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"Karl Marx e a China"


Já no Manifesto do Partido Comunista, a significância do mercado chinês e do das Índias Orientais fora apontado como um fator que levou ao desenvolvimento do capitalismo europeu. De fato, foi a partir do leste indiano que o capitalismo britânico impulsionou sua ofensiva contra a China. A Companhia Britânica das Índias Orientais usou de seu monopólio no comércio com a China para tornar esta, um mercado para a venda do ópio indiano. Como, no entanto, todos comerciantes ingleses estavam igualmente interessados na intoxicação do povo chinês, este monopólio deixou de existir a partir de 1833. A tentativa do governo chinês em 1839, de proibir a importação de ópio, gerou a guerra que se convencionou a ser chamada de Guerra do Ópio contra a China, esta que Marx caracteriza em O Capital como um dos principais elos na longa série de guerras de mercado, sob as quais desde o século XVI, até no Oriente, as nações europeias se engajaram. Após os ingleses cruelmente destruírem toda uma gama de cidades chinesas e escravizarem milhares de chineses em nome do cristianismo e da civilização, eles forçaram a China a assinar o Tratado de Nanquim em 1842, que previa a abertura de cinco portos - Kanton, Amoy, Ningpo, Xangai e Foochow, e o pagamento do que na época era uma enorme indenização, além da entrega da ilha de Hong Kong, que formaria a principal base do Imperialismo Britânico no Extremo Oriente. Após o Tratado de Nan­quim, vieram outros tratados com os Estados Unidos e com a França.

A derrota na guerra com os europeus foi um golpe duro ao prestígio da dinastia Manchu, que havia sido suprema na China desde o século XVII. Entre as massas camponesas, esmagadas pelo peso das taxas e da pressão da burocracia, que reagiam esporadicamente com revoltas em alguns momentos contra sua submissão, começava a amadurecer um embrião de insatisfação que era particularmente forte na região sudeste, onde a influência destrutiva do capital estrangeiro mais pesou. A este foco subversivo, outro se somou, o da “intelligentsia” chinesa daquela época, professores e funcionários mais baixos, bem como entre os artesãos arruinados pela competição estrangeira.

Ao mesmo tempo em que na Europa Ocidental as ondas geradas pela Revolução de 1848 chegavam a seu auge, a atividade de sociedades secre­tas na China também se fortalecia e a propaganda de novas seitas religiosas surgia entre os camponeses. Os missionários europeus, contra sua vontade, cum­pri­ram o papel de galinhas com uma ninhada de patos filhotes. Eles ob­servaram, com pavor, que a pregação do cristianismo por eles havia criado raízes entre os camponeses rebeldes sob a única forma militante do cristi­a­nismo, que reivindicava a igualdade no mundo. A Europa aprendeu com isso, pela primeira vez, por meio do famigerado missionário alemão e sinólogo, Gutzlaff, que também fez a primeira tradução chinesa da Bíblia.

Na mesma revista internacional (em janeiro de 1850) na qual Marx pesquisou sobre a influência da descoberta das minas de ouro da Califórnia no desenvolvimento do mercado mundial, e onde profetizou que o Pacífico teria o mesmo papel que o Mediterrâneo havia tido no mundo antigo, e que à época havia se transferido ao Atlântico, Marx também fez referência a in­teressantes escritos de Gutzlaff. Ele escreveu:

O lento, mas regular, crescimento da superpopulação do país há tempos atrás gerou relações sociais muito opressivas para a grande maioria da nação. Então veio a Inglaterra que a obrigou a adotar o livre comércio na nação, com eles mes­mos, nos cinco portos. Milhares de navios britânicos e ame­ri­canos partiram em direção à China e, em um curto perí­odo de tempo, o país recebeu em excesso produtos manufa­turados baratos da Inglaterra e Estados Unidos. A indústria chinesa baseada em trabalho manual estava submetida à competição com máquinas. O até então inabalável Império Central evidenciou uma crise social. Os impostos deixaram de ser pagos, o Estado ficou à beira da falência, a população afundou no pauperismo, eclodiam revoltas, espancaram e assassinaram os mandarins do Imperador e os sacerdotes do Fu Xi. O país estava à beira da ruína e já estava ameaçado com uma poderosa revolução. E ficou ainda pior. Dentre as massas e na insurreição, apareceram pessoas que apontaram a questão da pobreza de um lado e os ricos de outro, e que reivindicavam, e ainda reivindicam, uma divisão diferente da propriedade e até mesmo exigem a total abolição da propri­edade privada. Quando o Sr. Gutzlaff, após vinte anos de au­sência, retornou para a Europa, ele ouviu falar em socia­lismo, e perguntou o que era. Ao explicarem, ele gritou cons­ternado: ‘Será que eu nunca vou escapar dessa doutrina perniciosa? A mesma coisa foi pregada, durante um tempo, por muitas pessoas entre as massas na China’.

O Socialismo Chinês – Marx prossegue – possui a mesma relação com o socialismo europeu que a filosofia Chinesa possui com a filosofia hegeliana. Trata-se, de qualquer for­ma, de um fato intrigante que o mais antigo e inabalável Im­pério, a partir dos canhões da burguesia inglesa, foi trazido para as vésperas de uma revolução social que certamente terá os mais importantes resultados para a civilização. Quan­do os reacionários europeus retornarem à Ásia e finalmente se depararem com a Grande Muralha da China, quem sabe não encontrarão nos muros que levam para o lar da antiga reação e conservadorismo, a inscrição ‘República Chinesa - Liberdade, Igualdade e Fraternidade’.

O movimento sobre qual o bom missionário Gutzlaff, apóstolo da China, como os alemães assim o chamavam, informou aos europeus foi o precursor da grande rebelião de Taiping. O líder deste movimento, Hung, tornou-se familiarizado com o cristianismo através das traduções do velho e do novo Testamento, feitas por Gutzlaff. Já em 1851, se tornara o líder dos camponeses revoltosos. Os revoltosos de Taiping tomavam uma cidade após a outra. Finalmente, em março de 1853, até Nanquim estava tomada, que por muito tempo permaneceu como a capital do Império Celestial fundado por Hung. Até este momento, parecia que os Taiping, dentro de alguns meses, também se apoderariam de Pequim. Nanquim, porém, foi o auge da rebelião.

Foi nessa época em que Marx escreveu o artigo para o New York Tri­bune, em 14 de junho de 1853. Naquele tempo, a reação havia triunfado na Europa. A Liga dos Comunistas estava se dissolvendo, a revolta do Milão (de fevereiro de 1853) que fora organizada por Mazzini e seus seguidores acabou sendo derrotada. Marx recebera tais notícias como sintomas de uma crise revolucionária que se aproximava. Com ainda maior fervor, no entanto, ele saudou a inauguração do movimento revolucionário no Extremo Oriente. O contraste entre a Europa petrificada e a movimentação na China, onde o mo­vi­mento por tanto tempo havia sido ausente, o impressionava. A Europa ci­vilizada, onde tronos e altares haviam sido invadidos, agora havia sido con­frontada com uma grande girada de mesa [1]. Marx, mais tarde, escreveu em O Capital, “devemos nos lembrar – se referindo a estes eventos – que a China e as mesas começaram a se revirar quando todo o resto mundo parecia estar tranquilo pour encourager les autres”.

O Estado então fundado por Hung ou Tjan-Wang possuía um cará­ter puramente teocrático. Após os revoltosos de Taiping e seus líderes renun­cia­rem a qualquer esperança de conquistarem o norte da China, eles procura­ram se assegurar o sudeste, usando do antagonismo entre os Manchu e os ingleses, para atingir tal fim. Quando em 1856, irrompeu uma nova guerra da China com a Inglaterra e, posteriormente, também com participação da Fran­ça, os revoltosos de Taiping permitiram-se ficar em situação a reboque do Im­perialismo Britânico. Enquanto eles deviam suas primeiras vitórias às circuns­tân­cias com as quais haviam se revoltado contra tal dominação estran­geira, contra os Manchu, agora – a fim de salvar seu Estado teocrático – se aliavam com os mesmos estrangeiros, ainda mais vingativos e traiçoeiros. Portanto, o movimento Taiping, que nascera como algo revolucionário, agora se tornara um movimento reacionário, que havia perdido toda a simpatia das massas camponesas. Depois dos ingleses, agora em aliança com os Taiping, subjuga­rem o norte da China, ajudaram Pequim a tingir com cor de sangue a insurrei­ção de Taiping.

Marx acompanhou atentamente a evolução desses acontecimentos na China e não apenas condenou, em uma gama de artigos no New York Tribune, durante o período entre 1857 e 1859, todos os crimes dos ditos “ma­rinheiros civilizados”, mas também desenvolveu uma nova análise sobre as estatísticas do comércio anglo-chinês.

Embora Marx, no artigo mencionado, comece com o fato da rápida destruição do “modo de produção asiático” sob a influência da penetração do capitalismo inglês, e ainda que ele esperasse que a iminente revolução na Europa iria encontrar o apoio necessário no Oriente, no entanto, chegou à conclusão que em um primeiro momento, havia superestimado a abrangência e o andamento da influência destrutiva do capitalismo britânico.

A verdadeira tarefa da sociedade burguesa – escrevia Marx em 1958 em uma carta para Engels – é a criação, ao menos de maneira embrionária, de um mercado mundial e de uma forma de produção sobre essa base. Desde que o mundo é mundo, essa tarefa aparenta ter sido concluída com a co­loni­zação da Califórnia e da Austrália e a anexação da China e do Japão. A pergunta difícil para nós é a seguinte: a re­volução é iminente no continente e irá assumir de uma vez um caráter socialista. Mas irá necessariamente acontecer nesse pequeno canto, tendo em vista que o movimento da sociedade burguesa agora está em ascensão em um terri­tório muito maior? À medida em que a China entra nesse debate, especificamente, eu mesmo fui buscar por uma análise detalhada do movimento comercial a partir de 1836. Primeiro, constata-se que a subida das exportações inglesas e americanas em 1844-46, revelou-se em 1847 como pura ilusão, e também que nos 10 anos seguintes a média conti­nuou praticamente estacionária enquanto as exportações chi­ne­sas para a Inglaterra e para a América cresceram enor­memente, e segundo, que a abertura dos cinco portos e a ocupação de Hong Kong resultaram apenas no comércio de Canton, passando para Xangai. Os outros "empórios" não contam. A causa principal do fracasso desse mercado parece ser o comércio de ópio, ao qual, de fato, todo o cres­cimento nas exportações para a China é limitado; e, além disso, a organização interna do país, sua agricultura, etc., que custará um tempo enorme para ser rompida”. (Corres­pon­dence of Marx and Engels, vol. 2, p. 292-293.)

Quando Marx, já em 1862, voltou a escrever em jornais sobre o mo­vi­mento dos Taiping, já demonstrava uma postura mais crítica. Como já mencionado, esse movimento estava em fase de dissolução completa.

Marx afirmava:

“Um pouco antes das mesas começarem a girar, a China, este fóssil vivo, começou a se tornar revolucionária. Em si, não havia nada de extraordinário neste fenômeno, já que os Impérios Orientais apresentam uma imutabilidade na infra­es­trutura social com permutações inquietas de pessoas e etnias que se apossaram da superestrutura política. Na Chi­na, comanda uma dinastia estrangeira. Após trezentos anos, porque não deveria surgir um movimento pela derrubada desta dinastia? Estas movimentações tiveram desde o início uma complexidade religiosa, mas eis um aspecto comum a todos os movimentos orientais. As razões imediatas para o surgimento do movimento eram óbvias – intervenção eu­ro­peia, guerras do ópio, derrubada do governo existente, o fluxo de saída de prata do país para o exterior, distorção do equilíbrio econômico através da introdução de fábricas es­tran­geiras, etc. O que pareceu para mim um paradoxo era que o ópio animava ao invés de entorpecer. Na verdade, a única parte original desta revolução eram seus líderes. Eles tinham consciência de suas tarefas, independentemente da mudança de dinastia. Não têm bandeiras. Representam uma tormenta ainda maior para as massas do que para os antigos governantes. Suas motivações aparentam ser nada mais do que colocar em cheque o marasmo conservador usando de formas repulsivas de destruição, sem qualquer germe com potencial de regeneração”.

Sob muitos aspectos, de fato, a insurreição de Taiping lembrava as guer­ras camponesas na Europa, ao menos na medida em que o proletariado urbano era igualmente inexistente.

Em relação à Índia, também, da mesma forma que o fez em relação à China, Marx foi obrigado a chegar à conclusão de que tal ritmo do desen­volvimento, medido em termos da história mundial, ocorreu em um ritmo muito mais lento do ponto de vista individual do que poderia ter sido anteci­pado. No terceiro volume de O Capital, escreveu:

Os obstáculos que opõem a solidez e a estruturação interna de modos de produção pré-capitalistas nacionais à corrosiva influência do comércio se demonstra impressionantemente no comércio dos ingleses com a Índia e com a China. A am­pla base do modo de produção é formada pela unidade da pequena agricultura e da indústria, a qual na Índia se acrescenta a forma das comunas apoiadas na propriedade comum da terra que, por sinal, aconteceu maneira similar, a forma primitiva na China. Na Índia, os ingleses criaram seu poder econômico e político, simultaneamente, direto como governantes e latifundiários, com a objetivo de desmantelar pequenas organizações econômicas. O comércio britânico exerceu uma influência revolucionária nestes modos de pro­dução, apenas na medida em que, por causa do baixo preço de suas mercadorias, aniquilavam as atividades de fi­ação e tecelagem, que constituíam uma parte integral e ar­caica destas unidades de produção. E mesmo aí, apenas conseguiram realizar isto de forma gradual. Se dá de forma ainda mais lenta na China, onde isso não fora sustentado por qualquer poder político direto por parte dos Ingleses. (O Capital, Vol. 3, ‘Considerações sobre o Capital comercial’)

O poder de resistência do “modo de produção asiático” provou ser tão forte que várias décadas se passaram antes que o capitalismo europeu con­seguir abalar esta “muralha da China”. Para auxiliar o fator econômico, os baixos preços dos bens manufaturados, veio o fator político, uma nova série de guerras travadas, das quais o recém-nascido imperialismo japonês não de­sempe­nhou um papel desimportante. A união indissolúvel da agricultura e da indústria, a chave para a imutabilidade do “modo de produção asiático”, fora despedaçada. O campesinato chinês, se dispersou das grandes massas de “co­o­lies”, e caiu cada vez mais na sua dissolução. A emigração, que por um tempo havia atuado como uma válvula de segurança, se provou ineficaz na luta con­tra o “estigma do proletariado”.

Atraídos pela força de trabalho consideravelmente barata na China, os capitalistas japoneses e britânicos começaram a desenvolver uma grande indústria “nacional”. Com efeito, se produziu um proletariado industrial or­ganizado e disciplinado, que agora se preparava para assumiu a liderança de toda a população explorada, tanto rural como urbana.

A história deu uma resposta positiva à pergunta que Marx formulou sessenta anos atrás. Nenhum perigo ameaçou a revolução, do Oriente à Eu­ropa. Ali, também, o capitalismo encontrou aqueles que irão cavar sua tumba. E mesmo se a antiga Europa ainda aparenta estar em um período de esta­bilidade, a China “imóvel”, do outro lado, seguindo o exemplo da Rússia Sovi­ética, já está dançando a Carmagnole revolucionária – Ça ira, Ça ira!

Escrito por David Riazanov

Nota

[1] “Girada de mesa” é uma metáfora criada por Marx, se referindo às mesas que giravam nas sessões espíritas. Na metáfora colocada, Marx se referia ao fato de os europeus estavam apenas girando mesas ao passo em que a China estaria girando a roda da história.

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