"Burkina Faso: os massacres que já não contam"

Absorto no conflito na Ucrânia e acompanhando à distância a incipiente guerra civil no Sudão – que pode levar a um novo genocídio no país africano –, a situação crítica em Burkina Faso mal é abordada.
Nesse país do Sahel, há sete anos, bandos ligados à al-Qaeda ou ao Daesh realizam massacres quase diários que já somam milhares de mortos – estima-se em pelo menos 10 mil – somados a dois milhões de deslocados e grandes regiões do país que já ultrapassam 50% da área total desestabilizada dada a profunda paralisação de suas atividades, tanto produtivas quanto comerciais ou educacionais.
Não apenas os crimes nas mãos do Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos, a franquia da Al-Qaeda para o Sahel, e o Estado Islâmico (Daesh), para o Grande Saara (EIGS), são responsáveis por esses massacres, mas também grupos paramilitares pagos pelo governo ou grupos armados de autodefesa para proteger suas cidades, propriedades e plantações de incursões terroristas. Todos esses grupos na hora final do acerto de contas costumam ser tão descontrolados e arbitrários diante da menor dúvida de pertencer a uma facção ou outra.
No final do passado mês de dezembro, um destes grupos paramilitares entrou na cidade de Nouna, no norte do país com uma população de 30 mil habitantes, e matou e incinerou cerca de 90 pessoas suspeitas de fazerem parte de um dos grupos fundamentalistas que horas anteriormente, haviam atacado um posto da polícia nacional. Este tipo de matança, sem qualquer norma legal, faz parte da realidade atual do país saheliano.
Só para recordar os ataques mais recentes, num ano que começou com a morte de mais de 50 militares em uma emboscada a uma patrulha do exército, em um local situado entre as aldeias de Deou e Oursi na província de Oudalan, no norte do Burkina Faso, em abril, a intensidade do fogo continuou a aumentar constantemente.
No dia 18, foi registrado um dos mais importantes, que causou a morte de pelo menos 24 pessoas, incluindo vinte auxiliares ou Volontaires pour la défense de la patrie (Voluntários para a Defesa da Pátria) ou VDP, civis incorporados ao exército após a criação daquele órgão em 2019, em dois atentados no centro-leste do país. Três dias antes, outros seis soldados e mais de 30 VDP haviam morrido no Norte durante o assalto lançado contra um destacamento de segurança.
Nesse mesmo dia, outro assalto ocorreu em uma aldeia de Bittou, perto da fronteira com Togo e Gana, onde 16 VDP e quatro civis foram mortos, além de uma dezena de mujahideens. Algumas horas depois, outros quatro VDP foram mortos nas proximidades do local do ataque inicial.
No final do mês houve dois grandes massacres. Na manhã do dia 27, em Ougarou, província de Gnagna, no leste do país, 33 soldados e 40 mujahideens foram neutralizados durante os combates que eclodiram quando um número desconhecido de insurgentes assaltou o posto militar daquela localidade.
Esta operação ocorreu apenas uma semana depois do que ficou conhecido como o massacre de Karma, localidade do norte do país e a menos de sete quilómetros da fronteira com o Mali, em uma zona de extrema atividade terrorista e perto de onde dezenas de ataques semelhantes já ocorreram desde 2013.
Em Karma, aldeia a 15 quilômetros de Ouahigouya, capital da província, em 20 de abril, pelo menos 60 civis foram mortos por homens que, segundo testemunhas, trajavam uniformes do exército burkinabé e viajavam em motocicletas, caminhões e veículos blindados. Mais tarde, segundo a organização de direitos humanos Coletivo contra a Impunidade e a Estigmatização das Comunidades (CISC), saiu a versão de que os mortos chegaram a 136, todos civis e baleados nas costas. Das vítimas, 50 eram mulheres e vinte crianças, algumas com apenas alguns meses de idade.
Após estes acontecimentos e com suspeitas de que a autoria do massacre era da responsabilidade das forças regulares, o governo central apoiou a investigação aberta pelo Tribunal Superior de Ouahigouya para apurar os factos e punir os responsáveis.
O governo do capitão Ibrahim Traore, líder da junta militar que assumiu o poder em setembro de 2022 em um segundo golpe tentando acabar com a instabilidade do país, como a junta de coronéis que governa o Mali, não mais concentrou sua atenção apenas nas ações de os grupos rigoristas, mas também no papel que o exército francês realmente desempenhou.
Assim, finalmente em Ouagadougou, como já havia acontecido no Mali, foi ordenada a retirada dos soldados franceses que estão na região há mais de uma década, com um resultado muito ruim se deter o avanço terrorista fosse seu verdadeiro fim.
Em várias nações do Sahel, o fracasso e os abusos das tropas francesas levaram a renascer o sentimento generalizado de rejeição da antiga potência colonial, que levou a ataques em diferentes ocasiões não só contra embaixadas e consulados franceses, mas também em diferentes sedes de empresas naquele país. Ainda no Níger, meses atrás, a população interrompeu o trânsito de uma coluna militar francesa que já havia sido apedrejada em sua passagem por Burkina Faso vinda da Costa do Marfim, outro dos países em que está despertando o desprezo pela ex-metrópole.
Neste quadro de tensões entre alguns governos da região do Sahel, nomeadamente Mali e Burkina Faso, que levaram à expulsão de embaixadores e outros responsáveis diplomáticos, é no mínimo sugestivo o aumento das operações terroristas, que se multiplicaram enquanto a imprensa internacional culpa a “incapacidade” dos exércitos locais e da empresa de segurança russa, conhecida como Grupo Wagner, convocada de Bamako e Ouagadougou para fornecer assistência técnica e treinamento na luta contra a insurgência wahhabista.
De alguns dos principais meios de comunicação ocidentais, surge a teoria de que “as execuções extrajudiciais de civis aumentaram de acordo com grupos de direitos humanos e residentes” nas mãos dos russos, que só vieram ao país para saquear seus recursos, aparentemente, bastante o oposto do que a França fez ao longo de seus quase dois séculos de presença na África.
Mobilização geral
Burkina Faso não é apenas um dos países mais pobres do mundo, mas também tem uma população de 22 milhões de habitantes cuja idade média é de apenas 17 anos, uma das mais baixas do mundo, há milhões de jovens aos quais o país não pode fornecer estudos ou oportunidades de trabalho, por isso as campanhas de filiação de grupos terroristas costumam ser extremamente bem-sucedidas, pois oferecem salários com os quais nenhuma atividade privada ou estatal poderia competir.
É com vista a evitar que os jovens continuem a aderir ao Daesh ou à Al-Qaeda na ausência de melhores empregos e na manifesta necessidade de aumentar o número de tropas para os conter, que o presidente transitório do Governo, Capitão Ibrahim Traore, que já havia anunciado em fevereiro passado a decisão de recrutar 5 mil novos militares no quadro da investida terrorista, na quinta-feira, 13, decretou a “mobilização geral” por pelo menos um ano.
A referida medida permitirá ao exército, se necessário, o alistamento de cidadãos maiores de dezoito anos para enfrentar os terroristas khatibas. Em um dos 14 artigos que completam o decreto, fica claro que os cidadãos podem organizar, sob supervisão militar ou das forças de segurança e defesa, grupos de autodefesa para a sua localidade contra todas as formas de ameaças, obviamente incluindo grupos terroristas.
Sabia-se também que o Governo outorga a si próprio o direito de requisição de pessoas, bens e serviços e de restrição de algumas e certas liberdades cívicas.
Na terça-feira, 11 de abril, o Ministério da Defesa lançou uma operação chamada “Sótãos Esvaziados”, solicitando a todos os militares do país, ativos ou aposentados, que doem seus uniformes para os soldados que estão mobilizados para uma guerra em que os massacres já ocorreram não contam mais.
Por Guadi Calvo, no Línea Internacional