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“Quem é o povo?”



Reflexões para uma definição do conceito de povo


1. Introdução


O nível ideológico em que se move a atividade política cotidiana inclui a presença inquestionável e apodíctica de uma série de conceitos-chave, para os quais nunca se oferece uma explicação. Dá a experiência de que os mesmos termos servem para esconder realidades muito diferentes. Isso não importaria tanto, se em cada caso se soubesse a que realidade se está aludindo. O grave é que, na maioria das vezes, esses conceitos mantêm uma nada asséptica ambiguidade e, sob o pretexto de uma reprodução objetiva da realidade, o que transmitem é uma representação parcial, interesseira e até opressiva dela. Alguns destes conceitos já começaram a causar crise entre nós. Assim, por exemplo, os conceitos de democracia, paz, violência, desenvolvimento e apoliticismo. Não é assim o conceito de povo, que ainda está rodeado por um sopro de dinâmica "progressista-subversiva", um mítico cavaleiro de revoluções e revoltas ("populares"), um estímulo evocativo de nebulosas fantasias.


Fala-se do povo no nível das orientações políticas, para justificar e legalizar ("para o bem do povo") o que, normalmente, continuará a deixar o povo à margem. Sob a bandeira do povo se tomam as decisões mais díspares; o povo é usado por aqueles que tentam um golpe de Estado como por aqueles que o reprimem; o povo é representado por aqueles que defendem a Reforma Agrária e por aqueles que a atacam; o povo é usado como escudo por aqueles que administram a justiça e por aqueles que denunciam sua podridão... Este uso contínuo do termo povo sob as epígrafes mais opostas esvazia de todo o sentido, deixando-o como um módulo formal a serviço de qualquer interesse político. Entretanto, a persistência do módulo formal, a obrigatoriedade de seu uso para quem, honestamente ou não, pretende se alternar no campo político, indica a presença de uma espécie de imperativo categórico, que condiciona a que fazer público àquela entidade "x" que se chama o povo. Mas, no final, quem é esse "x", quem é esse povo?


É óbvio que, em muitos discursos e declarações, o termo povo é um eufemismo que apenas oculta a presença de quem detém o poder ou de seus beneficiários diretos. O bem do povo ou as reivindicações do povo não significam, nestes casos, mais do que o bem ou as reivindicações de grupos influentes e minoritários em um determinado país.


Em outros casos, especialmente no contexto de certas ideologias políticas "nacionalistas", o termo povo costuma ser identificado indiscriminadamente com a totalidade dos habitantes de um determinado espaço geográfico (delimitado por fronteiras nacionais, às vezes incertas), que se agrupam, nesta entidade política - mais ou menos arbitrária - chamada nação e que, supostamente, participam de um destino comum. Povo é, então, todo aquele que pertence a essa determinada nação, sob o pressuposto de que um certo enraizamento biológico comum (emoldurado por fronteiras comuns) é o que garante o mais autêntico destino de uma comunidade, além de qualquer tipo de diferença. Assim entendido, o conceito de povo pode implicar uma cegueira maliciosa (não necessariamente consciente), já que suprime de um só golpe o conflito que pode opor irreconciliavelmente os diversos setores que compõem uma nação.


Não é o caso de insistir naqueles usos do conceito povo em que, pela via da nacionalidade, se identifica com uma opção religiosa, uma filiação partidária ou, o que é ainda pior, uma raça. A cegueira estática e a dialética são então consagradas em um padrão que procura sair da história, em uma perpetuação forçada da situação dominante, situação obviamente lesiva dos direitos mais fundamentais das “minorias” que, estatisticamente, são muitas vezes maiorias esmagadoras. Esse uso do conceito de povo é mais ou menos característico de regimes totalitários, fascistas ou não.


O uso mais generalizado do termo povo o relaciona com o pólo menos-habitado da díade de elite-massa. Ao contrário daqueles que, em um ou outro setor da realidade, se destacam, o povo é aquele que não se destaca, que marca a norma, a média estatística; o povo é o homem "comum", o homem da rua, "Juan Pérez" ou "Pablo Campo". Ao contrário da "exceção", o povo é a regra. Nesta linha, as pessoas devem ser os possuidores por excelência dos traços de uma suposta identidade nacional.


Nesta mesma óptica de contraposição, o povo passa a ser, em certos casos mais específicos, o setor mais necessitado dos grupos que constituem uma determinada sociedade. O povo é o impotente, o necessitado, aquele que, de uma forma ou de outra, não tem. O marxismo virá para identificar o povo com a classe trabalhadora em oposição à classe burguesa-capitalista, na medida em que o trabalhador está sendo privado dos frutos de seu trabalho pelo capitalista. O povo é, então, o proletário, necessariamente "ressentido" (ressentimento entendido como um potencial revolucionário positivo para a reivindicação social), embora talvez ainda desconheça seus direitos e até mesmo suas justas reivindicações.


Todos estes usos indiscriminados do termo povo parecem esconder uma ambiguidade interessada (espelhos ilusórios), que permite a qualquer um capitalizar em benefício dos seus próprios interesses os direitos implicitamente atribuídos ao demos, ao povo, a quem supostamente pertence a última palavra sobre as determinações e destinos políticos. Se um governo, um partido ou um indivíduo tem por trás de si o apoio de um povo, suas ações já são justificadas —são democráticas, no sentido mais autêntico do termo—, e não há a necessidade de recorrer a uma instância posterior. Daí a importância para qualquer político de poder falar “em nome” do povo, poder sustentar suas ações com sua “aprovação”, ou proteger suas decisões nas “demandas” e “necessidades” populares.


É importante, portanto, esclarecer ao máximo as características que realmente determinam o que é o povo, a fim de distinguir os usos objetivos (e sinceros) do termo povo daqueles que não são, ou, em outras palavras, definir quem é o povo e quem não é e, portanto, quando um “que fazer” que se queira e se afirme "popular" é realmente popular e quando não é. Qualquer reflexão que pretenda lançar luz é, nesse sentido, um esforço urgente e necessário. As seguintes reflexões visam colaborar nesta tarefa, com plena consciência de sua precariedade e natureza esquemática.


2. Três aspectos do conceito de povo

Os vários usos apontados colocam o significado do conceito povo em uma ou mais das três áreas, profundamente relacionadas entre si: a histórica, a política e a socioeconômica. Além da arbitrariedade de interesse que a delimitação de cada uso em uma dessas áreas pode acarretar, ou seja, a deformação significativa que cada uso introduz entre a realidade e sua interpretação, esta tripla referência aponta para aqueles campos em que o conceito de povo é significativo. Pode-se, então, afirmar que o povo tem uma significação histórica, uma significação política e uma significação socioeconômica, e que cada um desses significados nada mais é do que um aspecto que tenta definir, a partir de uma determinada perspectiva, a realidade do mesmo. Diante das parcializações semânticas operadas pela maioria dos que publicamente se vale do conceito de povo, é preciso destacar que o histórico, o político e o socioeconômico são três traços que delimitam, cada um a seu modo, uma característica da mesma entidade povo e que, portanto, a entidade só é real na medida em que integra (ao menos como exigência intrínseca, ainda que implícito) essas três características.


Povo é aquele, mas somente aquele, de quem esses três traços podem ser predicados com verdade objetiva como elementos da mesma estrutura da significação. Tornar absoluto qualquer um desses três traços é falsear teoricamente o conceito de povo, e não apenas no que diz respeito aos traços negados, mas até mesmo na transformação que, pela ausência dos aspectos complementares, opera na característica negada. Assim, por exemplo, identificar o conceito de povo com o conceito de nação opera uma absolutização do fator histórico, que não apenas esquece as contraposições dinâmicas que operam na nação, mas também a rejeita, falseia a mesma realidade histórica, tornando-a estática e fatalista, isto é, mitologizando-a. Na prática, o povo torna-se então o instrumento desses interesses predominantes, mitificados como nacionais (universais).


Entretanto, o fato de o povo ser constitutivamente definido por esses três traços não significa, longe disso, que eles tenham sempre e invariavelmente a mesma importância ou que não se convenha enfatizar um sobre o outro em algum determinado momento. A ênfase é uma necessidade dialética, aceitável quando o conhecimento é experiencial e não simplesmente teórico. Enfatizar, por exemplo, em um dado momento, a historicidade do conceito de povo, pode ser uma necessidade política do próprio povo, a fim de contrapor sua identidade nacional frente a interesses dominantes, alheios e alienantes. Enfatizar, em outro momento, sua caracterização socioeconômica pode ser importante para definir com nitidez as prioridades políticas de um governo, inclinado demais a obscurecer-se por um desenvolvimentismo que coloca o crescimento acima da justiça, relação de subordinação que institucionaliza a opressão (interna e externa). Finalmente, destacar o aspecto político do povo pode ser necessário em outras circunstâncias, a fim de condensar e canalizar as forças verdadeiramente revolucionárias de um país para a realização de objetivos comunitários (o que muitas vezes é a intenção dos chamados "populismos").


Enfatizar, pois, os vários aspectos, não significa falsear o conceito do povo. A falsificação virá quando se produz uma absolutização, ou seja, quando a afirmação de um traço nega qualquer um dos outros. Então a entidade que se esconde sob o nome de povo não é mais o próprio povo, mas uma representação tendenciosa e interesseira dele. E a representação não é uma realidade objetiva, mas subjetiva - correspondendo à subjetividade dos grupos dominantes.


2.1. Aspecto histórico


O conceito de povo expressa, antes de tudo, uma realidade histórica. Em outras palavras, quando falamos de um povo em geral, cometemos uma notável imprecisão, porque o que realmente existe não é "o" povo, mas os povos concretos: o povo de El Salvador, o povo da Tanzânia, o povo dos Estados Unidos, o povo da China. Não é o mesmo, evidentemente, o povo salvadorenho que o povo norte-americano, nem este que o povo tanzaniano ou chinês. Damos intencionalmente exemplos de povos muito diferentes para mostrar que, se em todos os casos é justo falar de um povo, em cada caso a realidade é muito diferente. Despojar o povo de sua concretude histórica é idealizá-lo (no sentido pejorativo da palavra), como se os povos fossem estranhos ou independentes das realidades cotidianas —passadas, presentes e futuras— que os moldam, ou como se suas características peculiares fossem acidentes temporários, em nada determinando sua estrutura, e não condições essenciais de seu ser e de sua existência.


Os povos são históricos. É a história que determinou sua peculiaridade atual, a única que pode dar razão a sua situação atual. O povo não significa, portanto, o mesmo em uma nação e em outra. Há variáveis muito importantes que a história tem decantado: a raça, as fronteiras, o sistema político, a cultura, a conformação dos diferentes grupos…


Não se é um povo por trás da história, muito menos contra ou à margem das determinações da história. A conquista, as relações com a metrópole, as lutas pela independência, o liberalismo e a neocolonização têm determinado quem e como se é um povo na América Latina. Quem, como e por que. Três determinações diferentes e concretas no caso de cada povo latino-americano. Afirmar que cada um tem uma história é negar a causalidade e o fatalismo em relação ao estado atual de nossas nações. Mas convém ressaltar que a história dos povos latino-americanos não coincide com as histórias oficiais que são impostas na escola. Em muitos casos, eles não só não coincidem, como até mesmo se contradizem. Agora é comum, por exemplo, que as chamadas lutas pela independência não tenham sido história para muitos de nossos povos latino-americanos e que, certamente, muitos dos governos atuais (forjados e conspirados em escritórios assépticos onde se fala inglês) façam "sua" história às custas do povo.


A historicidade do conceito povo afirma, portanto, a concretude - espaço, tempo e características - que a realidade tem em cada caso e em cada situação. Neste sentido, não é possível generalizar nem pretender que todos os povos sempre assumam os mesmos processos ou façam as mesmas escolhas. A história afirma, simplesmente, o presente de um povo, mas como produto de um passado e apontando para um futuro. Povo é, neste sentido, um dado, mas, acima de tudo, um desafio e uma esperança: a verdade do povo ainda está por fazer. Por isso, o traço histórico de um povo aponta para o objetivo de sua realização na liberdade, o que requer uma história de libertação. Porque historicamente o povo é chamado a ser - ser ele mesmo -, devendo superar suas escravizações concretas, deve eliminar tudo o que o impede de se tornar ele mesmo. A historicidade de um povo é o dado e a promessa de suas lutas pela liberdade e a autodeterminação de seu destino axiológico. Mas o que escraviza um determinado povo em uma determinada situação não coincide necessariamente com a causa da escravidão de outro e, portanto, é ingênuo ou malicioso tentar simplesmente transferir esquemas de uma situação para outra. Não há modelos prontos ou pílulas milagrosas; cada povo deve se libertar, assumindo responsavelmente sua própria história.


Falar, então, da historicidade de um povo está necessariamente ligado à vocação de todo povo para a liberdade. A liberdade - que são liberdades ou a negação de liberdades concretas - marca o caminho pelo qual se move a história dos povos, em uma dialética determinante do que é um povo e do que é popular. Qualquer referência a um povo, que esquece suas liberdades e suas escravizações concretas, está perdendo de vista sua historicidade e, portanto, está falseando sua realidade.


2.2. Aspecto político


O conceito de povo alude de alguma forma a uma sociedade (concreta, já que é histórico). Mas se ele conota uma sociedade, é na medida em que: a) há um setor que não é povo, também constitutivo da mesma sociedade, e b) se dão relações dinâmicas entre os dois setores da sociedade.


Em seu aspecto político, povo é um conceito dinâmico. A "polis" ou sociedade se constitui a partir de um conjunto de forças e interesses, uns complementares, outros opostos. São precisamente essas forças e interesses que determinam fundamentalmente a configuração e as características dos diversos grupos sociais. Nesse jogo de forças, o povo é o elemento humano por excelência, o potencial social, ou seja, homens ou grupos como constituintes essenciais da comunidade social.


Se por comunidade social entendemos aquela estrutura de relações humanas que permite que todos os seus membros se desenvolvam integralmente através de uma interação harmoniosa e criativa, é óbvio que esta estrutura comunitária constitui o objetivo de toda política saudável. Mas a realidade mostra diariamente que esta comunidade é negada e bloqueada por aqueles grupos que, de uma forma ou de outra, detêm os poderes. Assim, a marginalização, a opressão e mesmo o esmagamento que alguns grupos exercem atualmente sobre outros, configuram uma estrutura social anticomunitária, cuja existência é a demonstração mais evidente da inconciliabilidade entre os interesses dos diversos grupos. O povo é, neste contexto, um conceito politicamente conflituoso, pois separa quem é um povo de quem não é. E quem é o povo? Simplesmente, qualquer pessoa cuja presença seja (ou possa ser) um fator de integração comunitária. O povo é todo aquele apto (objetividade) e capaz (subjetividade) para a configuração de uma autêntica comunidade social, uma nova comunidade, na qual todos os indivíduos e todos os grupos são igualmente acolhidos.


Não é o povo, portanto, o dissociador, aquele que apresenta uma dinâmica ou interesses que o separa dos demais, que o opõe dos demais. Mas é importante distinguir este conceito de dissociador daqueles comportamentos oficialmente classificados como "antissociais" ou "subversivos", já que esta antissocialidade é precisamente oposta à sociedade atual, negadora da comunidade, e o que ela procura subverter são seus valores anticomunitários. Com isso não estamos dando nossa aprovação indiscriminada a todo ato "subversivo", até porque uma das mais notáveis habilidades ideológicas da mídia oficial (ou não oficial) consiste em incluir a política e a polícia sob o mesmo tratamento, tornando crimes políticos em crimes comuns ou atribuindo crimes comuns à inspiração e perspectiva política.


Antipopular ou, em outras palavras, anticomunitário, é o individualista que rejeita a união, o competidor para quem o sucesso implica necessariamente passar por cima dos outros, o capitalista, cujo enriquecimento se baseia na exploração do trabalhador, em uma palavra, o mestre que só pode sê-lo frente a um escravo. Em contraste com o dissociador, o povo é o integrador da comunidade, aquele que está apto e capaz de integrar uma comunidade social, aquele que pode realmente se solidarizar com o outro em um plano de igualdade. Não é nem pode ser o povo que, por interesses de um ou de outro tipo, se dessolidariza de fato do outro: aquele que, para ser, tem que rejeitar o plano de igualdade como estrutura social.


Se o povo é aquele que apresenta o potencial dinâmico de uma comunidade nova e universal (no sentido de abraçar todos os grupos e indivíduos em plano de igualdade), é evidente que o povo representa mais uma promessa para o futuro do que uma realidade presente. O povo é o depositário daqueles valores sociais (comunitários) que, porém, não podem vir à tona a não ser em forma de esboço ou como uma possibilidade reprimida. Povo é, portanto, o coração da identidade de uma sociedade, mas não enquanto atualidade, mas como uma abertura para o futuro comunitário. É a denúncia da falta de solidariedade atual e o anúncio de uma comunidade do amanhã.


Falar politicamente do povo é, portanto, referir-se ao seu potencial de solidariedade comunitária, à sua abertura a uma sociedade diferente e nova, na qual as forças dos vários grupos se unem em um objetivo comum, e os interesses particulares não prevaleçam, nem a existência de um setor se funde na negação opressora do outro. Mas, por tudo isso, o conceito político de povo constitui uma dolorosa tarefa.


2.3 Aspecto socioeconômico.


O povo é, enfim, um conceito que aponta para ser frente ao ter. Dessa forma, é aquele que baseia sua realidade não no que têm, mas no que é. Em uma situação de injustiça, de divisão radical entre os grupos que compõem a sociedade, de oposição de interesses, de violência e desapropriação de uns por outros, o povo não pode ser outro senão aquele que não têm, embora não apenas pelo não-ter. Mais claramente, pode-se afirmar que aquele que tem em nossa sociedade não pode ser o povo, porque seu ter é exclusivo e excludente em relação aos que não têm, ou seja, só pode ter às custas do não-ter do outro. Neste sentido, construir o ser sobre o ter é construir um ser que nega o ter do outro e, portanto, um ser egoísta, desvinculado do outro.


O povo é, portanto, o despossuído contra o possuidor, o oprimido contra o opressor, o espoliado contra o espoliador, o que não tem contra o que tem, o miserável contra o rico, o marginalizado contra o integrado, o escravo contra o mestre. Assim, é a falta de poder, autonomia, conhecimento. A negação de todos aqueles saberes que constituem a atual sociedade violenta, aqueles terem que coisificam e instrumentalizam alguns homens em benefício de outros. Povo é a ausência de palavras, a cultura do silêncio.


Evidentemente, o simples fato de sofrer a desapropriação não torna automaticamente um indivíduo ou um grupo o povo; mas o ato de desapropriar aliena um indivíduo ou um grupo do povo. Em nossa sociedade, não é possível ser e ter, já que ambos são construídos sobre o fato histórico concreto que atualmente os coloca um contra o outro como incompatíveis. Sejamos claros: não estamos julgando ter em abstrato, o que não é senão uma ficção ideológica. Julgamos o que implica em ter na nossa sociedade atual. E o que isso implica é o não-ter do outro. Assim, enquanto o ter social for às custas do outro, da exploração ou desapropriação do outro, ter será necessariamente dessolidarizante, alienante. Hoje, a posse separa antagonicamente os homens, criando a situação fundamental da violência institucionalizada.


Por isso que o conceito de povo está escrito em suas entranhas, como um aspecto essencial, a exigência de justiça integral, a justiça de uma nova estrutura social, na qual o ter flua através umas relações igualitárias do ser, em outras palavras, uma estrutura baseada em uma tendência comunitária, que possibilidade o ser de todos como comunidade. Não se pode falar de povo ignorando o fato de que o poder econômico, acumulador e individualista (capitalismo) implica necessariamente a negação do outro.


O povo, como exigência por justiça socioeconômica, representa um potencial revolucionário, que exige a transformação radical das relações estruturais da sociedade. É ele quem não pode permanecer ancorado no presente, quem é por esse presente despossuído e violado. Ele é o necessariamente insatisfeito, o oprimido que busca o desaparecimento da opressão. O povo é o escravo que busca se libertar, eliminando como tal o senhor e o escravo. Aquele que está inconformado com o presente, necessariamente ressentido. É sintomático comprovar o desprezo autojustificador com que o povo é acusado de "ressentido". Será que se pretende que o povo sofra opressão, a desapropriação, a violência e, sobretudo, expresse gratidão por isso? O ressentimento significa, para quem sabe ler a história, a consciência angustiada e profética de uma situação de injustiça. Por isso, o ressentimento constitui aquela carga “libidinal” necessária para que os grupos populares se constituam em geradores de mudanças profundas e possam suportar os muitos sacrifícios que um processo revolucionário exige.


Falar socioeconomicamente de um povo implica expor a imoralidade e a injustiça nas relações sociais atuais, contrastar os pobres com os ricos e convocar uma negação da histórica de toda opressão e de todo o opressor, a fim de afirmar todo homem a todo o homem.


3. Rumo a uma definição do conceito de povo.


De acordo com nossa análise, o conceito de povo implica três aspectos complementares: concretude histórica, solidariedade política e desapropriação socioeconômica. Cada um desses aspectos se move na linha de um valor social: a história busca a liberdade, a solidariedade se esforça para configurar uma comunidade, a desapropriação exige justiça. No entanto, não se trata de forças mecânicas ou processos automáticos. Precisamente porque não é assim, o conceito de povo tem um sentido hoje, como teve ontem e terá amanhã. Ele é uma busca e um esforço para realizar uma comunidade concreta de homens livres. Nesse sentido, é a negação de toda escravidão, não como realidade presente, cumprida, mas como exigência dinâmica, como vocação, ou seja, como um chamado. E esse chamado, entenda bem, pode ficar reprimido no inconsciente, reprimido pela violência ciumenta do opressor. A história atual dos povos latino-americanos mostra de forma palpável como, ao despertar na consciência popular esta vocação comunitária, segue o esforço cada vez mais violento por parte do poder estabelecido para reprimir e silenciar: Brasil, Uruguai, Bolívia, Chile...


No entanto, ainda precisamos tentar encontrar um sentido unitário para esta realidade tridimensional que é o povo. Um sentido que defina a relação frente ao mundo do povo e de quem, como povo, se coloca diante do chamado da história. Em outras palavras, nos perguntamos qual é a atitude radical que define um grupo social (ou um homem específico) como povo.


Vamos rever brevemente as notas atribuídas ao povo. Em primeiro lugar, historicamente temos sublinhado a concretude atual de cada povo em oposição à sua concretude futura. Em outras palavras, temos mostrado como esse conceito aponta para seu estado atual como uma etapa que deve ser negada, superada dialeticamente. Politicamente, o povo nos foi mostrado como a negação de toda falta de solidariedade diante do chamado a constituir uma verdadeira comunidade social. O povo é o reconhecimento do atual individualismo dissociador e egoísta, mas como uma estrutura que deve ser eliminada. Finalmente, o aspecto socioeconômico enfatiza um ser futuro diferente do ser atual, baseado na espoliação dos outros. Afirma-se um ser novo, do amanhã, que não exige o não-ser oprimido dos outros, e isso através de um ter comunitário e comunicativo.


Há algo em comum nos três aspectos: a negação do presente e a afirmação do futuro, a rejeição do que já está dado e do que já está estabelecido. Mas não se pode deduzir que o que há em comum nos três aspectos definidores do povo é uma simples negatividade, pois o negativo se afirma como necessidade de superação dialética. Se o presente é negado, é porque o futuro se afirma; o hoje é rejeitado porque o amanhã é afirmado. Portanto, a atitude definidora do povo é a atitude de abertura.


O povo é, portanto, símbolo de abertura. Abertura diante de toda a mente fechada; flexibilidade diante de todo entrincheiramento; elasticidade diante de toda rigidez; disponibilidade diante de toda estagnação. O povo é faminto por mudança, pela afirmação do novo, pela vida na esperança.


Socioeconomicamente, o povo é aquele que aceita e procura ser outro. Politicamente, é aquele que está aberto ao outro. Historicamente, é quem busca e luta pelo outro.


A qualidade do povo no plano socioeconômico implica uma abertura à alteridade pessoal. Se está disposto a ser você mesmo de uma maneira diferente, em um plano de igualdade, sem privilégios ou mecanismos opressores.


A qualidade do povo no plano político implica uma abertura ao outro, à outra pessoa: se está disposto a deixar-se questionar pelo outro, como um ser diferente, a escutar sua palavra (diálogo), a se relacionar com ele e junto com ele (não acima dele) a enfrentar a realidade, a unir-se solidariamente em uma luta que transformará ambos.


A qualidade do povo no nível histórico implica, finalmente, uma abertura para o outro: há uma disponibilidade para o novo, uma opção para o progresso comunitário, para a realização criativa de um destino comum e realizador.


Socioeconomicamente, o povo nega a viabilidade do individualismo competitivo; politicamente, a autossuficiência egoísta; historicamente, o fim do estado atual absolutizante.


Em resumo, quem, em uma dada situação histórica, está aberto para o outro e outro, a fim de se tornar outro.


4. A título de conclusão


O caráter provisório das reflexões anteriores não permite tirar conclusões definitivas. No entanto, permite vislumbrar certas fronteiras que devem orientar um posterior aprofundamento e concretização (em cada caso) do conceito de povo e nos oferece alguns critérios à luz dos quais julgar a veracidade ou falsidade dos usos feitos desse conceito.


a. Em primeiro lugar, não se pode falar de um povo como uma entidade estática, fixa e acabada. Se algo ficou claro, é que a parte mais profunda do ser do povo, em termos de seu significado estrutural, é sua abertura dinâmica. Portanto, diante de qualquer ideologização desse conceito, diante de qualquer tentativa reducionista ou absolutizante, a realidade do povo está sempre mais além. Sua essência consiste, precisamente, em não se deixar fixar em categorias estáticas, o que na realidade significa que o povo sempre escapa de qualquer tentativa de interromper a história em benefício de quaisquer interesses particulares.


b. Não é possível reduzir a realidade do povo a uma determinada classe social, o que não diminui o fato de que, em um determinado momento ou em uma determinada situação histórica, uma determinada classe social pode constituir o povo por excelência e até mesmo ser identificado com ele. Portanto é um conceito que, sem fugir à realidade do conflito histórico (que o salva da acusação de idealismo), abrange ou pode abranger mais do que o conceito de classe social (classe trabalhadora; proletariado). Nem todo proletário, pelo simples fato de ser um, é um povo. É verdade que dificilmente alguém pode se tornar o povo nas circunstâncias atuais sem sofrer em si mesmo o impacto da proletarização.


c. O conceito de nação e, sobretudo, de nacionalismo, deve ser baseado na categoria de povo, tal como aqui entendida. Somente assim desaparecerá o matiz privatista, tão típico dos atuais movimentos "nacionalistas", que permitirá a afirmação da própria identidade sem negar a necessária comunidade; além disso, não somente não negará, mas a comunidade será afirmada com base no que é próprio e pessoal. Foi Che Guevara quem disse que não se pertence ao povo em que se nasce, mas àquele pelo qual se luta e morre. É esta postura radical - servindo um povo - que define o nacionalismo de um determinado indivíduo ou grupo social, e não sua certidão de nascimento, seu sotaque ou sua gesticulação mais ou menos grandiloquente.


d. Parece-nos que o conceito de povo, como o entendemos aqui, é suficientemente operativo. Por um lado, explica a variedade e diversidade histórica das realidades concretas chamadas povos; por outro, oferece uma base conceitual adequada como plataforma para um trabalho revolucionário, consciente da própria identidade, não como um mero dado, mas como uma vocação histórica.



Ignacio Martín-Baró (1974)


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