Leontiev: "Atividade e Consciência"

Ao examinar este problema, o primeiro ponto que devemos considerar é a questão da significância da categoria atividade em qualquer interpretação de como a consciência humana é determinada. Existem duas abordagens para esta grande questão. Uma delas postula a dependência direta dos fenômenos da consciência nas várias influências exercidas sobre os sistemas receptores do homem. Esta abordagem foi expressa com clássica clareza na psicofísica e fisiologia dos órgãos sensoriais do século XIX. A principal tarefa da pesquisa naqueles dias era estabelecer a dependência quantitativa de sensações, independente dos elementos da consciência, nos parâmetros físicos dos estímulos afetando os órgãos sensoriais. Estas pesquisas eram então baseadas no padrão “estímulo-resposta”. As limitações desta abordagem residem no fato de que assume, de um lado, coisas e objetos, e, do outro lado, um sujeito passivo influenciado por eles. Em outras palavras, esta abordagem ignora o elemento significante das verdadeiras relações do sujeito com o mundo objetivo; ignora sua atividade. Tal abstração é, naturalmente, admissível, mas somente dentro de limites de um experimento com a intenção de descobrir certas propriedades de certos processos mentais. O momento que alguém vai além desses limites estreitos, entretanto, percebe a inadequação desta abordagem, e foi isso que compeliu os primeiros psicólogos a explicar os fatos psicológicos com base em forças especiais, tais como as da apercepção ativa, intenção ou vontade interior etc., isso quer dizer, apelar para a natureza ativa do sujeito, mas somente em uma forma mistificada, interpretada idealisticamente. Existiram muitas tentativas de superar as dificuldades teóricas criadas pelo postulado de imediaticidade subjacente à abordagem que acabamos de mencionar. Por exemplo, é enfatizado que os efeitos das influências externas são determinados não imediatamente pelas próprias influências, mas dependem de suas refrações pelo sujeito. Em outras palavras, atenção é concentrada no fato que causas externas agem através do meio de condições internas. Mas esta noção pode ser interpretada de várias maneiras, dependendo do que se entende por condições internas. Se são tomadas para significar a troca de estados internos do sujeito, a noção nos oferece nada de essencialmente novo. Qualquer objeto pode mudar seus estados e assim se manifestar de diferentes maneiras em sua interação com outros objetos. Pegadas aparecem em chão macio, mas não em chão duro; um animal faminto reage à comida diferentemente de um que está bem alimentado; a reação de uma pessoa alfabetizada a uma carta é diferente da de um analfabeto. É outra questão se por “condições internas” entendemos as características especiais dos processos que estão ativos no sujeito. Mas então a questão principal é o que estes processos são que mediam as influências do mundo objetivo refletido no cérebro humano. A resposta básica para esta questão reside no reconhecimento de que estes processos são aqueles que realizam uma vida verdadeira da pessoa no mundo objetivo pelo qual ela está cercada, seu ser social em toda sua riqueza e variedade de suas formas. Em outras palavras, estes processos são sua atividade. Esta proposição requer a próxima definição, de que por atividade entendemos não a dinâmica dos processos fisiológicos, nervosos, que realizam esta atividade. Uma distinção deve ser traçada entre a dinâmica e estrutura dos processos mentais e da linguagem que os descreve, por um lado, e a dinâmica e estrutura da atividade do sujeito e a linguagem os descrevendo, por outro. Assim, ao lidar com o problema de como a consciência é determinada, somos confrontados com a seguinte alternativa, tanto aceitar a visão implicada no “axioma da imediaticidade”, i.e., proceder de um padrão “objeto-sujeito” (ou o padrão “estímulo-resposta”, que é a mesma coisa), ou proceder de um padrão que inclui um terceiro vínculo conectivo – a atividade do sujeito (e, correspondentemente, seus meios e modo de aparecimento), um vínculo que media suas interconexões, isso quer dizer, proceder do padrão “sujeito-atividade-objeto”. Na forma mais geral, esta alternativa pode ser apresentada como segue. Ou tomamos a posição de que a consciência é determinada diretamente por coisas e fenômenos que rodeiam o sujeito, ou postulamos que a consciência é determinada pelo ser, que, nas palavras de Marx, não é nada que senão o processo da verdadeira vida das pessoas. Mas o que é essa verdadeira ou real vida das pessoas? Ser, a vida de cada indivíduo é feita da soma total ou, para ser mais exato, um sistema, uma hierarquia de atividades sucessivas. É em atividade que a transição ou “tradução” do objeto refletido em imagem subjetiva, em ideal, ocorre; ao mesmo tempo, é também em atividade que a transição é alcançada do ideal em resultados objetivos da atividade, seus produtos, em material. Considerada deste ângulo, atividade é um processo de inter-tráfico entre polos opostos, sujeito e objeto. Atividade é uma unidade não-aditiva da vida material, corpórea, do sujeito material. Em um sentido estreito, i.e., no plano psicológico, é uma unidade de vida, mediada pela reflexão mental, por uma imagem, cuja função real é orientar o sujeito no mundo objetivo. Entretanto, não importam as condições e formas nas quais a atividade do homem procede, não importam quais estruturas adquire, não pode ser considerada como algo extraído de relações sociais, da vida da sociedade. Apesar de toda sua diversidade, todas as suas características especiais, a atividade do indivíduo humano é um sistema que obedece o sistema de relações da sociedade. Fora destas relações, a atividade humana não existe. Como ela existe é determinada pelas formas e meios da comunicação material e espiritual que são geradas pelo desenvolvimento da produção e não podem ser realizadas exceto na atividade de indivíduos específicos. É lógico que a atividade de todo indivíduo depende de seu lugar na sociedade, em suas condições de vida. Isso precisa ser mencionado por causa dos persistentes esforços dos positivistas para opor o indivíduo à sociedade. A visão deles é que a sociedade provê somente um ambiente externo ao qual o homem precisa se adaptar para sobreviver, assim como um animal precisa se adaptar ao seu ambiente natural. A atividade do homem é moldada pelo sucesso ou fracasso de sua adaptação, mesmo que isso possa ser indireto (por exemplo, através da atitude tomada quanto a isso no grupo de referência). Mas a coisa principal é ignorada, que na sociedade o homem encontra não somente suas condições externas as quais ele deve adaptar sua atividade, mas também que aquelas mesmas condições sociais carregam em si mesmas os motivos e objetivos de sua atividade, as maneiras e meios de sua realização; em uma palavra, a sociedade produz a atividade humana. Isso não é dizer, naturalmente, que a atividade do indivíduo meramente copia e personifica os relacionamento da sociedade e sua cultura. Existem algumas ligações cruzadas muito complexas que excluem qualquer redução estrita de um ou de outro. A característica básica constituinte da atividade é que ela tem um objeto. Na verdade, o próprio conceito de atividade (fazer, Tätigkeit) implica o conceito de objeto da atividade. A expressão “atividade sem objeto” não tem sentido algum. Atividade pode parecer não ter objeto, mas a investigação científica da atividade necessariamente demanda a descoberta de seu objeto. Além disso, o objeto da atividade aparece em duas formas: primeiro, em sua existência independente, comandando a atividade do sujeito, e segundo, como uma imagem mental do objeto, como o produto da “detecção” do sujeito de suas propriedades, que é efetuada pela atividade do sujeito e não pode ser efetuada de outra forma. A natureza circular dos processos efetuando a interação do organismo com o ambiente tem sido geralmente reconhecida. Mas a coisa principal não é a estrutura circular enquanto tal, mas o fato de que a reflexão mental do mundo objetivo não é gerada diretamente pelas próprias influências externas, mas pelos processos através dos quais o sujeito chega ao contato prático com o mundo objetivo, e que, por conseguinte, necessariamente obedece suas propriedades, conexões e relações independentes. Isso significa que o agente aferente, que controla o processo da atividade, é primariamente o próprio objeto e, somente secundariamente, sua imagem como o produto subjetivo da atividade, que registra, estabiliza e carrega em si o conteúdo objetivo da atividade. A forma geneticamente inicial e fundamental da atividade humana é atividade externa, atividade prática. Esta proposição tem implicações importantes, particularmente enquanto a psicologia, tradicionalmente, tem sempre estudado a atividade do pensamento e da imaginação, atos de memória, e assim por diante, desde que somente tal atividade interna era considerada psicológica. Psicologia, por conseguinte, ignorou o estudo da atividade sensorial, prática. E mesmo que a atividade externa figurou em alguma extensão na psicologia tradicional, o fez somente como uma expressão da atividade interna, a atividade da consciência. O que exatamente temos em mente quando falamos de atividade? Vamos considerar o processo mais simples, o processo de perceber a resiliência de um objeto. Este é um processo aferente ou externo-motor, que pode buscar, ao realizar uma tarefa prática, por exemplo, a deformação do objeto. A imagem que surge ao longo do processo é, naturalmente, uma imagem mental e é, por conseguinte, indubitavelmente qualificada para o estudo psicológico. Mas, para entender a natureza desta imagem eu preciso estudar o processo que a gera, e no caso dado este é um processo externo e prático. Goste ou não, sou compelido a incluir o processo como parte do objeto de minha investigação psicológica. Naturalmente, o mero estabelecimento da necessidade de uma investigação psicológica para estender à esfera da atividade objetiva externa não resolve o problema, porque pode ser assumido que, embora a atividade objetiva externa surge dentro de um intervalo de investigação psicológica, tal atividade desempenha um papel secundário, desde que é guiado por processos psicológicos internos que residem para além dele, e por essa razão a investigação psicológica, na verdade, não provê para a investigação desta atividade. Este é um ponto a ser contado, mas somente se é assumido que a atividade externa é unilateralmente dependente da imagem que a controla, e que pode ou não ser reforçada pelo resultado de sua atividade. Mas não é assim. Atividade é obrigada a encontrar objetos que resistem ao homem que a desviam, mudam e enriquecem. Em outras palavras, é a atividade externa que destrava o círculo de processos mentais internos, que o abre para o mundo objetivo. Será prontamente apreciado que a realidade com a qual o psicólogo está preocupado é essencialmente mais rica e mais complexa do que o simples esboço da forma como a imagem surge do contato com o objeto que acabamos de desenhar. Mas não importa quão remoto a realidade psicológica pode estar deste padrão rude, não importa quão profunda pode ser a metamorfose da atividade, atividade, sob todas as circunstâncias, permanecerá o materializador da vida de qualquer indivíduo dado. A velha psicologia estava preocupada somente com processos internos, com a atividade da consciência. Além disso, por um longo tempo ignorou a questão da origem dessas atividades, i.e., suas verdadeiras naturezas. Hoje a proposição de que processos internos do pensamento são produzidos a partir do externo tem se tornado quase geralmente reconhecida. Em primeiro lugar, por exemplo, processos mentais internos tomam a forma de processos externos envolvendo objetos externos e, enquanto se tornam objetos internos, estes processos externos não mudam simplesmente sua forma, mas sofrem uma certa transformação, tornando-se mais gerais, contraídos, e assim por diante. Tudo isso é bem verdade, naturalmente, mas deve-se enfatizar que a atividade interna é atividade genuína, que retém a estrutura geral da atividade humana, não importa qual forma ela assume. Uma vez que reconhecemos a estrutura comum da atividade prática, externa, e atividade mental, interna, podemos entender a troca de elementos que constantemente ocorrem entre elas, podemos entender que certas ações mentais podem se tornar parte da estrutura da atividade material, prática, e, reciprocamente, operações externo-motoras podem servir para o desempenho da ação mental na estrutura da atividade puramente cognitiva. Na época atual, quando a integração e interpenetração destas formas de atividade humana estão ocorrendo diante dos nossos olhos, quando a oposição histórica entre elas tem sido constantemente e cada vez mais apagada, a significância da proposição é auto evidente. Até agora falamos sobre atividade em geral, significado coletivo deste conceito. Na verdade, entretanto, temos que lidar com atividades específicas, concretas, cada uma das quais satisfaz uma necessidade definida do sujeito, é orientada em direção ao objeto desta necessidade, desaparece como um resultado de sua satisfação e é reproduzida talvez em condições diferentes e em relação a um objeto transformado. A principal coisa que distingue uma atividade de outra reside na diferença entre seus objetos. É o objeto da atividade que a dota de certa orientação. Na terminologia que tenho usado o objeto da atividade é seu motivo. Naturalmente, ele pode ser tanto material quanto ideal; pode ser dado na percepção ou pode existir somente na imaginação, na mente. Assim, atividades diferentes são distinguidas por seus motivos. O conceito de atividade é necessariamente ligado ao conceito de motivo. Não existe tal coisa como atividade sem um motivo; atividade “desmotivada” não é atividade que