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"Abu Shawqi resistiu à ocupação por toda a sua vida"

  • Foto do escritor: NOVACULTURA.info
    NOVACULTURA.info
  • há 18 horas
  • 6 min de leitura
A foto foi tirada pelo avô do autor na década de 1960, quando a casa da família estava em construção sob liderança de Abu Shawqi
A foto foi tirada pelo avô do autor na década de 1960, quando a casa da família estava em construção sob liderança de Abu Shawqi

 

A foto acima foi tirada pelo avô do autor na década de 1960, quando a casa da família estava em construção sob a liderança de Abu Shawqi

 

Algumas histórias vêm dos livros, mas aquelas que moldam você geralmente vêm das pessoas sentadas bem à sua frente. Essas histórias carregam consigo anos que você nunca viveu, mas que de alguma forma herdou.

 

Para mim, essas histórias vieram através de Abu Shawqi.

 

Abu Shawqi era Ziad Sbaih, tio de meu pai e avô do meu melhor amigo Mahmoud.

 

Ele nasceu em Gaza em 1947, um ano antes da Nakba – a expulsão de 1948 do povo palestino da maior parte da Palestina pelas milícias sionistas – em um mundo tão diferente do meu, mas ligado a ele pelo sangue e pela geografia.

 

Quando criança, eu ia quase todas as manhãs à casa de Abu Shawqi, na rua al-Sahaba, no bairro de al-Daraj, na Cidade de Gaza, para esperar Mahmoud e irmos juntos para a escola.

 

A mercearia de Abu Shawqi ficava logo na porta da frente, com prateleiras cheias de biscoitos, chá e enlatados.

 

Ele abria cedo, muito antes de as ruas se encherem com o barulho do dia. Eu me sentava com ele até Mahmoud descer.

 

Um dia, perguntei-lhe, por curiosidade, como ele conseguira possuir um prédio tão grande apenas administrando uma mercearia.

 

Ele me olhou com um meio sorriso e disse:

 

“Eu costumava ser empreiteiro. Trabalhei por 30 anos. Inclusive construí a casa onde você mora e todas as casas da nossa família neste bairro, inclusive esse prédio que você acha enorme.”

 

Lembro-me de ter ficado ali, atônito.

 

Seria possível que nossos avós tivessem vidas inteiras antes mesmo de nascermos, histórias e conquistas que nunca imaginamos? Naquele momento, passei a vê-lo de outra forma, não apenas como o homem que me dava bolinhos – o que em Gaza chamamos de cakes – de manhã, mas como alguém que havia construído grande parte do mundo ao meu redor.

 

Mahmoud desceu as escadas e a manhã seguiu. Levantei-me e coloquei a mochila no ombro.

 

Antes de eu sair, Abu Shawqi pressionou o bolo em minha mão.

 

Na escola, a ideia não me deixou. Aquele homem atrás do balcão de biscoitos e chá era o mesmo que havia construído as paredes ao meu redor, o teto sob o qual eu dormia.

 

Abu Shawqi, o contador de histórias

 

A partir de então, sentar-me com Abu Shawqi deixou de ser apenas passar o tempo e se tornou ouvir, como se cada história contivesse uma informação, uma pista, que me conectava a uma vida que eu nunca conheci.

 

Aquelas manhãs na mercearia me transportavam para outra Gaza; uma que eu nunca havia vivido, mas que começava a se materializar por meio de suas palavras.

 

Ele falava com saudade da infância na rua al-Sahaba nos anos 1950.

 

Fechava os olhos e lembrava da comida de sua mãe e de como a família se reunia em círculo no chão para comer juntos. O que ele mais sentia falta era do pão fresco e dourado, assado no forno de barro, cujo calor e aroma enchiam a casa.

 

Sua mãe era dona de casa, enquanto seu pai trabalhava como pedreiro. Abu Shawqi tinha dois irmãos mais velhos, incluindo meu avô, Abu Adel, e cinco irmãos mais novos.

 

Ele falava de meu avô, que faleceu dois anos antes da guerra, com uma mistura de tristeza e ternura.

 

Durante esta guerra genocida, mesmo quando fechava a loja, de vez em quando minha família estendida se reunia à tarde em sua soleira aquecida pelo sol para conversar e ouvir suas histórias.

 

Ele pedia aos netos que trouxessem cadeiras e as arrumassem em círculo, e à esposa que preparasse chá para os convidados. Sentava-se no meio, com sua bengala de madeira no colo e um copo de chá quente na mão, esperando todos se acomodarem ao redor.

 

Então, começava a nos contar suas histórias.

 

Nossa segunda pele

 

Abu Shawqi geralmente começava a falar quando alguém fazia uma pergunta simples sobre o antigo bairro, um prédio específico ou um rosto em uma fotografia. Suas respostas nunca eram curtas.

 

Ele não preparava suas histórias nem as marcava com um início dramático; elas surgiam naturalmente na conversa.

 

O que estávamos vivendo, dizia ele – os massacres, a fome, os deslocamentos em massa sem fim – não era novo, apenas mais agudo, mais cruel. Ele dizia que os palestinos nasciam no sofrimento, carregando-o como uma segunda pele: ocupação, cerco, exílio sem sair de casa.

 

Ele descrevia sua infância em Gaza após a Nakba como uma vida em exílio em sua própria terra, uma existência estranha em que você herda a terra de seus ancestrais, mas é tratado como invasor. Estabilidade era algo que ele nunca teve a chance de experimentar, pois lhe fora roubada muito antes de saber o que significava.

 

A Naksa, ou derrota, em 1967 marcou outro ponto de virada em sua vida, quando as ruas familiares de Gaza foram moldadas pela guerra, pelo deslocamento e pela pesada presença da ocupação.

 

“Vivíamos em um estado constante de alerta”, disse Abu Shawqi. “Os soldados patrulhavam as ruas, sua presença era um lembrete diário de que não tínhamos controle sobre nossa própria terra.”

 

Toques de recolher confinavam as famílias em casa, e prisões arbitrárias espalhavam medo pela comunidade.

 

Ainda assim, Abu Shawqi descrevia reuniões clandestinas em que vizinhos se reuniam para discutir formas de resistir, manter sua dignidade e preservar sua cultura.

 

“Os homens que amavam sua terra”

 

A Naksa e os anos seguintes foram os mais difíceis da vida de Abu Shawqi.

 

Ele fez parte da resistência ou, como dizia, dos “homens que amavam sua terra”. Eles pediam “apenas para manter sua dignidade e os direitos mínimos de um ser humano”.

 

Um dia, em 1972, após anos de opressão implacável pelas mãos do exército israelense, ele e seus camaradas decidiram enfrentar a ocupação cara a cara.

 

No caos daquele dia, uma bala atingiu seu ombro. Ele conseguiu recuar até sua casa, onde o cheiro de poeira e sangue tomava o ar.

 

Seu pai, com nada além de uma faca de cozinha, retirou a bala. Não havia analgésicos, apenas um pano entre seus dentes e sua esposa segurando suas mãos.

 

Enquanto Abu Shawqi nos mostrava a cicatriz no ombro, o zumbido baixo e incessante dos drones acima nos distraiu da história.

 

Sua audição já não era boa aos 78 anos, e o barulho dos drones a tornava ainda pior. Falávamos alto para que ele pudesse nos ouvir.

 

“O zumbido infinito do céu roubou a música do nosso bairro”, disse com tristeza.

 

Ele então explicou que, depois daquele dia, sua família implorou que parasse de lutar, que suportasse a humilhação se isso significasse permanecer vivo, dizendo que ele não era o único homem em Gaza, que alguém continuaria a resistência.

 

Abu Shawqi lhes disse que viver sem dignidade, humilhado em sua própria terra, não era diferente de morrer. Para ele, a luta nunca foi apenas sua, era a causa de todos os palestinos.

 

À medida que esta guerra mais recente se arrastava e nossa fome se aprofundava, sua voz enfraquecia. A fome não poupa ninguém, nem mesmo os idosos, cujos corpos precisam de sustento e cuja presença mantém comunidades inteiras unidas.

 

Ele parou de contar histórias cerca de um ano após o início do genocídio, não para organizar seus pensamentos, mas para recuperar o fôlego. Suas mãos, antes firmes em torno da bengala, começaram a tremer.

 

Em uma tarde, ele não saiu mais de casa.

 

Ele não estava doente, não da forma como entendíamos doença.

 

Ele estava faminto. Não apenas por comida, mas também por remédios.

 

Não conseguimos sequer algo tão básico quanto vitaminas para fortalecer seu corpo e sua vontade.

 

Após semanas deitado, enfraquecido pelo tempo e pela doença, Abu Shawqi faleceu em 2 de julho de 2025, aos 78 anos.

 

Sua ausência não é apenas a perda de um parente ou vizinho, é o desaparecimento de um arquivo vivo, de um guardião das histórias que nos ligam a Gaza.

 

Ahmad Sbaih é escritor radicado em Gaza

 

Do Electronic Intifada

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