"Sobre o Discurso do Método de Descartes"

No mês de junho deste ano (1937), exatamente a trezentos anos atrás, a obra “Discurso Sobre o Método de Conduzir Corretamente a Razão e Buscar a Verdade nas Ciências, de René Descartes, surgiu pela primeira vez, sem o nome de um autor.
O Partido Comunista Francês fez um esforço especial para garantir que a celebração deste aniversário vá além do marco de uma comemoração acadêmica.
Em nome do grupo parlamentar comunista, nossos camaradas Cogniot e Berlioz registraram uma proposta convidando o governo a tomar todas as medidas necessárias para organizar a “Celebração Nacional do Tricentenário do Discurso sobre o Método de René Descartes”. A imprensa do Partido está esforçando-se para que o trabalho de Descartes seja de conhecimento da classe operária e das massas populares da França.
Nosso Partido assumiu assim a liderança nas celebrações do tricentenário deste Discurso.
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Descartes é um dos maiores pensadores franceses e um dos maiores gênios que a França deu à humanidade.
Suas obras, cuja universalidade é um dos seus traços mais característicos, abrangem os principais ramos do conhecimento e, em cada uma delas, Descartes foi um grande inovador.
Ele era um metafísico, mas à maneira dos grandes metafísicos do século XVII.
Marx escreveu:
“A Metafísica no século XVII (Descartes, Liebniz e outros) ainda continha um elemento secular positivo. Ela fez descobertas em matemática, física e outras ciências exatas que pareciam estar dentro de seu escopo. ” [1]
De fato, Descartes foi um dos criadores da matemática moderna.
Na física, Descartes é o primeiro a ter compreendido toda sua extensão e aplicado de maneira consistente o modelo matemático-experimental, dando assim um passo gigantesco no caminho aberto por Francis Bacon e Galileu, e abrindo caminho para Newton.
Também nas ciências biológicas, Descartes é o primeiro a buscar de maneira sistemática a explicação dos fenômenos orgânicos pelos dados positivos da ciência.
Brilhante inovador em filosofia, assim como nos principais ramos da ciência, Descartes como Francis Bacon, foi um inovador na técnica, no sentido em que proclamou com perfeita clareza que a verdadeira ciência era a condição para uma técnica eficaz. Com isso como ponto de partida, ele se ocupou particularmente da renovação da medicina em bases científicas.
Graças ao gênio de Descartes, o pensamento francês no século XVII brilhou de forma incomparável.
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Mas as honrarias prestadas a Descartes nas circunstâncias atuais adquirem um novo significado, em que o Discurso do Método, publicado na Holanda anonimamente por medo de perseguição por parte da Igreja, é o símbolo por excelência.
Descartes não apenas fez descobertas científicas brilhantes: ele empreendeu reforma radical de todo o edifício científico. Ele entendia que a ciência moderna era a negação da ciência livresca e ineficaz deixada pela Idade Média, e expressou essa negação de maneira decisiva e consistente, rejeitando inteiramente o escolasticismo e a autoridade de Aristóteles, com a qual o primeiro se associou. Descartes completou então o grande trabalho crítico do Renascimento.
Essa negação foi tão consciente em Descartes que ele expressou várias vezes a ideia de que entre a sua filosofia e a escolástica há tal oposição que, se uma é verdadeira, a outra é necessariamente falsa. A mecânica, que Descartes queria construir sem a noção de força, já que a esta era de origem aristotélica, mostra em que medida, nessa negação do escolasticismo, Descartes queria ser consistente, atraindo desta forma as célebres críticas de Leibniz e depois de Voltaire, determinando os cartesianos para depois lutar contra a noção newtoniana de gravitação universal.
Mas o que constitui o valor mais universal da obra de Descartes, a fonte de sua influência mais decisiva e, com a física matemática, o aspecto mais vivo de sua obra, é que Descartes não limitou a negação do escolasticismo e a autoridade da tradição com os problemas das ciências em particular. Ele negou a autoridade da tradição e do escolasticismo como um todo, proclamando em sua face os direitos do espírito crítico e da razão, buscando derivar das ciências mais avançadas, como a matemática, um método universal.
Desta maneira, Descartes abre o caminho não apenas para outros grandes metafísicos que eram defensores do pensamento livre, como Spinoza, mas também para os enciclopedistas franceses. Descartes é o brilhante defensor do pensamento moderno, que vê nas ciências positivas o único caminho que pode levar o homem ao verdadeiro conhecimento e, através do verdadeiro conhecimento, ao domínio consciente das forças naturais e sociais. D’Alembert escreveu sobre ele:
“Descartes ousou, pelo menos, mostrar bom ânimo em como se livrar do jugo dos escolásticos, da opinião, da autoridade, numa palavra, dos preconceitos e da barbárie. E por essa revolta, cujos frutos agora colhemos, ele prestou um serviço à filosofia mais essencial talvez do que todos aqueles que, de maneira ilustre, o sucederam. ”[2]
O progresso filosófico e científico para o qual Descartes abriu caminho, assim como a evolução da sociedade, levou nosso conhecimento e método a uma etapa superior. O dualismo cartesiano de extensão e pensamento, isto é, de mente e matéria, já fora superado por Spinoza, e que fora superado por Leibniz e pelo materialismo francês do século XVIII.
“O materialismo mecânico francês”, escreveu Marx, “adotou a física de Descartes em oposição à sua metafísica. Seus seguidores eram por profissão anti-metafísicos, ou seja, físicos. ”[3]
Tal materialismo mecânico, por sua vez, foi superado pelo materialismo dialético.
Mas esses diversos progressos alimentam-se de Descartes e sucessivamente assimilam, de uma forma mais ou menos aperfeiçoada, o que há de vivo no trabalho de Descartes.