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"Mitos do jornalismo cultural"



Se o jornalismo existe para dar notícia de tudo o que pode interessar às pessoas, jornalismo cultural seria a parte da satisfação dessa curiosidade no campo das criações ou atividades ligadas à de valores artísticos, espirituais ou da inteligência humana em geral. E, assim, tomando a informação de uma forma ampla, jornalismo cultural inclui a ligação das novidades no campo das produções da inteligência por todos os meios de transmissão de informações: o cinema, a televisão, os computadores, os jornais, as revistas etc.


Em tese, nada mais simples e fácil de compreender. O problema, no entanto, é saber como isso se processa na prática. É que, como tudo o que classificamos de cultural envolve logicamente algum tipo de trabalho intelectual ou coletivo, a produção cultural daí resultante vai estabelecer um determinado tipo de relação com os meios de comunicação marcada, necessariamente, por juízos de valor ou de interesse fora do restrito campo do fazer artístico-criativo. E é isso que coloca em pauta, desde logo, do ponto de vista do jornalismo, este primeiro problema complicador da simplicidade daquele enunciado inicial: em que medida o fato cultural particular passível de divulgação pública interessa ou não aos leitores, ouvintes ou telespectadores a que se dirigem os meios de comunicação?


Esse julgamento de valor, realizado com base na oportunidade jornalística do fato cultural a ser divulgado, estabelece desde logo uma subordinação de certa forma autoritária por parte dos meios de comunicação, ao assim erigirem-se em árbitros do que deve ou não chegar ao conhecimento público.


Ora, como o fundamento desse julgamento prende-se a critérios ideológico-empresariais do tipo “nosso jornal ou nossa programação tem uma linha”, “nosso leitor ou público-alvo se situa em tal ou tal faixa de idade ou nível social” etc., temos que nas relações entre o fato cultural e os meios de comunicação, os valores artístico-espirituais subordinam-se a interesses práticos alheios à gratuidade do fato gerador da produção em busca de divulgação.


Para entender, pois, como funciona esse mecanismo de escolha do que deve merecer ou não divulgação, dentro do quadro geral da produção cultural, torna-se necessário saber a razão pela qual os meios de comunicação se organizam de forma a estabelecer padrões determinados de julgamento para cumprir sua missão. A resposta não é difícil. Como no mundo subordinado ao modo de produção capitalista os órgãos de imprensa se organizam como empresas – para a criação das quais empregam capitais que exigem, para sua retribuição, à conquista de mercado e obtenção de lucro –, compreende-se que a informação, constituindo o produto de tais empresas, deve ser oferecida levando em conta as maiores chances. É essa prevalência de interesses comerciais, na busca de fatias determinadas de público consumidor de informações, que explica a determinação de linhas de orientação nos órgãos de divulgação visando sempre atender a interesses e expectativas dos grupos de consumidores a que se dirigem. Interesses e expectativas que, aliás, são detectados através de pesquisas, nunca centradas em possíveis preocupações culturais, mas sempre na descoberta de oportunidades de mercado.


É assim que se pode compreender por que, em determinado momento, apenas estas ou aquelas manifestações da criação humana sejam destacadas do vasto painel da produção cultural para figurar como objeto de interesse dos órgãos de divulgação, para fins de comunicação às maiorias.


Para disfarce de tais escolhas práticas, subordinadas a evidentes interesses de mercado, os responsáveis pelos meios de divulgação valem-se de mitos ideológicos, que eles mesmos se encarregam de forjar.


Em meados do século XX, essa projeção ideológica de interesses comerciais-industriais passou a manifestar-se sob a mítica figura do jovem, que vinha substituir à realidade da luta de classes pela nova ideia de conflito de gerações. E, assim, quando em verdade para as maiorias marginalizadas o problema era não poder acreditar em ninguém com mais de 30 salários-mínimos, passava-se com o advento dos jovens hippies do rock e dos Beatles a não confiar em ninguém com mais de 30 anos. E isso para, logo a seguir, quando a geração chamada “flor e amor” trocou o lirismo contestatório pelo comando da era da alta tecnologia e internacionalização do capital financeiro, o mito escolhido passou a ser o da modernidade, expresso na ideia do fim das fronteiras e da globalização.


Assim, é de compreender que na hora da decisão do que é jornalisticamente relevante, em termos de informação cultural, todos esses fatores de fundo ideológico e de interesse econômico viessem a convergir para o da escolha de formas e temas carregados dessa modernização promissora de satisfação de desejos pela difusão de sons e imagens universalizadas via satélite.


E eis como, numa contradição apenas aparente – quando bem examinada a realidade –, enquanto o hit das informações dos jornais sobre a produção literária passava a divulgação das listas de best-sellers, a maior atração anual da mesma imprensa eram as entrevistas com poetas e escritores às vezes completamente desconhecidos, apenas porque ganharam o milhão de dólares do prêmio Nobel.


Onde, porém, essa conjuração de enganos de fundo interesseiro se evidencia com mais clareza é na escolha do noticiário das criações da indústria cultural, principalmente no campo de música popular. Numa unânime fidelidade ao conceito da modernidade das releituras do rock – que ultrapassa já seu meio século –, as páginas dos segundos cadernos da totalidade dos grandes jornais brasileiros transformam press-releases fornecidos pelas multinacionais do disco em amplas reportagens. E é assim que realizam a fusão colorida de todos os mitos dá realidade: o da modernidade oferecida – para o cultivo de jovens – do velho como se fosse o novo (representado, no caso, por sons definidos como universais, quando se sabe que, em música popular, o que se chama de universal é o regional de alguém imposto para todo o mundo).


Ora, como a característica da música de lazer é a massificação de uma média estética – naturalmente empobrecida de sua força nacional-original –, o julgamento dos jornalistas encarregados da divulgação da produção cultural-musical se transforma numa soma de frustrações consentidas: oferecer o velho como novo, aceitar como global o particular de alguém valorizado pelo mito do universal e, finalmente, apresentar a diluição como se fosse o conteúdo todo.


Tudo, afinal, muito coerente com o princípio que decorre das relações da cultura com o modo de produção capitalista: quando uma criação do espírito se transforma em produto para o comércio, seu valor deixa de ser medido pelas leis da estética, para reger-se pelas leis de mercado.


Escrito por José Ramos Tinhorão


Texto publicado em “Música e Cultura Popular: Vários escritos de um tema em comum”, São Paulo: Editora 34, 2017.

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