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"O Corpo Estudantil e a Estrutura Universitária"



1. Introdução


Este trabalho reproduz, basicamente, o documento apresentado no III Encontro de Administradores, organizado pela Federação de Universidades Privadas da América Central e Panamá (FUPAC), realizado no Panamá, de 8 a 10 de agosto de 1973, sobre o tema “Assistência e orientação ao estudante”. Porém, fizemos uma série de acréscimos que pretendem incorporar criticamente a experiência concreta da Universidade Centro-Americana "José Simeón Cañas" (UCA). Essa experiência ainda não é longa o suficiente para oferecer diretrizes seguras; mas é suficientemente específica para nos permitir verificar nela os principais obstáculos e potencialidades que devem ser levadas em conta em uma ação universitária que queira ser nova e radicalmente inovadora.


2. Natureza e funções da Universidade


A natureza e as funções de uma organização universitária que, em princípio, pretenda prestar determinados serviços ao corpo discente dependerão, por um lado, da natureza da Universidade específica em que se encontre e, por outro lado, do tipo dos estudantes que chegam a essa Universidade e suas necessidades em função dos objetivos que querem alcançar. Com isso quero dizer que, de forma alguma, podemos fazer um planejamento abstrato do que deve ser um serviço ao corpo discente; Seria falsificar totalmente as peculiaridades históricas de cada Universidade, bem como suas raízes em uma situação e em um meio específico. Por esta razão, vou definir qual deve ser a natureza e as funções de uma Universidade na América Central, da situação e expectativas existentes em relação aos estudantes que chegam às nossas Universidades. A partir daí poderemos entender melhor a razão e o sentido que deve ter a assistência estudantil entre nós.


Uma universidade que quer ser centro-americana não pode ser uma organização de e para um povo específico. Trata-se, portanto, de uma organização que surge de um povo (e não de interesses intencionalmente particulares), que pertence radicalmente a um povo, que faz uso dela – como de outras possíveis instituições escolares – para sua formação e sua cultura. Em outras palavras, a única razão de ser de nossas Universidades está nas pessoas que as geram, as sustentam e a quem devem inevitavelmente servir. O ser, portanto, das nossas Universidades não é - não pode ser - um ser-para-si, mas um ser-para-outros; uma entidade cuja realidade aponta em sua totalidade para aquele outro que é o povo que a abriga.


Agora, assumindo a realidade conflituosa de nossas sociedades, onde poucos estruturam a organização social em função de seus interesses privados, em aberta oposição aos interesses e necessidades da maioria, a Universidade é de fato uma instituição produzida por essa classe dominante e estruturada para servir e preservar seus interesses. Isso se aplica da mesma maneira às universidades estatais quanto às privadas, independentemente de seu serviço à classe dominante seja mais ou menos valioso, mais ou menos crítico. Assim, a Universidade não nasce nem floresce no meio de um povo em harmonia, mas no seio de uma sociedade profundamente dividida; e nasce como instrumento (muito importante, por sinal) da classe que detém o poder. Isso fica claro no caso da UCA, nascida no calor do anticomunismo e alimentada pelo impulso desenvolvimentista que abalou El Salvador na década de sessenta (década do Mercado Comum Centro-Americano).


Por isso, se uma Universidade quer ser uma organização de e para um determinado povo, terá que optar por determinados interesses: ou para aqueles que lhe deram vida, ou para aqueles que reivindicam a vida dos setores oprimidos. A escolha é necessária, pois entre um e outro há uma radical incompatibilidade. Mas a decisão deve ser universitária, não partidária. Este ponto é importante para que não se deturpe o sentido da Universidade.

Uma Universidade que, em nossa situação, opta de fato por servir aos interesses da classe dominante é, portanto, uma Universidade antipopular, alienante e historicamente negativa. Para aqueles que, não como realização, nem mesmo como objetivo ou ideal, se propõem essa radical incardinação no povo e em seus interesses, este trabalho nada tem a dizer a eles. Acredito que estas não são verdadeiramente universidades centro-americanas e que deveriam desaparecer, pois constituem um fardo, senão um foco de dominação e opressão históricas.


Esta organização que chamamos Universidade é constituída por um grupo de pessoas que, com certos instrumentos e uma certa organização, perseguem determinados objetivos. São três, pois, os aspectos próprios de uma Universidade como instituição: as pessoas que a compõe, a função ou os objetivos que persegue e os meios organizativos e instrumentais que se utiliza para cumprir esses fins.


A primeira e fundamental estrutura que constitui uma Universidade são as pessoas que nela trabalham. Essas pessoas estão agrupadas em três estratos claramente diferenciados: (a) corpo docente, que inclui todos os tipos de professores, pesquisadores e instrutores; (b) corpo estudantil; (c) pessoal administrativo, que deve incluir todos os trabalhadores que tornam possível o funcionamento da organização universitária. A diferenciação em três estratos não impede que eles se sobreponham. Assim, não é raro que os administradores também realizem o trabalho docente, trabalho que sistematicamente vai se aderindo a um número de estudantes, por meio de estágios de ensino, estágios de assistência, etc. A conjunção orgânica desses três estados, regulados por regras (escritas ou não), forma a comunidade, o que ainda não significa nem comunicação nem unidade, que seriam os dois elementos essenciais de uma verdadeira comunidade humana; refere-se simplesmente ao âmbito diversificado de pessoas que compõem uma Universidade. É importante ressaltar que essa comunidade está, por sua vez, dentro de uma comunidade maior, que é a comunidade local ou nacional (e aqui novamente não nos referimos a comunidade no sentido de comunicação e unidade). Mas como todo enraizamento social se dá de forma concreta, acaba sendo (para melhor ou para pior) um enraizamento de classe. O resultado é que, não raro, a comunidade universitária constitui uma negação da comunidade nacional ao constituir-se como um "campus" fechado em si mesmo e, o que é pior, exclusivo de uma certa "elite" social. Como veremos mais adiante, considero este um dos aspectos-chave na realidade universitária no que diz respeito ao trabalho assistencial ou outro que pode ser realizado com o corpo discente.


Os estudantes são um estrato primário em todas as Universidades e, infelizmente, a única razão de ser para muitos dos nossos (se não todos). É verdade que é difícil conceber uma Universidade sem alunos. Como nos lembra R. Mondolfo, de uma secessão de estudantes da Universidade de Bolonha nasceu, em 1222, a Universidade de Pádua e do êxodo de um grupo de estudantes ingleses da Universidade de Paris, entre 1167 e 1168, a Universidade de Oxford. O Movimento de Reforma Universitária iniciado em Córdoba em 1918 insistiu na primazia do corpo estudantil e exigiu por uma participação mais ampla dos estudantes em todas as esferas da vida universitária. Seria interessante analisar se o maio francês de 1968 constitui uma nova etapa em relação ao lugar do estudante na estrutura universitária ou, melhor dizendo, a explosão de uma crise que vinha se formando há muitos anos. De todo caso, desde maio de 1968 até os dias de hoje, as águas universitárias percorreram um longo caminho, não apenas no sentido pedagógico (hoje, o valor de certos métodos "livres", que eram então vistos como uma panaceia, é considerado de forma mais crítica) , mas também no sentido político (certos setores acadêmicos sinceramente se sentem desiludidos com o valor da politização direta da universidade). Uma das coisas que tem se visto com mais clareza é a "falsa consciência" que pode ser gerada ao se considerar o corpo discente como uma classe social. Esta falsa consciência é algo que não se deve perder de vista, muito menos numa situação como a dos nossos países.


Quanto ao segundo aspecto, a UCA definiu sua função essencial como a de ser uma consciência crítica e criativa da sociedade em que se encontra. Não há consciência universitária onde não há ciência; mas uma ciência que pretende ignorar a realidade histórica na qual ela surge e à qual deve responder, uma ciência não comprometida, é uma ciência alienada e alienante.


O terceiro aspecto fundamental de uma Universidade é constituído pelos meios organizativos e materiais que se utilizam para cumprir sua função. Esses meios são canalizados, fundamentalmente, através de três canais básicos, que constituem - devem constituir - o próprio trabalho da Universidade para cumprir sua função: ensino, pesquisa e extensão social. Evidentemente, são três atividades que estão profundamente ligadas entre si: assim, por exemplo, o ensino autêntico deve ser, ou pelo menos pode ser, uma boa pesquisa (ou é alimentada por ela) e, simultaneamente, pode constituir uma extensão social. No entanto, a realidade nos diz que costuma haver um grande abismo entre esses três setores funcionais universitários, o que acaba por levar à atrofia da extensão social, à agonia da pesquisa e à hipertrofia profissionalizante do ensino.


Isso é o que de fato aconteceu nos dez anos de existência da UCA: o ensino tomou a maior parte, tanto em termos de recursos materiais quanto de tempo acadêmico. Quando houve pesquisa, esta foi na maioria das vezes a realização marginal de homens muito valiosos, mas saturados de trabalho docente e administrativo. Pouco pode ser dito sobre a extensão social, na medida em que, salvo raros casos, apenas foi recebido um mínimo residual do potencial universitário. Essa atrofia da pesquisa e extensão social, e hipertrofia do ensino é um ponto de referência essencial para compreender que funções devem assumir uma organização de serviço aos estudantes universitários.


Em resumo, uma Universidade centro-americana tem a função de ser uma consciência crítica e criativa da realidade como comunidade especializada de um povo que é sua única razão de ser e a quem se deve inteiramente. Este ser e esta função da Universidade enquadram o que é e pode ser o corpo estudantil nas nossas Universidades e, portanto, que serviços e benefícios devem ser prestados.


3. O estudante em nossas universidades

Vou me referir, por razões óbvias, ao estudante que chega às nossas Universidades privadas na América Central. Pessoalmente, não acredito que exista uma diferença abismal entre este corpo discente e aquele que vem às universidades estaduais ou nacionais, pelo menos em certas características básicas, embora exista em certas características secundárias (e entendo a fundamentalidade ou secundariedade das características na medida em que são de maior ou menor relevância frente à população média que constitui nossos povos, que é a que em definitivo deve constituir o nosso quadro de referência de valor). No entanto, sejam quais forem essas semelhanças e diferenças, vou me referir apenas ao corpo discente das Universidades privadas, que é, evidentemente, o que nos interessa aqui. Vou focar em três aspectos: primeiro, o que realmente é; segundo, o que a instituição praticamente espera que seja; e, em terceiro lugar, o que na minha opinião deveria ser e, portanto, o que deveríamos tornar possível que seja.


3.1 O que é:


A primeira e mais marcante característica do nosso aluno é que eles pertencem a um estrato socioeconômico privilegiado. Isso não quer dizer que todos os nossos estudantes sejam economicamente "ricos". Há uma porcentagem de alunos, variável segundo cada Universidade, com escassos recursos econômicos, embora a grande maioria pertença ao estrato da classe média, média e alta, e não poucos aos abertamente superiores.


Um índice disso é oferecido pela distribuição por cotas diferenciadas para alunos reingressos na UCA em 1975:



Essas cotas são determinadas a partir de uma série de índices sobre a situação econômica real do estudante e, na medida em que seus resultados são confiáveis, parecem mostrar que na UCA chegam uma porcentagem de estudantes de um estrato social com poucos recursos econômicos.


No entanto, a verdade fundamental permanece afirmada: nossos alunos pertencem a um estrato socioeconômico privilegiado. O simples fato de chegarem à Universidade já indica que fazem parte daquela minúscula minoria que constitui a elite acadêmica de nossos países, ou seja, que pertencem àqueles 0,1 ou 0,2% que chegam à Universidade. Entretanto, fazer parte desse vértice implica ter passado com sucesso pelos muitos filtros seletivos que o nosso sistema escolar coloca ao longo da sua estrutura, filtros que, como mostram unanimemente todos os estudos realizados a este respeito, correspondem à estratificação socioeconómica. Nisto, como em tudo, as exceções só confirmam a regra, e servem apenas de material de racionalização ideológica de um sistema escolar classista. Por outro lado, ter alcançado o nível universitário implica um poder de tipo escolar (títulos acadêmicos bem como os mecanismos cognitivos de poder adquiridos) e um âmbito de realização cultural e até de sucesso mínimo, o que diferencia claramente o estudante universitário da grande maioria da população de nossos povos.


Por essa razão, devemos insistir que os estudantes universitários são privilegiados. Ainda mais quando, como é o caso das nossas Universidades, junto com o poder acadêmico e tudo o que ele implica, geralmente há também um poder econômico considerável. É muito significativo que a grande maioria dos nossos estudantes tenha como algo óbvio e evidente sua permanência na Universidade e, mesmo quando eles justificam com frases mais ou menos estereotipadas (“estamos nos preparando para ser os futuros líderes do nosso país”), nunca parece estar em crise a naturalidade desse seu estado de privilégio tão provocativo (por que razão eles deveriam ser os futuros líderes?). Mas há algo que deve nos preocupar: um estado de privilégio entre nós é, de fato, um estado de opressão. Você não é privilegiado, por acaso: você é privilegiado como resultado de estruturas sociais de injustiça institucionalizada, de dominação do homem pelo homem. Portanto, o privilégio é recebido, talvez não como resultado de uma injustiça pessoal, mas como resultado de uma injustiça social insuportável.


O privilégio de alguns (poucos) supõe a desapropriação ou alienação dos direitos que correspondem às necessidades básicas dos outros (a maioria).


Aceitar essa situação de “naturalmente" é aceitar a identificação pessoal com a opressão ou, no caso do corpo discente considerado globalmente, aceitar tornar-se um estrato opressor de fato, como preparação para um estado social de opressão mais aberto, que é o estrato profissional.


Uma maneira pela qual esse estado absurdo de privilégio é muitas vezes justificado é afirmando que todo privilégio implica um chamado para um serviço especial. Mas sejamos honestos: quem chama nossos alunos para esse serviço? Eles são chamados pelo povo? E caso seja esse o caso, ele é mesmo o mais indicado ou está seguindo o melhor caminho para assumir de forma clara aquele serviço? São perguntas que não podemos responder aqui, mas que devemos ter em mente se quisermos entender o papel que o estudante universitário deve desempenhar durante e após sua permanência na Universidade.


Essa situação de privilégio aceita naturalmente ou buscada como promoção individualista (o que geralmente é o caso de estudantes economicamente menos favorecidos) nos introduz à segunda característica de nossos estudantes: sua motivação como estudantes universitários, ou seja, as aspirações com que eles entram e geralmente progridem em nossas Universidades. Correndo o risco de generalizar um pouco pejorativamente, eu diria que a motivação comum do corpo estudantil é a obtenção de um diploma, que se identifica com a obtenção de um título profissional. Quando os alunos são questionados em determinados contextos, eles tendem a afirmar que essa carreira ou este diploma é “para servir o país”, mas isso nada mais é do que um slogan ou apêndice de uma conquista estritamente individual e individualista.


Essa motivação chega a produzir uma distorção fatal no que diz respeito à demanda do aluno pela Universidade e, portanto, ao exercício de sua função. O estudante exige uma instrumentalização da organização universitária para que o capacite profissionalmente, lhe dê uma boa carreira e lhe forneça todos os meios relevantes para fazê-la. E o que há de errado ou anormal nisso? - Você pode se perguntar. Onde está a distorção? Simplesmente que o objetivo primordial da Universidade deixa de ser um objetivo social popular para ser um objetivo classista-elitista; de ser um objetivo multidimensional para um objetivo exclusivamente acadêmico. A Universidade então encaminha-se quase exclusivamente para responder à demanda desta “elite” escolar, e para responder ao nível reivindicado. Com isso, a Universidade não pensa mais diretamente nas pessoas nem em suas necessidades, mas no estudante e em suas exigências. A distinção me parece fundamental: porque não podemos simplesmente identificar as necessidades populares com as necessidades do corpo estudantil. Pelo contrário, todas as análises históricas nos mostram a trágica falsidade dessa identificação, que tem convertido a Universidade em um dos mais poderosos pilares do sistema estabelecido. Vamos nos perguntar como surgiram as nossas Universidades e veremos como, desde o início, sofreram com esta distorção ideológica. Antecipando uma ideia que se insistirá posteriormente, devo dizer que seria uma péssima concepção do corpo universitário, para o estudante, que se conceba como uma simples resposta às suas demandas. Isso pode parecer paradoxal, mas, pensando com categorias da pedagogia social, não é.


Finalmente, podemos nos perguntar em que medida nosso corpo estudantil constitui uma classe social homogênea, ou seja, um grupo social que formaria algo como uma “subclasse” na estrutura hierárquica de nossos países. Já indicamos as características de poder socioeconômico e da motivação que, sem dúvida, constituem os mais poderosos agentes aglutinantes para formar e dar homogeneidade a um grupo: interesses e expectativas comuns. Agora, é aconselhável ter muito cuidado ao falar de homogeneidade em termos do corpo estudantil universitário, pois isso pode levar a cometer erros graves e a uma política errada em relação a eles. Há diferenças, às vezes grandes e geralmente importantes. Assim, por exemplo, há uma certa heterogeneidade no que diz respeito à origem social de não poucos membros, bem como no que diz respeito ao nível de poder cultural alcançado ao longo de seu progresso no sistema escolar. Por outro lado, geralmente também não são pequenas as diferenças entre as possibilidades sociais que abrem diferentes carreiras e os consequentes requisitos impostos ao estudante. Assim, há carreiras que na prática só podem aspirar quem tem ou consegue temporariamente uma situação de franco alívio económico (através de bolsas de estudos, empréstimos, etc.). Por outro lado, as diferentes formações intelectuais proporcionadas pelos cursos de graduação são um fator decisivo em termos de disponibilidade social ou indisponibilidade do estudante. Neste sentido, podemos falar de uma certa "castração" política que a maioria das carreiras técnicas como são oferecidas em nosso país. Não estou afirmando que essa seja a essência dessas carreiras ou que seja assim em todos os casos ou lugares. Aponto isso como uma realidade que me foi dada para observar com bastante constância. Da mesma forma que não se pode homogeneizar o estudante pertencente a diferentes carreiras, também não se pode homogeneizar os estudantes dos diversos cursos de uma mesma carreira. E isso talvez não tanto por seus conhecimentos, mas por seu maior ou menor potencial de acesso ao estrato profissional e, consequentemente, sua maior ou menor flexibilidade e disponibilidade para novos horizontes ou novos modos de vida. É fato que, em geral, são os estudantes do primeiro ano que estão mais disponíveis para todos os tipos de atividade extracurricular. Isso nos parece lógico e o atribuímos às crescentes exigências da carreira, bem como à marca deixada pela Universidade. Mas parece-me que, independentemente destas razões, a maior ou menor disponibilidade também está relacionada com a falta de autenticidade das preocupações "revolucionárias" da maioria de nossos estudantes, bem como com a integração gradual no sistema (como status garantido) que o progresso no curso de graduação vai garantindo e que constitui uma restrição progressiva da liberdade das pessoas. Em qualquer caso, não é possível homogeneizar os estudantes de diferentes cursos. De uma forma um tanto genérica, podemos dizer que enquanto os alunos dos primeiros anos são mais flexíveis e têm maior disponibilidade, os dos últimos anos são mais confiáveis em seus compromissos, embora seja mais difícil para eles quererem se comprometer com algo que não os beneficie muito diretamente (benefício individual, é claro).


Em vista da heterogeneidade e temporalidade do estudante, podemos falar de uma “subclasse social” estudantil? O pertencimento à Universidade constitui um "status" social peculiar, suficientemente distinto para falar de uma "subclasse estudantil"? É difícil dar uma resposta, entre outras coisas porque vai depender do que se entende por classe social e este não é o momento de entrar em maiores dissertações. Por enquanto, pode-se afirmar que o corpo estudantil de nossas Universidades constitui um grupo claramente identificado dentro da classe dominante. A peculiaridade dessa "sub-classe" ou grupo estudantil seria sua situação pré-profissional (provisoriamente temporária), seu poder cultural e econômico sem a correspondente responsabilidade social e, finalmente, sua disponibilidade de tempo livre. Esse status desperta nos demais membros da sociedade, ao menos nas classes sociais no poder, expectativas que moldam "papel" estereotipado do estudante, papel que costuma ser aceito de forma notavelmente acrítica.


3.2. O que se espera que seja


Quando o estudante ingressa na Universidade, eles se encontram com alguns moldes institucionais — uns explícitos, outros implícitos — que lhe indicam de forma bastante precisa o papel que se espera que ele assuma. Pode perguntar-se quem determina esses moldes, e uma resposta óbvia é: a própria Universidade. No entanto, é curioso observar o tipo de definição que costuma ser dada, de estudante, em leis, estatutos e regulamentos universitários: estudante é aquele que se matricula em alguma carreira ou curso; estudante é aquele que assiste às aulas; estudante é aquele que paga suas mensalidades em dia, etc. Aparentemente, para a lei, o que conta é o aspecto estritamente burocrático, que, independentemente da avaliação positiva ou negativa que se queira dar, ainda é um sintoma muito significativo, entre outras coisas pela força discriminatória que como estrutura tem a burocracia. Ao lado do aparato formal, há a demanda contínua de pessoal permanente na Universidade, principalmente do corpo docente, bem como do próprio corpo discente. Não penso que nenhuma dessas demandas informais discorde fundamentalmente dos requisitos formais. Pelo contrário, acredito que ambos se pressupõem e até se complementam, tudo como reflexo justamente da estrutura que os origina e lhes dá sentido. Vejamos três dessas expectativas e demandas, talvez as mais relevantes em nossas Universidades privadas.


Antes de tudo, espera-se que o aluno estude e se dedique à sua preparação profissional. Em outras palavras, espera-se que a função pré-profissional absorva primariamente seus esforços. "Você tem que se preparar bem para assumir a responsabilidade profissional amanhã." Uma intensa dedicação às exigências da Universidade é considerada a melhor preparação possível para o exercício posterior da habilidade profissional. Simultaneamente, espera-se que o estudo e a aquisição da técnica proporcionem (como? ; estudos sociais ou humanísticos?) um desejo de sentir à sociedade, embora isso continue sendo mais uma declaração formal de objetivos e estatutos, uma declaração que todos se sentem obrigados a repetir ponderadamente, mas na prática conta muito pouco ou nada; o que importa principalmente é o conhecimento e a habilidade técnica. Assim, espera-se que o estudante foque seu estudo no conhecimento das disciplinas técnicas da carreira escolhida, mas não se espera dele (e não seria de surpreender) que dedique muito tempo ao conhecimento do povo que ele "deve servir". De fato, esse conhecimento é considerado auxiliar ou dado como suposto – o que é uma suposição trágica e egoísta.


Como a Universidade é pensada em termos fundamentalmente educacionais, é óbvio que o aluno é considerado o objeto central do trabalho universitário e, de uma forma ou de outra, esse sentimento de prioridade é transmitido a ele. Com isso, o aluno sente que, junto com a exigência de que estude (seu dever), há sua importância para a Universidade, o que lhe confere um status de “prima donna”. Mais uma vez, é aqui que se incuba a distorção universitária que dá primazia ao indivíduo sobre o povo, às suas necessidades.


Em segundo lugar, espera-se que o corpo estudantil constitua um grupo relativamente homogêneo, e mecanismos ainda mais ou menos conscientes são aplicados para que assim seja. É curioso que essa expectativa seja algo, na maioria das vezes, não apenas não especificado, mas até mesmo contrário a certas afirmações teóricas. No entanto, a estruturação prática dos "currículos", a unificação de requisitos, a equiparação dos níveis e, sobretudo, a forma unívoca de ensino, avaliação e tratamento exigem do aluno uma forma "padrão" de comportamento, um misto de segura docilidade, passividade brilhante e simpática pseudo-colaboração. Acredito que o estudante de nossas Universidades particulares está adquirindo um certo estilo característico, ao menos superficial, mas suficiente para permitir que os poderes universitários eliminem todos aqueles elementos que, por vezes por motivos muito diferentes, marcam uma dissidência em relação à constante estudantil estabelecida. Em última análise, não são poucos os "acadêmicos" que pensam que a Universidade constitui um "troquei", e que a função "primária" do aluno é deixar-se "troquejar". Certas exigências dos estudantes e, sobretudo, certas exigências implícitas em suas preocupações e problemas, são abortadas e, às vezes, nem sequer se concretizam, simplesmente porque não há terreno fértil para elas.


Em terceiro lugar, espera-se que o estudante tenha uma participação dos assuntos universitários. Quando se fala em participação, geralmente se entende participação ativa, com poder não apenas de deliberação, mas também de decisão, por mais limitado que seja o nível em que se permita. No entanto, há muita ambiguidade a respeito das expectativas de participação. Desde Córdoba, a participação do estudante latino-americano nos assuntos universitários tem sido uma participação belicosa e politizadora, o que tem contribuído não pouco para o mito do estudante como revolucionário por essência. Agora, nas Universidades privadas se insiste persistentemente na eliminação de tudo o que possa cheirar a política, em oposição aberta e pretendida com as Universidades nacionais. “Nesta Universidade - diz-se, e até os próprios estudantes ainda dizem - você vem para estudar, não para fazer política.” Não vou entrar na tremenda falácia dessa afirmação e no cinismo na correspondente atitude. Na UCA, em particular, há uma contradição entre a consciência de alguns dos seus órgãos dirigentes sobre a missão política da Universidade e a exigência de uma cumplicidade apolítica que a maioria das estruturas acadêmicas e grande parte do corpo docente revelam. É verdade que, no fundo, existem duas concepções divergentes sobre o que é a política. Em qualquer caso, a verdade é que a política se torna tudo ou quase tudo o que não diz respeito ao estritamente acadêmico ou ao ensino. Assim, o aluno fica limitado a dar sua opinião de vez em quando sobre determinados professores, sobre determinadas formas de ensino ou sobre os conteúdos de determinados programas ou cursos. Fora isso, suas atividades serão puramente recreativas, assepticamente culturais e nada mais. No fundo, é isso que nossa estrutura universitária (talvez não as intenções nem as diretrizes teóricas) espera do aluno: que participe, sim, mas em determinadas áreas. Que participe, mas não inicie. Em suma, participe passivamente. Contradição? Não necessariamente, porque a participação se entende de um modo não conflituoso, mas sim conformista. Espera-se uma participação colaborativa, sempre em apoio às iniciativas mais ou menos oficiais das diretrizes emanadas de cima. Este tipo de participação poderia mesmo ser analisado de forma paradigmática no papel que o aluno desempenha nas várias aulas; veria-se então como essa participação se reduz, na maioria das vezes, a um trabalho de acompanhamento pseudo-ativo às iniciativas do professor da aula. Além disso, pode-se ver como qualquer iniciativa por parte do aluno que rompe com os esquemas pré-fabricados é, se não abertamente rejeitada, mais ou menos categoricamente descartada.

Naturalmente, em uma Universidade como a UCA, isso também pode ter seu significado histórico, na medida em que aceitar uma maior interferência do corpo discente nas diretrizes e no trabalho universitário pode implicar na aceitação pura e simples dos interesses sociais mais repressivos e opressivos. Afinal, o corpo discente tende, em primeira instância, a defender os interesses da classe a qual pertence. E essa classe - como já vimos - é a dominante. Essa consideração nos impede de cair na ingenuidade geracional ou no idealismo pseudo-revolucionário.


3.3 O que deveria ser


Nós temos caracterizado os estudantes das nossas Universidades privadas como um grupo social, econômico e culturalmente privilegiado, interessado como grupo pré-profissional em obter uma preparação e um reconhecimento institucional que lhes permita ascender ao estrato profissional, que exija mais ou menos dedicação exclusiva aos estudos e a assimilação de um conjunto de saberes e competências já estabelecidas na passiva aceitação dos caminhos pré-fabricados, e que serão finalmente recompensados ​​com o tão esperado acesso oficial ao estrato profissional.


É bem possível que essa caracterização do nosso corpo estudantil seja um tanto caricatural, embora eu não tema muito isso. Em todo o caso, devemos reconhecer que é na caricatura onde melhor pode-se apreciar os traços de uma realidade, um reconhecimento este doloroso na maioria das vezes. Diante dessa realidade e tendo em vista o objetivo final de uma Universidade centro-americana (estatal ou privada), penso que o corpo discente deve constituir a presença, a memória e a exigência constante das demandas do povo no campus universitário. Entenda bem: digo as demandas do povo, não as da classe social do aluno, já que estas últimas são de fato as que estão atualmente em vigor. Penso que o corpo discente pode desempenhar esse papel tão importante, desde que sejam atendidos dois requisitos essenciais: a democratização da universidade e a dinamização crítica do seu trabalho.


Por democratização da universidade entendo que, em primeiro lugar, deve-se haver o acesso à Universidade de um percentual, muito superior ao atual, de alunos pertencentes às classes econômicas mais fracas. No entanto, esta presença não é em si uma garantia de democratização, uma vez que a entrada destes indivíduos está normalmente condicionada à aceitação de um percurso individualista de promoção social, o que em nada altera o esquema elitista das nossas Universidades. Por isso, junto com a presença do aluno pobre nas salas de aula, deve haver a presença da Universidade nas áreas mais marginalizadas de nossos povos. Isso é fácil de dizer, mas difícil de colocar em prática. Mas enquanto os acadêmicos universitários não beberem da realidade da marginalização, enquanto não sentirem o estado de opressão popular em toda a sua desumanidade, nossos esquemas universitários serão condicionados por um critério classista e, dessa maneira, um critério de dominação opressiva. Em outras palavras, eles continuarão fortalecendo o crescimento dos ricos e o esmagamento dos pobres. Como pensar que a Universidade será um instrumento do povo, se existe uma desconexão radical entre o povo e a Universidade, se a comunidade (majoritariamente oprimida) não encontra acesso ou contato de qualquer tipo com a Universidade, se nem reconhecer nela algo seu, mas sim a obra do opressor, a alienação da seu trabalho?


O “de” condiciona sempre o “para”: a partir de onde e de quem a Universidade trabalha condiciona inevitavelmente o seu para quê e para quem. Se a Universidade só trabalha a partir do dominador (sua cultura, seus saberes, seus problemas, sua percepção, seus conflitos...) ela só terá respostas para ele, ou seja, seu “que fazer” estará focado na solução das necessidades e problemas do dominador e, pela mesma razão, negará e até agravará as necessidades e os problemas dos dominados. Daí a urgência da democratização da Universidade.


Democratizar a Universidade é evidentemente muito mais do que criar um generoso sistema de bolsas de estudo ou um ambicioso plano de cotas diferenciadas que permitam que alunos economicamente vulneráveis entrem em seus cursos (embora isso seja necessário); democratizar a Universidade significa colocá-la a serviço integral do povo, fazendo-a vibrar com suas necessidades e problemas, identificá-la com suas lutas, fracassos e sofrimentos, colocá-la a sonhar e trabalhar na resolução de sua marginalização histórica e na transformação de suas seus esquemas sociais. Tudo isso implica o abandono de todo tipo de relação vertical e dominadora por um tipo de relação dialógica e por um trabalho cooperativo realmente ativo.


Em um clima progressivamente democrático, o corpo estudantil pode constituir o estado dialeticamente dinâmico da estrutura e do trabalho universitário. Para isso, as fontes e os mecanismos de crítica, que questionam e são questionados, devem ser abertos e facilitados. É preciso que o clima universitário seja um clima radical, porém exigentemente crítico, e que o estudante entre neste âmbito para traduzir em um questionamento científico a realidade de toda a inquietação e mal estar que ele é portador, como produto de nossa sociedade atual. É incrível como, em muitas universidades, qualquer tentativa de crítica é barrada sob o pretexto de inexperiência, ignorância ou questões formais. Essa é uma das maneiras de cultivar a docilidade conformista. No entanto, é também uma das maneiras pelas quais os estudantes são impedidos de trazer um sopro de transformação para os esquemas universitários, como elemento de renovada negação dialética, sempre necessária se quisermos evitar a estagnação.


Onde há um ambiente democrático e abertamente crítico, o corpo discente pode desempenhar um papel fundamental, pode constituir-se na voz ingênua do povo, desmascarando os compromissos do estável estado da Universidade, exigindo sua contínua renovação à serviço do povo, bem como a dedicação do melhor de seus esforços para dar resposta aos seus problemas históricos. Em outras palavras, onde se propicia esse ambiente universitário com horizonte crítico, o corpo estudantil pode se tornar o despertador da consciência a serviço da causa histórica de um povo. Na minha opinião, uma organização a serviço dos alunos tem a função de fomentar este ambiente que permita e encoraje o estudante a prática de seu possível papel dinamizador.


O Auxílio Estudantil*


Para simplificar, usarei o termo “Auxílio Estudantil” como o órgão que concentra os serviços de assistência e orientação ao estudante de quem estamos falando, órgão que costuma receber diversas denominações: Assistência Estudantil, Assuntos Estudantis, etc. Isso não quer dizer que este órgão não possa ser dividido em várias dependências e inclusive que suas diversas funções não possam ser assumidas por órgãos distintos. Não toco aqui no problema da organização específica, pois acredito que depende de variáveis ​​muito peculiares a cada Universidade. Seria possível, sim, o questionamento sobre a necessidade de tal órgão em nível institucional. A sua própria existência já não constituiria uma contradição com as ideias aqui expressas? Acreditamos que não, precisamente na medida em que se valoriza, por um lado, a origem social do corpo discente e o seu possível papel, por outro, a realidade de fato da Universidade frente à sua intencionalidade social. Nessa tensão dialética entre o ser e o dever, tanto do estudante quanto da Universidade, surge o sentido histórico daquelas subestruturas que, como o auxílio estudantil, perseguem a missão de potencializar e possibilitar esse salto qualitativo. Daí decorre o que, por sua vez, o auxílio não pode e não deve ser e o que pode e deve tentar ser.


Quando é considerada como órgão substitutivo, pretende-se que lhe seja atribuída uma tarefa de formação complementar para tudo aquilo que a estrutura universitária, no seu trabalho fundamental, ignora. Assim, por exemplo, pretende-se que o auxílio aos estudantes proporcione ao aluno aquele conhecimento e contato com a realidade que foi eliminado do trabalho estritamente acadêmico. Em si mesma, essa concepção não estaria tão longe do objetivo se não fosse o fato de que, ao delegar uma função tão primordial a um corpo secundário na vida universitária, o objetivo da função é desvalorizado e a consciência universitária é tranquilizada com a convicção de que já está dada a resposta adequada à necessidade. Com isso, a vida acadêmica permanece intacta em sua pretensa assepsia e pureza, o que, em última análise, não significa assepsia ou pureza, mas sim o ignorar das necessidades populares e servilismo aos poderes estabelecidos e suas demandas. Quando o auxílio aos estudantes é concebido como órgão substitutivo ou se torna uma espécie de boa mãe, que acalma a consciência, promove o desenvolvimento marginal e permite que a vida central da Universidade percorra outros canais, ou é deixado a cargo de uma série de funções sem importância, que não têm incidência com o trabalho universitário.


Uma segunda concepção, também inaceitável, é a que considera o auxílio estudantil como uma fonte de serviços, da qual o aluno tem o direito de exigir cada vez mais atenção e conforto. Ele é, portanto, considerado um pai vigilante que atende a todas as demandas de seus filhos. Essa concepção, muito difundida nas universidades norte-americanas, pretende facilitar todos os aspectos do trabalho do aluno. Agora, entre nós, esta concepção implica a dedicação de não pouca energia, recursos e esforços para aumentar as vantagens e benefícios do estudante universitário; em outras palavras, há um aumento perceptível em seu estado de privilégio. Não é que em princípio não seja bom que o estudante universitário possa desfrutar de certos confortos; o que não está certo é que a Universidade use suas energias para supri-los, ampliando ainda mais o abismo que separa a Universidade do restante da população.


Uma terceira concepção, a mais perigosa, atribui ao auxílio estudantil uma função de controle mais ou menos oculta, sob o pretexto de dirigir, organizar e orientar os estudantes. Essa concepção me parece tão constrangedora que não merece mais atenção aqui, embora eu entenda que ela ocorra assim em alguma universidade particular.

Deixando de lado essa terceira concepção, pode-se dizer que temos que tirar algo das outras duas: da primeira, não tanto o aspecto substitutivo quanto o aspecto promotor de respeito à estrutura universitária; do segundo, a prestação discriminada de serviços, não com base num simples bem-estar estudantil, mas com base na tarefa que a Universidade deve cumprir e, portanto, no papel que cabe ao corpo discente no que diz respeito a essa tarefa.


O auxílio estudantil pode ser definido como um órgão universitário encarregado da promoção da comunidade. Entendo aqui por comunidade universitária a integração em função de alguns objetivos dos três níveis que compõem a Universidade: acadêmicos, estudantes e administradores. Promover essa comunidade significa adequar cada vez mais essa integração interpessoal à realização da tarefa universitária e, portanto, tornar a comunidade universitária um instrumento cada vez mais flexível e dócil de e para o povo. Em outras palavras, trata-se que a comunidade universitária seja cada vez mais autenticamente consciente dos problemas do povo, uma voz de suas preocupações e esperanças, um instrumento eficaz de seu futuro. Isto significa que o auxílio estudantil tem uma tarefa que não é simplesmente interna, no que diz respeito à própria comunidade universitária, mas também externa, na medida em que tem de se esforçar para que a comunidade interna se adapte cada vez mais a comunidade externa, que é sua razão de ser. Nesse sentido, o auxílio estudantil deve garantir que a Universidade tenha tudo o que é necessário para que a comunidade universitária exista e seja verdadeiramente uma comunidade da comunidade popular, e não uma comunidade da classe dominante.


Pode-se perguntar por que especificamente (embora não exclusivamente) atribuímos essa tarefa tão importante a um órgão cuja energia deve vir principalmente dos estudantes, e não a um órgão do estabelecimento mais estável, isto é, os acadêmicos. A resposta está precisamente nessa estabilidade; o acadêmico corre o risco de se aborrecer com o que está estabelecido, e o que se busca é um deslocamento contínuo. O estudante, sempre jovem e sempre novo, com toda a pulsante atualidade do mundo feito carne, ainda não fez uma profunda concordância com o sistema. É lógico que o acadêmico se preocupa com sua segurança, e tende a se afirmar no passado; o aluno, por outro lado, não tem nada em seu passado a perder, pois está aberto à promessa do futuro. A sua estrutura vital lhe permite desligar-se de alguns interesses, já ultrapassados, e por isso costuma estar disponível para exigir mudanças radicais. Nesse sentido, o estudante constitui o estado mais potencialmente dinâmico da vida universitária, potencialidade que não pode ser ignorada ou desaproveitada.


Assim, o auxílio estudantil deve ser um gerador dinâmico da comunidade universitária. Esta finalidade ambiciosa pode ser desdobrada em objetivos gerais e objetivos específicos, através dos quais devem ser programados para sua realização histórica e que, portanto, só fazem sentido na medida em que explicitam em cada situação e circunstância concreta o objetivo perseguido.


A. Objetivos Gerais

Há dois grandes objetivos que o auxílio estudantil deve perseguir; um de tipo cognitivo e outro de tipo ativo (como complementaridade de reflexão e ação). Por um lado, possibilitar que os alunos tomem consciência da sua condição como alunos, com tudo o que isso implica. Por outro lado, a implementação de novas formas de convivência e integração social, que não reproduzem os padrões de relacionamento dominantes (nem mesmo sob a bandeira do trabalho pedagógico). Expliquemos, brevemente, esses dois objetivos e suas consequências.

Em primeiro lugar, possibilitar a conscientização do estudante sobre sua condição de estudante. Ele deve tomar consciência de que sua situação não é apenas de privilégio em relação à grande maioria do povo, mas que esse privilégio implica um estado de aberta injustiça e opressão e, portanto, que seu lugar no topo do ensino foi possibilitado pela anulação cultural e econômica de outros. O estudante tem que sentir toda a tragédia do povo através da acuidade de uma má consciência. É inadmissível, que um estudante universitário possa ter uma boa consciência entre nós, de forma que isto só seja possível por meio de uma série de mecanismos seletivos de descaso sobre o que significa ser um estudante universitário em um povo oprimido.


Mas a consciência do estudante não pode terminar com a experiência de desconforto diante da estrutura injusta que se faz possível. Isso não levaria a nada por si só. A consciência do estudante também exige a captura da transitoriedade do estado em que se encontra em relação à posição profissional.


A transitoriedade pode significar uma espécie de espera em relação a posição profissional, que é algo como um prelúdio ao direito de oprimir, ou pode significar a possibilidade temporária de buscar novas estruturas para um exercício que não é nem opressor nem dominante na profissão. Nesse sentido, varia muito conceber a Universidade como instrumento para cumprir as exigências da carreira que se segue, ou como instrumento para buscar a libertação histórica de um povo por meio de uma tarefa científica e técnica. A consciência desse dilema não deve ser pressuposta, se não quisermos ignorar as lições da história.


Adquirir essa consciência da situação e do papel do estudante requer uma consciência crítica, o que de fato constitui a politização do estudante como um grupo "anticlasse". Entendo aqui por politização a captura do sentido total das realidades históricas dentro do contexto geral do próprio povo. Esta captação torna possível uma compreensão do que é e não é a própria profissão, do papel desempenhado pelo profissional no futuro da nação e até mesmo a percepção de um novo horizonte de tarefas para o futuro, em vista de uma transformação radical da sociedade. Um dos problemas mais graves das universidades é a compartimentação do conhecimento, a estreiteza e miopia da visão do aluno para a área de sua especialidade, o que acaba limitando seu panorama de preocupações e possibilidades. Politizar significa descompartimentalizar, e isso não apenas em relação às diversas áreas do conhecimento, mas sobretudo em relação às diversas áreas da realidade. Um estudante consciente é aquele que une ciência e consciência do contexto em que se move e, portanto, sabe que em determinada situação histórica os condicionamentos tendem a fugir do domínio da “ciência pura”.


A concretização deste objetivo geral de conscientização exigirá que o auxílio estudantil implemente uma série de atividades de informação, um apurado exercício de crítica num confronto do estudante com as mais diversas realidades do seu país, de múltiplos seminários, bem como várias atividades de campo com a respetiva avaliação e reflexão, aplicando as conclusões a que fazer académico (o que poderá criar alguns conflitos).


O segundo grande objetivo de um auxílio estudantil consiste na busca e implementação de novas formas de convivência e interação. Essas formas devem evitar e contrariar positivamente os padrões usuais de dominação, cultivando os esquemas de trabalho e diálogo interpessoal. Como fora indicado antes, este objetivo exigirá a democratização da população e do trabalho universitário, para que se volte exclusivamente para as necessidades do povo como voz e instrumento de suas esperanças mais autênticas. Exigirá também a participação crítica do estudante em todos os níveis da vida universitária, uma participação proporcional, mas real. Que o aluno possa participar criticamente em todos os níveis da vida universitária significa que sua influência é institucionalmente aceita. Por outro lado, deve-se abrir um amplo campo para a realização e ação daquelas organizações nas quais o estudante deve constituir a estrutura básica, como os vários tipos de associações estudantis.


A realização deste segundo objetivo geral está intimamente ligada ao anterior, requer que a categoria de auxílio estudantil estabeleça todos os mecanismos, normativos ou instrumentais, que permitam o exercício real destas novas formas de atividade e de trabalho, tanto no interior do campus universitário, bem como na própria comunidade nacional. Nesse sentido, as atividades estudantis de cunho cultural e recreativo, além de constituírem experiências e vivências valiosas em si mesmas (como realização do próprio aluno), devem constituir um contato e até mesmo um serviço para a comunidade popular. Este objetivo exigirá, pois, um leque muito variado de serviços, desde o aconselhamento vocacional à formação de equipes desportivas, passando pela ajuda financeira ou pela programação coordenada de serviços sociais em benefício de uma população.


B. Objetivos específicos

Quero insistir que os objetivos específicos não têm sentido senão como uma programação dos dois grandes objetivos gerais em uma circunstância histórica específica e com possibilidades bem concretas. Se os objetivos específicos não tendem a cumprir os objetivos gerais como resultado da promoção comunitária, eles não apenas não têm sentido, como também caem em uma das formas errôneas de serviço mencionadas acima.

Os objetivos específicos podem ser agrupados em três grandes áreas: educacional, econômica e recreativa.


A educação é de longe a mais ampla e importante. Ela abrange todos os aspectos da orientação estudantil, desde a orientação vocacional e profissional (que deve ser uma constante ao longo de todo o curso de graduação, e não apenas um mecanismo seletivo oferecido no ingresso à Universidade), até qualquer outro tipo de aconselhamento, terapêutico, acadêmico ou religioso. Abrange, sobretudo, as mais diversas atividades de formação extracurricular: seminários, simpósios, conferências, trabalho de campo, etc. Por fim, engloba a promoção de vários tipos de organizações estudantis, mais como área de possibilidades do que como imposição dominante.


A área econômica persegue a democratização da população universitária, através de vários tipos de assistência: bolsas, subsídios, cooperativas estudantis... e a facilitação de outros serviços essenciais (num contexto de diferenciação econômica) como assistência médica, de livros, etc.


Por fim, a área recreativa visa a promoção e coordenação de todas as atividades artísticas e desportivas, podendo esta lista ser multiplicada. Não creio que isto seja o essencial. O essencial é entender que todas essas atividades e organizações podem servir tanto à libertação de nosso povo quanto à sua alienação. Tudo dependerá de se conseguir com eles uma progressiva democratização e conscientização que permita à comunidade universitária formar uma nova comunidade de trabalho a serviço do povo, ou simplesmente está ajudando a classe dominante a renovar suas formas de opressão e anestesiar sua consciência com atividades de pseudo-liberação.


A conclusão a ser tirada a partir disto é que é mais fácil de afirmar do que de por em prática. Trata-se de encontrar um estilo que, sem incorrer em paternalismo, reúna, ative e estimule os setores estudantis potencialmente mais capazes de um trabalho universitário diferente (não meramente “bancário”, no sentido freireano). Isso requer planejamento cuidadoso e racionalização de recursos; mas exige, sobretudo, a realização de uma série de atividades suficientemente motivadoras para captar o interesse do corpo discente, e significativas o suficiente para transformar sua percepção, sua perspectiva e seu trabalho universitário. Um desafio e tanto.**


Ignacio Martín-Baró (1975)



NOTAS:

*Nessa tradução usa-se o termo “Auxílio Estudantil” como tradução aproximada para a realidade brasileira do termo “Decanato de Estudiantes”. Sabe-se dos limites dessa aproximação, entretanto pareceu-nos o termo mais apropriado para habitar a lógica dos argumentos apresentados.

**Esse texto é uma tradução própria da obra original de Ignacio Martín-Baró.











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