as dívidas para pagar com as casas de veneno, as contas de luz, água, impostos e todo tipo de contas secundárias que vão aparecendo como ervas daninhas continuando vindo e saqueando o bolso dos lavradores. O justo, neste caso, seria que os atravessadores pagassem para os camponeses suas dívidas com juros acumulados do tempo que ficaram sem pagar. Porém, numa situação em que os atravessadores têm os camponeses na coleira, fica difícil, sem o devido nível de organização necessário, querer impor sobre os atravessadores um ônus a essa altura.


Aqui no Santana e em Guapiara não há (ao contrário do que disse meu colega que conheci no ônibus de Guapiara para Apiaí) arrendamentos em que os camponeses pagam 70% da colheita para os proprietários da terra. Embora haja de maneira muito pequena os arrendamentos em que os camponeses dão 50% da colheita para o senhor de terra (meeiro), a forma quase absolutamente predominante de renda agrária pré-capitalista é a renda-dinheiro. Até mesmo conversando com pessoas mais velhas, elas me informam que esta sempre foi a situação por aqui. A renda-dinheiro sempre foi a forma absolutamente predominante, tendo a renda-produto sempre cumprido um papel secundário. A renda-trabalho (corvéia), forma de renda em que os lavradores pagam a renda agrária para os senhores de terras em dias de trabalho durante a semana, nunca existiu por essas bandas, nem nos períodos mais remotos.


A conversa animada que tive com Mauro me rendeu umas mortadelas de cortesia, servindo pelo menos para enganar o estômago e continuar a investigação pelo Santana. Subindo a estrada de barro depois da casa de Lazinho, me deparo com um trabalhador andando a cavalo, já nas proximidades do sítio desconhecido para o qual eu me dirigia. Abordando-o e falando com ele sobre minha intenção no local, descubro que ele estava indo para o sítio de um proprietário mais rico onde iria falar sobre o serviço que iria fazer, no outro dia, de passar o arado a cavalo na roça deste, recebendo R$30 pelo dia de trabalho realizado. Este trabalhador que conheci era o agricultor pobre Antônio Augusto. Ao me receber de forma bastante receptiva em sua casa (diz ele: "Ô rapaz, quer entrar pra tomar um café?") para conversarmos mais sobre a situação da região, consegui compreender de forma mais precisa o porquê de os lavradores que não conseguem se manter com o trabalho de produtores individuais e precisam se assalariar em terras alheias são chamados de "camponeses pobres" na literatura marxista: Os camponeses que, aqui, trabalham ocasional ou completamente por salário (seja na forma de diária ou de "forma"), são por regra os que vivem sob as piores condições de existência. Antônio Augusto e sua família vivem num pobre casebre de madeira, chão de barro, banheiro do lado de fora da casa, etc.: um casebre muito pequeno e pouco confortável para as mais de dez pessoas que lá habitam.


Na casa de Antônio estava também seu irmão, Joaquim Augusto. Joaquim Augusto trabalha como assalariado nas terras arrendadas por capitalistas agrícolas da região de Ribeirão Preto, que vieram para Guapiara investir na produção de tomate muito provavelmente por conta de facilidades fiscais, da proximidade com os mercados consumidores e de as terras serem muito apropriadas para o cultivo desta cultura. Diferentemente de Antônio, que trabalha em terras alheias como diarista, Joaquim é um assalariado fixo, com carteira assinada inclusive, encaixando-se perfeitamente na definição que conhecemos como proletário agrícola. Antônio Augusto cultiva um hectare de terra herdado da mãe, não estando submetido, assim, ao ônus do pagamento das rendas como a maioria dos lavradores do Santana. Na gleba, produz hortigranjeiros, vendendo toda a produção para atravessadores, caracterizando a produção simples de mercadorias. Na conversa que tivemos, pude ter algumas informações novas sobre a situação da região. Referindo-se ao grupo de atravessadores que domina o bairro do Santana, Antônio me falou sobre um conflito que se deu entre eles (como escutei também em Apiaí), quando uma empresa comercial de Sorocaba chegou no local dando pagando preços melhores pela produção dos camponeses, "atrapalhando a vida" dos comerciantes que estavam pagando preços baixos no escoamento da produção. O desfecho deste conflito, contudo, se deu de forma pacífica, com esta empresa de Sorocaba passando a partir de então a integrar o seleto grupo de atravessadores que ganham fabulosos lucros através da exploração do povo. Segundo Antônio, não apenas os atravessadores como também as casas de veneno (que importam agrotóxicos do exterior e revendem para os lavradores) estão arrancando o couro da população local através de métodos usurários. Como por conta dos velhos problemas do atravessamento, do arrendamento e do minifundismo, a população local por regra não consegue ficar em dia com as prestações dos empréstimos que tomam para a aquisição de agrotóxicos. Assim, a extração do trabalho suplementar dos trabalhadores rurais por meio de elevadas taxas de juros sobre empréstimos (que tomam com as próprias casas de veneno) é mais um dos fatores que entrava o desenvolvimento das forças produtivas por aqui pela região. Antônio criticou violentamente a casa de veneno Agromaia, que, segundo ele, haviam casos de lavradores cujos empréstimos que pagavam de volta para esta casa de veneno dobravam em relação ao que tomaram.


Depois de conversar, agradeço pela recepção, pelas informações, e volto para o Santana, instalando-me na mercearia do Mauro para assistir o Rei do Gado (novela que tinha tudo a ver com o que eu estava fazendo lá) e jogar conversa fora com ele. Já havia andado demais e não estava disposto a ir ainda mais longe para prosseguir com as investigações, também pelo fato de já estarmos no pôr do sol, prestes a escurecer... quando chega à noite, começam a entrar na mercearia mais da gente local para tomarem a típica pinga depois de um dia inteiro de trabalho na roça. Acompanhando-os na pinga e conversando com muitos deles, posso dizer que dentre todos os que conversei, a figura do rico Ailton foi a quem mais me fez refletir acerca de um elemento do campo que eu ainda não havia visto, até então, nem em Apiaí e nem em Guapiara: o camponês rico. Ailton é, efetivamente, um lavrador rico segundo os critérios marxistas. Emprega permanentemente por volta de três ou quatro assalariados rurais em todos os trabalhos da lavoura, ao mesmo tempo em que ele mesmo e sua família também realizam trabalho braçal na roça (seu filho de 17 anos também é um camponês na roça do pai). Ailton, assim como a grande maioria dos camponeses de Santana, também é arrendatário. Arrenda, porém, 5 alqueires de terra (pouco mais de 12 hectares), um sítio grande para os padrões locais, diferenciando-o dos lavradores restantes que são, em sua maioria, pobres. Sendo ele, ao mesmo tempo, arrendatário, camponês e empregador de trabalho assalariado agrícola, é um elemento semicapitalista do campo, que também sofre com ônus das rendas, de R$ 3 mil anuais por alqueire. Ao todo, R$ 15 mil por ano somente com o arrendamento. Prosseguindo a conversa que já estava tendo com ele, após sairmos da mercearia do Mauro e caminharmos rumo à sua casa (onde iria jantar e "pousar", pelo palavreado local), pude constatar de perto através de seu falatório o porquê de os camponeses ricos poderem ser, também, elementos semifeudais do campo. Ailton aplica sem sombra de dúvidas a coação extraeconômica contra seus assalariados agrícolas. Durante a conversa, ele havia comentado - todo cheio de si - que já chegou a ter duas famílias morando no seu terreno, trabalhando para ele na lavoura. "Morar no terreno" do lavrador rico Ailton significa mais do que simplesmente possuir um local para morar. Significa também, na relação entre o assalariado agrícola e o camponês rico, se submeter a uma obrigação para além da mera relação entre contratante e o contratado, isto é, uma coação que vai para além da questão econômica - um traço pré-capitalista. Como os assalariados que trabalham na roça de Ailton são extremamente pobres, por regra não possuem local para morar. Recebem uma casa como "benefício" por trabalharem com ele. Porém, caso se mostrem insatisfeitos com baixos salários, condições de trabalho ruins (o trabalho na agricultura é um dos serviços mais pesados que existem), e não queiram mais trabalhar para Ailton, ele possui o poder de expulsá-los da casa onde estão vivendo no terreno dele. As duas famílias que moravam em seu terreno tiveram de ser expulsas pelo fato de os negócios não estarem andando bem. Enquanto estávamos conversando durante a janta que sua mulher fez, Ailton soltou posições políticas bastante atrasadas, criticando a suposta "lei do PT" que impedia crianças e adolescentes de trabalharem, o que segundo ele "estimularia a vagabundagem". Saberia ele que as políticas anti-povo e anti-nação levadas a cabo pelo governo do PT, bem como o PL 4330, seriam fatores que viriam a estimular ainda mais o trabalho infantil no país, tirando crianças da vagabundagem às milhões? Esta opinião é, infelizmente, um traço feudal ainda vigente na mentalidade de um camponês rico, ainda que este, paradoxalmente, seja um elemento do povo, que deve através da persuasão ser atraído para o programa mínimo da Revolução agrária anti-feudal da União Reconstrução Comunista.


No outro dia, Ailton me deu carona para o centro de Guapiara e pude pegar o ônibus de volta para São Paulo. A investigação no Vale do Ribeira me deixou com muitas histórias para contar para os companheiros mais próximos, bem como com um estímulo ainda maior para prosseguir na luta para levar a cabo e consolidar a aliança operário-camponesa.


por Alexandre Rosendo

Relatório da viagem feita em 2015

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HISTÓRIA DAS
REVOLUÇÕES

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