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"Marco Temporal, ainda?"

Foto do escritor: NOVACULTURA.infoNOVACULTURA.info

 

No dia 27 de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 com uma importante vitória para os povos originários: a Corte, em decisão com repercussão geral, fixou o entendimento de que o “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas é inconstitucional.

 

A repercussão geral significa, na prática, que a tese fixada pelo STF neste julgamento serve de referência para todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário. Com o julgamento de repercussão geral, a Suprema Corte define sua interpretação sobre os direitos garantidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988.

 

Essa decisão veio após cinco anos de intensa mobilização dos povos indígenas e de seus aliados em relação a este caso – e em meio a uma batalha ainda mais longa travada contra a tese do marco temporal, que pretende limitar as demarcações de terras indígenas apenas àquelas que estivessem sob posse comprovada dos povos no dia 5 de outubro de 1988.

 

A vitória, apesar de fundamental, não foi definitiva: no dia 28 de dezembro, já durante o recesso legislativo, o Senado Federal promulgou a Lei 14.701/2023 – que durante sua tramitação no Senado, ainda como Projeto de Lei (PL), assumiu o número 2903/2023; e que antes, quando tramitava na Câmara Federal, ficou amplamente conhecido como o PL 490/2007.

 

A primeira versão da lei havia sido aprovada pelo Senado Federal também em setembro de 2023, dias antes da conclusão do julgamento pelo STF – uma reafirmação de sua postura anti-indígena e uma ação de desrespeito à autoridade da Suprema Corte.

 

É o STF, como Corte constitucional, que possui a atribuição de resguardar e interpretar a Constituição Federal. Essa função não cabe ao Congresso Nacional – menos ainda quando se está diante de artigos que gozam de proteção especial, como é o caso dos artigos 231 e 232 da Constituição, que tratam sobre os direitos dos povos indígenas, entendidos como cláusulas pétreas, e que são diretamente atacados pela Lei 14.701, a “Lei do Marco Temporal”.

 

Em outubro, o presidente Lula vetou as partes mais graves da lei; em dezembro, o Congresso derrubou quase a totalidade dos vetos de Lula e sancionou a Lei, desprezando o que decidiu o STF e os limites fixados pela própria Constituição, deflagrando assim um conflito constitucional e institucional que perdura até hoje.

 

No momento, apesar do julgamento do STF ter sepultado o marco temporal como critério para demarcação de terras indígenas, a Lei do Marco Temporal promulgada em dezembro está em vigor, com sérias consequências para os povos indígenas. Enquanto a lei vigora, o poder público também fica obrigado a respeitá-la.

 

Na prática, isso significa que os grupos contrários aos povos indígenas poderão reivindicar a aplicação da Lei nos atos da administração pública – por exemplo, nos atos praticados pela Funai ou pelo Ministério da Justiça em relação a procedimentos demarcatórios em andamento; também haverá quem provoque o Judiciário para anular demarcações ou determinar reintegrações de posse contra comunidades indígenas com base na Lei, como já vem ocorrendo em alguns processos.

 

A situação é ainda mais grave se levarmos em conta que, desde sua tramitação na Câmara, quando ainda se chamava PL 490, o projeto incorporou uma série de dispositivos e outras propostas legislativas contrárias aos direitos dos povos originários, transformando-se num verdadeiro combo anti-indígena.

 

Essa situação gera enorme insegurança para os povos, pois juízes e gestores públicos precisam levar em consideração duas orientações distintas e conflitantes: a Lei 14.701 – que apesar de ser inconstitucional, encontra-se em vigor – e o julgamento de repercussão geral do STF, que é a instância adequada para decidir – e que, efetivamente, já decidiu – sobre o tema.

 

Mas, afinal, como isso é possível? Como o fantasma do marco temporal pode ainda rondar os povos originários, mesmo após a vitória obtida no STF?

 

Inconstitucionalidade: não basta ser, é preciso declarar

 

A resposta mais direta é que não basta que uma lei seja claramente inconstitucional, como é o caso da Lei 14.701. Para ter sua validade suspensa, a lei precisa ser declarada inconstitucional.

 

Uma das razões para isso decorre do fato de que, a princípio, sempre se presume que os poderes da República agem em acordo com a Constituição. Em tese, as Comissões de Constituição e Justiça do Senado e da Câmara deveriam barrar medidas inconstitucionais e evitar que chegassem ao ponto de serem judicializadas.

 

Como sabemos, não é o caso do atual Congresso, que tem desconsiderado os limites estabelecidos na Constituição ao legislar, especialmente quando se trata de direitos indígenas.

 

A Lei 14.701/2023 é evidentemente inconstitucional e os próprios ruralistas têm consciência disso. A tramitação e a aprovação da lei ocorreram em paralelo ao julgamento de repercussão geral do STF sobre o tema, deixando clara a intenção dos parlamentares anti-indígenas de não acatar a decisão da Suprema Corte.

Por esse motivo, não basta sabermos que a Lei 14.701 é inconstitucional, e não basta que o STF já tenha julgado que o marco temporal é inconstitucional: é preciso, agora, que a Corte declare que a Lei, em si, é inconstitucional.

 

Caminhos abertos

 

Os povos indígenas e seus aliados têm buscado caminhos variados para barrar os danos causados pela Lei do Marco Temporal e para garantir que ela seja declarada inconstitucional pelo STF.

 

Em caráter emergencial, povos e aliados solicitam que o STF mantenha suspensa a tramitação de processos judiciais que tratem dos direitos territoriais indígenas até o trânsito em julgado do caso de repercussão geral. Essa suspensão poderá impedir que decisões judiciais anulem demarcações de terras indígenas ou determinem o despejo de comunidades com base no marco temporal – um risco que ronda os povos enquanto a lei 14.701 está em vigor.

 

Mas também reivindicam que a Lei do Marco Temporal seja declarada inconstitucional de forma definitiva. É possível que outras manobras e instrumentos sejam manejados pela bancada ruralista para restringir os direitos indígenas, como a tentativa de emplacar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com conteúdo semelhante.

 

É importante lembrar que, no julgamento de repercussão geral, o STF reconheceu que os direitos garantidos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal são direitos fundamentais – os quais, por sua vez, são clas