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"Camarada caído: Elogio a George Jackson"


George Jackson tinha genialidade. A genialidade já é al­go bastante raro, e deve ser guardada com carinho, ainda mais quando a genialidade é combinada em um homem negro com visão e paixão revolucionária, o establishment irá acabar com ele. O Camarada Jackson compreendeu isso. Ele sabia que seus dias estavam contados e estava preparado para morrer co­mo um verdadeiro crente no suicídio revolucionário. Por 11 anos, insistiu em permanecer livre em um brutal sistema prisional. Por todo o tempo que passou lá, resistiu às autoridades e encorajou seus irmãos na cadeia a se juntarem a ele. O Estado retaliou: a liberdade condicional era continuamente rejeitada; a solitária foi imposta a ele por 7 anos; as ameaças à sua vida eram frequentes – de guardas, de presos que chamavam a si mesmos de “ajudantes de Hitler”, de “golpes de faca e picareta de porcos sádicos sem rosto”. E finalmente eles o assassinaram.

Nos meses anteriores à sua morte, tudo começou a ficar perto do fim. Ele era um dos poucos prisioneiros que estava algemado e fortemente protegido em suas raras idas à sala de visitas. Tentativas contra sua vida se tornaram quase diárias. Mas ele nunca desistiu ou retrocedeu. A prisão foi a dura prova que moldou seu espírito, e George frequentemente usava as palavras de Ho Chi Minh para descrever a sua resistência: “a calamidade me endureceu e transformou minha mente em aço”.

Eu o conhecia como um irmão. Antes, eu o conhecia apenas espiritualmente, por seus escritos e seu número no sistema prisional, quando eu estava na Colônia Penal e ele estava em Soledad. Então, não muito depois de minha chegada, recebi, pelas da prisão, um pedido de George para entrar no Partido dos Panteras Negras. Foi prontamente aceito. George se tornou membro do Exército Popular Revolucionário, com o posto de General e Marechal. Nos próximos três anos estávamos em constante comunicação através de mensagens levadas por amigos e advogados e presos transferidos de uma prisão para outra. Apesar das restrições do sistema prisional, conseguimos transmitir nossas mensagens no papel e em fitas. Entre as contribuições de George para o Partido estão artigos que escreveu para o jornal The Black Panther, que aprofundou a nossa teoria revolucionária e deu inspiração a todos os irmãos. Em fevereiro de 1971, eu recebi esta carta dele:

Camarada Huey,

As coisas estão tranquilas aqui agora, esta noite temos disciplina e harmonia, amanhã todos poderão se separar novamente – mas esses somos nós. Eu tenho dois artigos que gostaria que fossem inseridos no jornal, um em seguida do outro na semana seguinte. O primeiro sobre a Angela. Depois, se você aprovar, eu gostaria de contribuir com algo para o jornal toda semana ou quando tivesse espaço para mim.

Caso sim, me deixe saber se há alguma área em particular que você gostaria que eu cobrisse (comentário)

Então eu comento como observador ou participante?

Um pedido – por favor não deixe ninguém apagar as coisas que eu disser ou alterá-las, eu não preciso de um editor, a não ser que o que eu disser não represente a linha do Partido, não deixe ninguém mudar uma palavra. Quando eu cometer um erro ideológico, claro, corrija para se encaixar na posição do Partido. E não deixe ninguém encurtar ou condensar; se algo for muito longo, coloque como parte um e parte dois.

Se você quiser me usar para dizer coisas desagradáveis sobre a­que­les que merecem, pode ser melhor para mim comentar como um observador, dessa forma menos contradições entre você e as pessoas que você pode ter que trabalhar.

Você disse que eu e você tivemos um “mal-entendido” uma vez, mas que foi resolvido. Quando foi que isso ocorreu?

Tome muito cuidado com mensagens ou qualquer palavra que supostamente vieram de mim. Eu realmente não me lembro de nenhum mal-entendido.

As pessoas mentem por muitas razões.

Tente memorizar minha grafia, é assim que todas as mensagens virão no futuro (se tivermos um futuro).

Você sabia que Angela e eu fomos casados um tempo atrás? E eu quase a levei completamente para nosso campo, pouco antes de Eldridge fazer aquela declaração?

Eu fui tão bem que na verdade o P.C. (Partido Comunista) tentou cortar nossos contatos, atacou minha sanidade com cochichos e o­lhares ao conversar com ela, e cortaram a minha assinatura paga por seus dois jornais.

Estranho, pensei que eles estariam com medo do FBI, e não com medo do homem. Talvez eles chegaram a um acordo. Alguns deles pelo menos.

É o P.C.? Cara, o que está acontecendo com ela. Ela não controla a própria boca. Ou o ego.

Arrume um bom contato ou escreva e sele mensagens com uma impressão digital. Eu tenho ideias que gostaria de deixar a vocês todos.

Obrigado irmão por nos ajudar. Irmãos lindos, árduos e disciplinados por aqui. Eu gostaria de enviá-los para você algum dia.

George.

Nos últimos três anos de sua vida, o Camarada Jackson se sentiu sustentado e apoiado pelo Partido dos Panteras Negras. Ele havia lutado sozinho por tanto tempo para elevar a consciência de seus companheiros negros de cela, e seu exemplo encorajou milhares que eram mais fracos e menos corajosos que ele. Mas o preço que pagou na alienação e nas represálias era espantoso. Dentro do Partido não estava mais sozinho; ele se tornou parte de um vigoroso e invencível movimento de libertação revolucionário. Em seu segundo livro, Blood in My Eye, expressou tal confiança: “O Partido dos Panteras Negras é a maior e mais poderosa força política que existe de fora da política do establishment. Extrai esse poder do povo. É a vanguarda natural, política do povo”.

George pediu ao Partido para publicar seu primeiro livro, Soledad Brother, mas nas difíceis negociações entre vai e vens e sem contato direto, os acordos não foram possíveis. Para garantir que esse erro nunca mais ocorreria, deixou a sua propriedade e todos seus escritos para o Partido. O mais importante, nos legou seu espírito e seu amor.

O funeral de George foi realizado em Oakland em 28 de agosto de 1971 – exatamente uma semana depois de seu assassinato – na Igreja Episcopal de Santo Agostinho, pastoreada pelo padre Earl Neil. Uma multidão de cerca de 7 mil a­migos se reuniram para prestar suas últimas homenagens para o nosso camarada caído, e o Partido dos Panteras Negras enviou um grande contingente de camaradas para lidar com a multidão e proteger a família de Jackson. Eu cheguei na Igreja logo antes da procissão do funeral. O santuário do segundo andar estava vazio, mas da janela eu pude ver a multidão se estendendo por mais de um quarteirão em cada direção, preenchendo todos os espaços disponíveis e fechando as ruas para a passagem de carros.

Alguns Panteras sentaram-se nas escadas falando baixo. Ocasionalmente aliviavam os camaradas que estavam con­trolando a multidão e dirigindo o trânsito do lado de fora. As crianças do Instituto Intercomunal da Juventude estavam ali, e ainda que estivessem no prédio desde manhã cedo, não reclamaram de cansaço. As crianças sentiram muito a perda de George; quando ficaram sabendo de sua morte na semana anterior, todas elas escreveram mensagens de condolências para a sua mãe. Elas amavam George, e em seus rostos eu podia ver a sua determinação em crescer e realizar seus sonhos de libertação.

Tinha muita tensão. Havíamos recebido muitas ameaças na semana anterior, de guardas da prisão, da polícia, e de muitos outros, alegando que o funeral não aconteceria, e se acontecesse, haveria motivo para mais funerais de Panteras Negras. Estávamos prontos para qualquer coisa. Os camaradas estavam nervosos com as ameaças, e era justo que estivessem nervosos com a contínua opressão sobre os pobres e o povo negro que vivem nesta terra. Dava para ver em seus rostos, em seus passos medidos, firmes, em seus punhos cerrados, e em suas vozes enquanto saudavam o carro fúnebre com gritos de “Poder ao Povo” e “Viva o Espírito de George Jackson”.

Quando o cortejo fúnebre chegou, Bobby e eu nos preparamos para saudar o povo enquanto entravam na porta da igreja. Foi a primeira vez que Bobby e eu compartilhamos uma plataforma pública em mais de quatro anos, mas não havia motivo para se alegrar. Não dissemos nada entre nós; sabíamos muito bem o que o outro estava pensando.

Quando o caixão que trazia o corpo do camarada George foi trazido para o santuário, uma canção estava tocando – Nina Simone cantando “I Wish I Knew How It Would Feel to Be Free”. Dentro da igreja, as paredes estavam rodeadas de panteras negras carregando armas. George havia dito que não queria flores em seu funeral, apenas rifles. Ao honrar seu pedido, também estávamos protegendo a sua família e todos a­queles que se dedicavam a seguir adiante com seu espírito. Qualquer pessoa que entrasse naquele santuário com o propósito de começar alguma provocação saberia que não teria a oportunidade de ir muito longe. Na morte, assim como na vida, George pensou nos melhores interesses dos seus companheiros.

Padre Neil fez um pronunciamento breve, mas poderoso sobre a li­ção da morte de George Jackson, que o povo negro teria de se levantar e tomar seu destino em suas próprias mãos. Bobby leu algumas das mensagens enviadas de todo o mundo, Elaine Brown cantou “One Time’s Too Much to Tell Any Man that He’s not Free”, e eu pronunciei o elogio, que foi em parte: “George Jackson era meu herói. Ele deu o exemplo para presos, presos políticos, para o povo. Ele mostrou o amor, a força, o fervor revolucionário característico de qualquer soldado do povo. Ele inspirou os presos, que mais tarde eu encontrei, a colocar suas ideias na prática e assim seu espírito se tornou uma coisa viva. Hoje eu digo que ainda que o corpo de George tenha caído, seu espírito segue adiante, porque suas ideias vivem. E nós veremos que estas ideias permanecerão vivas, porque irão se manifestar em nossos corpos e nos corpos desses jovens Panteras, que são nossos filhos. Então é verdadeiro dizer que haverá revolução de uma geração para a próxima. Este era o legado de George, e ele irá continuar, e continuará até a imortalidade, porque acreditamos que o povo vencerá, nós sabemos que o povo vencerá, à medida que ele avançar, geração após geração”.

Que tipo de exemplo George Jackson deu? Primeiro, ele era um homem forte, sem medo, determinado, cheio de amor, força e dedicação à causa do povo. Ele viveu uma vida que devemos louvar. Não importasse o quanto fosse oprimi­do, não importasse o quanto de erros houvesse cometido, ainda man­tinha o amor pelo povo. E é por isso que ele não sentiu dor em dar sua vida à causa do povo.

Mesmo depois de sua morte, George Jackson é uma figura lendária e um herói. Mesmo o opressor reconhece isso. Para acobertar seu assassinato, afirmaram que George Jackson matou cinco pessoas, cinco opressores, e feriu três no espaço de trinta segundos. Sabe, algumas vezes eu gosto de esquecer o fato de que isso seria fisicamente impossível. Mas afinal George Jackson é meu herói. E eu gostaria de pensar que era possível; eu ficaria muito feliz pensando que George Jackson tinha a força para isso porque isso o teria feito um super-homem (claro, meu herói teria que ser um super-homem). E vamos criar nossos filhos para ser como George Jackson, viver como George Jackson e lutar pela liberdade como George Jackson lutou pela liberdade.

A última declaração de George, o exemplo de sua conduta em San Quentin naquele terrível dia, deixou um exemplo para presos políticos e para os presos da América reacionária e racista. Ele deixou um exemplo para os exércitos libertadores do mundo. Nos mostrou como agir. Demonstrou como o mundo injusto pode ser criticado pela arma. E isto certamente será verdade, porque o povo irá cuidar disso. George também disse que o opressor é muito forte, e pode espancá-lo, pode nos bater até ficarmos de joelhos, pode nos esmagar, mas será fisicamente impossível para o opressor continuar com isso. Em algum momento suas pernas ficarão cansadas, e quando suas pernas cansarem, então George Jackson e o povo irão arrancar seus joelhos.

Então seremos muito práticos. Não iremos fazer declarações e acreditar nas coisas que as autoridades da prisão dizem – suas histórias incríveis sobre um homem matando cinco pessoas em trinta segundos. Iremos seguir adiante e viver de forma muito realista. Haverá dor e muito sofrimento para que nós possamos nos desenvolver. Mas mesmo em nos­so sofrimento, eu vejo uma força crescer. Eu vejo o exemplo que George deu ainda vivo. Sabemos que todos nós iremos morrer algum dia. Mas nós sabemos que há dois tipos de morte, a morte reacionária e a morte revolucionária. Uma morte é significativa e a outra não é. George certamente morreu de maneira significante, e a sua morte terá muito peso, enquanto as mortes daqueles que morreram naquele dia em San Quentin pesarão menos do que uma pena. Mesmo aqueles que os apoiam agora não os apoiarão no futuro, porque estamos determinados a mudar suas mentes. Iremos transformar as suas mentes ou então no nome do povo teremos que extirpá-los completamente, completamente, absolutamente e completamente.

Todo Poder ao Povo!

Todas as palavras são inadequadas para expressar a dor que se sente por um camarada caído. Mas em um poema, meu irmão Melvin chegou mais perto do que qualquer um em dar voz a nossos sentimentos sobre a perda de George Jackson:

O Chamávamos de General

O céu é azul,

Hoje está claro e ensolarado,

A casa que George já

viveu, mirada no túmulo,

Enquanto o Pantera falava

do espírito.

Eu vi um homem se mover como um gato

pelos telhados,

Deslizar pelo horizonte,

Não deixando nem sombra,

apenas correntes no mar,

usando suas mãos calejadas,

e pés quebrados para

quebrar as barreiras.

Os anjos dizem que seu nome

é George Lester Jackson -

El General.

por Huey P. Newton

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