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"Entrevista de Che Guevara a Eduardo Galeano"



O diálogo de Eduardo Galeano com Che Guevara foi publicado no semanário Mondo Nuovo, de Roma, e no jornal Época, de Montevidéu, no início de outubro de 1964. A versão posterior apareceu, três anos depois, no Monthly Revie, de Nova York, e na Marcha semanal de Montevidéu. Na versão publicada pela revista Casa de las Américas, №266, janeiro-março de 2012, pp. 127–128, o pesquisador cubano José Bell Lara explica que a entrevista ocorreu em 21 de agosto de 1964, o mesmo dia em que a Bolívia rompeu relações diplomáticas com Cuba. Bell Lara lembra que Galeano entregou o texto à redação da revista Pensamiento Crítico e “apesar de não termos publicado a entrevista na altura, o elevado valor que lhe atribuímos levou-nos a preservá-la no nosso arquivo pessoal, em seis páginas sem título, durante quarenta e tantos anos. Daí saiu com o propósito de incorporá-lo a um dos volumes da série Documentos da Revolução Cubana, após esta publicação na revista Casa por ocasião da visita de Galeano para inaugurar a 53ª edição do Prêmio Literário”.



A imagem do guerrilheiro Che em Santa Clara o apresentava lutando na inóspita selva boliviana, e se misturava em minha cabeça com a lembrança do Che na conferência de Punta del Este, brilhante estadista, economista, profeta sombrio; aquele refinado intelectual que lia as antologias de Aguilar na Sierra Maestra, sabia de cor boa parte do canto geral , falava com admiração dos romances de Carpentier e ria do realismo socialista. Mas acima de todas as imagens, ou acrescentando-as, surgiu uma: era o Che respondendo, em entrevista coletiva, à pergunta de um idiota interessado em saber se era argentino, cubano ou o quê:


“Sou um cidadão da América, senhor”, dissera ele.


Quando conversamos em Havana, comentei com ele que o destino de Cuba está intimamente ligado ao destino da revolução latino-americana. Cuba não pode ser coagulada dentro das fronteiras, funciona como o motor da revolução continental. Ou não? E ele me respondeu:


Ernesto Che Guevara: Pode haver uma possibilidade de que não. Mas eliminamos as chances de que isso não aconteça. A possibilidade de que os movimentos revolucionários latino-americanos não estivessem diretamente ligados a Cuba poderia ter se materializado se Cuba aceitasse deixar de ser um exemplo para a revolução latino-americana. Pelo único e simples fato de estar vivo, não é um exemplo. Como é um exemplo? A forma como a revolução lida com as relações com os Estados Unidos e o espírito de luta contra os Estados Unidos. Cuba poderia se transformar em um exemplo puramente econômico, digamos.


Eduardo Galeano: Uma espécie de vitrine do socialismo.


Ernesto Che Guevara: Uma vitrine. Essa seria uma fórmula que garantiria Cuba em certa medida, mas a separaria da revolução latino-americana. Não somos uma vitrine.


Eduardo Galeano: E como irradiar uma força de exemplo que não se esgota na contemplação? Através da solidariedade? Mas até onde pode ir, quais são seus limites? Como definiria a necessária solidariedade entre Cuba e os movimentos de libertação da América Latina?


Ernesto Che Guevara: O problema da solidariedade (sim, sim; claro que se pode escrever isso) consiste em fazer pela revolução latino-americana tudo o que é viável dentro de uma situação de direito, e uma situação de direito é uma relação entre diferentes países que alcançar um equilíbrio em suas trocas ideológicas ou políticas, com base em convenções mutuamente aceitas.


Eduardo Galeano: Situação que só ocorre com três países.


Ernesto Che Guevara: Com dois. A Bolívia rompeu relações esta tarde.


Eduardo Galeano: Eu descontei que o Uruguai não demoraria para fazer o mesmo. Tenho a impressão [disse-lhe] que a dissolução do governo chileno surpreendeu os cubanos.


Ernesto Che Guevara: Como você nos surpreendeu? Não ficamos nem um pouco surpresos.


Eduardo Galeano: No entanto, as pessoas na rua pareciam realmente maravilhadas.


Ernesto Che Guevara: As pessoas, talvez. O governo, não. Sabíamos o que estava por vir.


Eduardo Galeano: Perguntei-lhe o que pensava de certas declarações da FRAP chilena sobre Cuba, pouco antes da vitória de Frei.


Ernesto Che Guevara: Bem, parecia terrível para nós.


Sugeri que poderia ser fruto das circunstâncias: os ziguezagues necessários no caminho do poder pelas relações. Ele alegou:


O poder, na América Latina, é tomado pela força das armas ou não é tomado.


Ele balançou a cabeça e acrescentou: Coloque: em linhas gerais.


Eduardo Galeano: Digamos então o caminho para o governo, senão o poder. Confundir uma coisa com a outra pode ser sério, né? Isso aconteceu no Brasil, certo? Mas então Che lembrou que estava diante de um jornalista: espontaneidade e cautela roubaram o lugar ao longo das três horas de conversa.


Na eventualidade de eclodir novas revoluções na América Latina, não haveria uma mudança de qualidade nas relações entre Cuba e os Estados Unidos? Fala-se da possibilidade de um acordo de convivência, em certas bases. Mas se o fogo se alastra, e o imperialismo é obrigado a adicionar água ao fogo, qual será então a situação em Cuba, isto é, da faísca?


Ernesto Che Guevara: Definimos a relação entre Cuba e os Estados Unidos, no momento, como um carro e um trem que andam mais ou menos na mesma velocidade, e o carro tem que passar pela passagem de nível. Conforme você se aproxima da passagem de nível, a possibilidade de confronto e colisão se aproxima. Se o automóvel –que seria Cuba – passa antes do trem, ou seja, se a revolução latino-americana adquire um certo grau de profundidade, já passou para a outra: Cuba não tem mais significado.


Porque Cuba não é atacada por despeito do imperialismo, mas pelo significado que tem. Quero dizer que se a situação revolucionária na América Latina se aprofundar, a ponto de exigir um grande emprego de forças norte-americanas, uma série de territórios não teria mais significado. A passagem de nível já teria sido atravessada. Estamos agravando nossos confrontos com os Estados Unidos, dia a dia, objetiva e fatalmente, à medida que a situação na América Latina piora – e o melhor é que está ruim. Ora, se a situação se agrava de forma tão convulsiva que obriga os Estados Unidos, em larga escala, a empregar grandes forças e recursos, por seu próprio peso desaparece a importância de Cuba.


O problema fundamental não é mais Cuba, como catalisador, porque a reação química já ocorreu. A incógnita é: se vamos ou não cruzar antes do trem. Poderíamos desacelerar, mas é difícil para nós parar.


Eduardo Galeano: Com essas perspectivas, até que ponto a convivência é possível?


Ernesto Che Guevara: Não se trata de Cuba, mas dos Estados Unidos. Os Estados Unidos não estão interessados ​​em Cuba se a revolução não acontecer na América Latina. Se os Estados Unidos controlassem a situação, o que eles se importariam com Cuba?


Eduardo Galeano: E se a revolução latino-americana não estourar, é possível que Cuba continue?


Ernesto Che Guevara: Claro que é possível.


A longo prazo?


A longo prazo. Acabou o pior período do bloqueio.


Eduardo Galeano: Não estou me referindo apenas à subsistência física. Quero dizer se o isolamento de Cuba de suas fontes alimentares latino-americanas não poderia produzir problemas de outra ordem: deformações internas, rigidez ideológica, laços de dependência cada vez mais fortes. Uma revolução latino-americana sem dúvida enriqueceria o marxismo: permitiria uma melhor aplicação dos esquemas à nossa peculiar realidade. E se a revolução se tornasse latino-americana, permitiria a Cuba recuperar seu quadro natural de existência? Não é uma afirmação: é uma pergunta.


Ernesto Che Guevara: A coisa me parece um pouco idealista.


Não se pode falar em fontes nutricionais. As fontes alimentícias são a realidade cubana, seja ela qual for, e a correta aplicação do marxismo-leninismo ao modo de ser do povo cubano em determinadas condições.


O isolamento pode causar muitas coisas. Por exemplo, que erramos na forma de avaliar a situação política do Brasil; mas distorções na marcha da revolução, não. Claro que é mais fácil para nós falar com um venezuelano do que com um congolês, mas no final nos daremos perfeitamente bem com os revolucionários congoleses, embora ainda não tenhamos conversado com eles. Há uma identidade na luta e nos objetivos. Uma revolução em Zanzibar também pode nos dar coisas novas, novas experiências; a união de Tanganica e Zanzibar; a luta argelina; os combates no Vietnã. Temos o avental indígena de nossa mãe americana, disse Martí, e tudo bem, mas nossa mãe americana passou por cruzamentos sucessivos por muito tempo. E cada vez mais os sistemas são globais.


O fato de a Argélia ser livre fortalece Cuba; a existência da Guiné o fortalece; a do Congo também. Sempre mantemos essa ideia muito clara: a identidade de Cuba com todos os movimentos revolucionários. Apesar de seu parentesco racial, religioso e histórico, a Argélia está mais próxima de Cuba do que do Marrocos.


Eduardo Galeano: E mais perto da URSS do que do Marrocos?


Ernesto Che Guevara: Isso teria que ser respondido pelos argelinos.


Eduardo Galeano: Quando você fala em “sistema mundial do socialismo”, você se refere a países que não fazem parte do bloco socialista. Nesses países, movimentos de cunho nacionalista, canalizados para o socialismo, deram-lhe forte cunho próprio.


Ernesto Che Guevara: O resultado final, necessariamente, é que sempre se caminha para uma integração marxista, ou se volta para o campo capitalista. O Terceiro Mundo é um mundo de transição. Existe porque, dialeticamente, há sempre, entre opostos, um campo onde as contradições se aprofundam.


Mas não pode ser isolado lá. A própria Argélia, à medida que avança no aprofundamento do sistema socialista, sai gradativamente do Terceiro Mundo.


Eduardo Galeano: Não é possível falar de um Terceiro Mundo transversal ao próprio bloco socialista? O conflito, já não surdo, entre chineses e soviéticos, foi analisado por alguns pensadores marxistas, como Paul Baran, como consequência das contradições internas entre os países socialistas, com diferentes níveis de desenvolvimento e diferentes graus de confronto com o imperialismo.


Ernesto Che Guevara: A morte de Paul Baran me impressionou profundamente. Eu o estimava muito; ele esteve aqui, conosco.


Imperturbável, ele acenou com o charuto em silêncio. Olhei para a minha caneta como protagonista intruso do diálogo. Eu decidi salvá-lo. Daí em diante, Che Guevara respondeu a uma enxurrada de perguntas sobre questões econômicas. Da Conferência de Genebra (“alguns estão certos, mas outros estão errados”) aos erros cometidos no processo econômico interno, Che Guevara falou longamente.


Até que um inimigo invadiu a sala para lembrar ao ministro da Indústria que seu rival o esperava há vinte minutos no tabuleiro de xadrez do andar de baixo. E não era questão de perder o campeonato assim mesmo.

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