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"Unidade das forças democráticas ou um homem só entre as ruínas"


Os últimos anos têm sido de uma cavalgada triunfal de organizações fascistas, que conquistaram consecutivamente o Governo em vários países do mundo. De Trump nos Estados Unidos a Órban na Hungria, de Salvini em Itália a Bolsonaro no Brasil sem esquecer Narendra Modi na Índia, a marcha tem sido imparável. E numa série de outros países, triunfos iguais se avizinham: a ascensão da AfD na Alemanha, do UKIP no Reino Unido, do Ciudadanos no Estado espanhol, e da já velha progressão da FN em França, fazem prever reedições de actos eleitorais tão dramáticos como que, recentemente, se viu no Brasil. Não é por acaso que, em Portugal, vemos organizarem-se estruturas protopartidárias como a Nova Portugalidade, a Nova Ordem Social, sucederem-se as cisões de direita no PSD, protagonizadas por Pedro Santana Lopes e André Ventura, e temos membros destacados do CDS a denunciar a censura da Websummit à participação de Marine LePen, ou ataques do mais burgesso reaccionarismo ao regime venezuelano protagonizados por Adolfo Mesquita Nunes.

A estratégia dinamizada pela esquerda com vista a deter este galope fascista tem-se saldado em derrotas consecutivas, com a única excepção... do triunfo de Macron (um gestor do Banco Rothschild que pretende reparar as relações entre igreja e Estado e tem ordenado rusgas extrajudiciais provocatórias às sedes da Frente de Esquerda...). Essa estratégia pretende assegurar a unidade das ditas “forças democráticas”, sejam de esquerda sejam da direita dita democrática (liberais, conservadores), sob o princípio de que há uma fronteira que as separa, por mais deslocadas para a direita que estejam, do fascismo. Como procuraremos demonstrar, essa estratégia é equívoca quer no plano teórico quer no plano da experiência prática. Mas mais do que isso, essa estratégia cria condições perfeitas para que um dos elementos essenciais do pensamento fascista se dissemine - o de que todas as forças políticas que não são fascistas estão, pelo essencial, de acordo com um projecto “globalista” de subversão da ordem tradicional da nação. O fascismo beneficia da recusa da esquerda em apresentar uma alternativa ao regime capitalista, da sua colagem aos partidos burgueses em defesa da democracia do patronato, para se apresentar como portador exclusivo de um projecto de sociedade que rompe com a democracia burguesa e edifica uma vida nova. Analisemos estes pontos.

1. O frentismo contra o fascismo

Poucas coisas são mais enraizadas no senso comum da esquerda mainstream do que a tese frentista. É muito improvável que, abordado, o militante político ou o votante médio de uma organização de esquerda, este não considere que as divergências entre partidos, forças políticas, e correntes de pensamento, são de carácter despiciendo e devem ser postas de parte para um esforço de convergência em torno de interesses maiores. É algo que terá que ver com o facto de a filiação política ao campo da esquerda ser movida muito mais por uma relação emocional, empática, com a perspectiva da criação de um mundo menos agreste para os sectores sociais desprivilegiados, do que com a adesão a um projecto concreto de transformação da sociedade. Quem tem apenas uma vaga (independentemente de porventura ser nobre) aspiração de “justiça social” e nenhuma ideia do figurino da sociedade em que quereria viver, é previsível que não veja uma diferença considerável entre o marxismo-leninismo ou as dores de coração piedosas de sectores progressistas do catolicismo.

Esta tese de senso comum é amplificada quando o assunto é o fascismo, revelando que a crítica ao modo de produção capitalista levada a cabo pela esquerda do nosso tempo é pautada por uma enorme falta de radicalidade. Para a esquerda mainstream, onde o peso das ideias liberais e social-democratas é total, não há uma crítica a fazer à democracia burguesa, nem uma proposta de organização política que a extinga. A democracia burguesa é a forma inultrapassável de organização política da humanidade, sendo a única discussão a ter como se pode conservá-la, ou, no limite, alargá-la. A perspectiva de uma organização social posterior ao Estado burguês, administrada por meio de estruturas que não sejam as do poder representativo e da governação burocrática de pessoas sobre pessoas, surge-lhe como uma espécie de ficção científica política, merecedora de sorrisos de escárnio. A haver uma luta para se travar no plano do Estado será para evitar que ele seja tomado pelo fascismo (pela via eleitoral ou por meio de um golpe militar), luta essa que a seu ver deve ser feita agregando todos os “democratas”, da esquerda anticapitalista mais radical aos conservadores que prezem a existência da democracia, numa só frente política. Frente cuja unidade deve, tal como no caso da frente “das esquerdas”, ser assegurada pondo de parte os aspectos disruptivos que oponham os membros da dita frente, a bem do interesse maior que é o da conservação da democracia.

A prova da prática, repetimos, é demolidora para esta teoria geral. Primeiro, as forças políticas cujo principal objectivo é a administração do Estado burguês não perdem de vista que a configuração e a metodologia de um Estado fascista pode ser distinta da de um Estado demoliberal, mas um aparelho de estado continua a ser um aparelho de Estado. Passemos em revista o caso português: afora algumas purgas pontuais, o aparelho do Estado democrático subsequente ao 25 de Abril manteve as polícias, os tribunais, as prisões, os cobradores de impostos, os militares do fascismo. Como já em 1926, tirando alguns sectores mais exaltados do reviralho, o pessoal político do republicanismo aceitou fazer política nos termos do regime fascista (o próprio presidente da República, Óscar Carmona, era um republicano conservador). O mesmo é válido para a França de Vichy, ou para o Estado espanhol antes e depois do franquismo, ou para tantos outros casos. O extremo desta dança de cadeiras parece ser o caso do Brasil, onde incontáveis políticos foram transitando placidamente de ditadura em democracia ao longo dos diversos regimes mais ou menos liberais que o país foi tendo, chegando ao cúmulo de o mesmo homem, Getúlio Vargas, ter sido ditador fascista nos anos 30 e 40, e presidente democraticamente eleito (e responsável por certas reformas trabalhistas) nos anos 50. A incompreensão da natureza de classe do Estado e das características das organizações cujo principal objectivo é geri-lo de forma “melhor” que o parceiro do lado, sustenta a tese de senso comum da unidade dos democratas e só pode correr mal. Sempre correu. E ainda fornece um amplo espaço de manobra ao discurso fascista, sobretudo na medida em que este irmana todos os não-fascistas numa massa indistinta de inimigos da sua causa.

2. De pé entre as ruínas

Julius Evola, um dos pensadores mais influentes do fascismo no séc. XX, escreveu um livro cujo título é possivelmente a melhor definição da estratégia política do fascismo: chama-se De Pé Entre as Ruínas e merece alguma atenção pela capacidade que tem de reservar ao fascismo o monopólio da alternativa ao regime democrático burguês, ao reduzir as forças da esquerda e as da direita liberal e conservadora a uma mesma família política cujos projectos políticos não teriam, verdadeiramente, autonomia uns em relação aos outros.

Evola teoriza sobre a existência de uma subversão na Europa que foi introduzida “pelas revoluções de 1789 e 1848”. Esta equiparação entre a revolução burguesa de 1789 e as primeiras grandes sublevações operárias de 1848 (por sinal o ano de publicação do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels) visa tecer um pano de fundo para a actuação do fascismo em que a própria noção de revolução é posta em cheque como uma desordem a evitar, um desarranjo da sociedade, uma “subversão”. O fascismo surge como um movimento político que visa assegurar a ordem, apresentando-a como estando em permanente estado de ameaça pelos intuitos subversivos do que quer que esteja à sua esquerda, ainda que milimetricamente à esquerda.

É evidente que a ordem que o fascismo busca discursivamente restabelecer nunca se percebe propriamente em que momento da história esteve estabelecida. Se o ponto fosse restabelecera ordem pré-1789, por exemplo, o esforço do movimento fascista teria de ir no sentido de desapossar a burguesia dos meios de produção e de os entregar ao que restasse de nobreza e clero. Manifestamente, os dirigentes fascistas foram muito mais propensos a pôr-se ao serviço dos grandes latifundiários e industriais do que a empreender este absurdo projecto de reverter os últimos dois séculos da história da humanidade. Torna-se claro que a “ordem perdida” não passa de uma robinsonada legitimadora da repressão, construída de uma forma que permite a liquidação quer dos movimentos de ruptura com modo de produção capitalista, quer dos que pretendam a manutenção do mesmo dentro de uma lógica demoliberal.

O efeito que isto tem na inexequibilidade de qualquer projecto frentista é tremendo: por um lado, os liberais e conservadores que pretendem genuinamente manter o modo de produção capitalista mas porventura conservem pruridos democratistas perante os métodos do fascismo, interpelados com a acusação de subversivos, de pinkos para usar a linguagem do McCarthismo, tenderão a abandonar tais posições para garantirem a sua condição de esteios da ordem. Simultaneamente, e em directa consequência disto, as forças da esquerda, de modo a não romperem a unidade com os sectores democráticos que lhes parece fundamental manter a todo o custo, vão deslizando para a direita e abandonando progressivamente as pautas de ruptura com o modo de produção capitalista - e por sinal, num tom cada vez mais rude, vão admoestando os que dentro das suas fileiras continuem a insistir em torno delas, por porem a unidade em causa com o sectarismo e o esquerdismo de procurar passar por cima da etapa histórica presente. Essa posição reforça grandemente a ideia de que os herdeiros de 1789 e os de 1848 são fundamentalmente iguais entre si, defensores de um regime de democracia burguesa que não serve os interesses da massa oprimida, e por isso igualmente merecedores do seu asco. Quanto mais empenhado for o esforço da esquerda para garantir a unidade com os demais sectores democráticos e para ser a guarda pretoriana da democracia do patrão, mais municiado fica o movimento fascista para tratar por igual todas as correntes políticas à sua esquerda como parte de um mesmo lote que cumpre derrotar a bem da nação, da raça, do ocidente, da fé cristã, da ordem, ou do que na altura estiver na moda dizer-se.

Como um homem de pé entre as ruínas, cada militante fascista é nesta narrativa um combatente que não tem de pedir auxílio nem reforço de fileiras a nenhum representante da ordem caquética. Pelo contrário, quanto menores ou menos evidentes forem os namoros com essa velha ordem, mais sucesso o movimento terá. Ao mesmo tempo que o fascismo se separa, contrasta, e rejeita fazer parte do regime demoliberal caído em desgraça entre as massas, a esquerda faz todos os esforços para o manter de pé e se confundir com ele. Quanto mais disseminada o pensamento frentista estiver entre a esquerda, mais validadas as teorias fascistas se podem apresentar. As recentes eleições brasileiras, com a insistência por parte do campo fascista em que a palavra de ordem #EleNão revelava a hipocrisia do PT por estar disposto a entregar o poder a banqueiros como Henrique Meirelles ou autoproclamados campeões dos despedimentos como Ciro Gomes, desde que isso derrotasse Bolsonaro (e portanto não era um partido genuinamente preocupado com os trabalhadores, era um partido interessado em manter o regime político), foram mais uma derrota desta estratégia.

3. Sem unidade há o quê?

Perante este diagnóstico, é importante perceber que estratégia política geral deve ser adoptada pela campo anticapitalista para não ser uma e outra vez enredado no esquema da defesa da democracia burguesa, com a agravante de o fazer em aliança espúria e sem princípio com os sectores conservadores e neoliberais do regime, com cuja boa vontade se conta para conservar as liberdades civis.

Um primeiro ponto que parece ser fundamental para essa estratégia é precisamente o da assunção clara do factor que distingue o campo anticapitalista em relação quer ao fascismo quer às forças demoliberais que, como vimos, facilmente se transformam em pessoal político do fascismo quando as alternativas que se perfilam são manter as suas posições no aparelho de Estado ou resistir à compressão das liberdades. O campo anticapitalista pretende instaurar uma organização social, económica, e política, que liquide o capitalismo. Todo o trabalho político que não tenha esse horizonte expresso pode muito facilmente ser transformado em demonstração de que entre forças demoliberais e anticapitalistas tudo é igual a tudo. Toda a lógica etapista, processional, lenta mecânica e com medo de colocar as tarefas históricas dos oprimido com clareza, surgirá como uma comprovação de que esse campo aceita ser a guarda pretoriana do capitalismo e da sua democracia, o rigoroso oposto do que lhe compete ser. Isso serve apenas como combustível da ascensão fascista.

Um segundo ponto é o do trabalho junto dos militantes, votantes, activistas de esquerda que aderem ainda ao senso comum frentista. É de toda a importância a exposição, em toda a sua dimensão, do absoluto fracasso histórico que o frentismo tem sido. É algo curioso que uma tese desta natureza, que tem origens claras num VII Congresso da Internacional Comunista presidido por Estaline receba o apoio encarniçado de anti-estalinistas convictos. Isso só prova, como escrevemos, um dos aspectos essenciais da pertença à esquerda no nosso tempo - o de ser essencialmente uma posição política tomada na base de um sentimento de simpatia para com a perspectiva de pertencer a um campo político que almeja a justiça social e a liberdade, sem especial preocupação com o projecto político, seja no plano da organização popular, do método de edificação da capacidade conflitiva com o Estado, do trajecto a seguir na luta ascendente, do modo como a sociedade se organizará uma vez liquidado o capitalismo.

Descobrir formas que permitam popularizar o campo anticapitalista como uma alternativa de regime ao capitalismo, e dotar a adesão vaga de muitos militantes e activistas ao campo “da esquerda” de um conteúdo político de maior combatividade e maior radicalidade na análise e na proposta de solução dos problemas sociais, esses devem ser os eixos organizativos a seguir. A combatividade enquanto elemento de propaganda serve, desde logo, para contrariar um comportamento que se tem revelado totalmente improdutivo no reecontro com a extrema-direita:

as palavras de ordem empregues na campanha eleitoral brasileira, onde a paz e o amor foram leitmotivs numa altura em que apoiantes de Bolsonaro assassinavam apoiantes de Haddad em plena luz do dia foram um sinal sinceramente mais deprimente da fraqueza subjectiva do movimento, e a prova de que este nem sequer serve para que o poder neoliberal instituído sinta qualquer necessidade de respeitar a legalidade, visto que do outro lado os intentos de o obrigar a confrontar-se com real oposição e real conflitualidade social são nenhuns.

Ao mesmo tempo, a resistência faz-se com um discurso combativo mas não se reduz a uma questão discursiva. Ela implica transformar esse discurso propagandístico num projecto político adoptado pelos sectores oprimidos da sociedade como seu. De modo que o campo anticapitalista deve desenvolver o seu trabalho político imergindo nesses sectores da sociedade, tomando em mãos o exercício da solidariedade revolucionária com os seus problemas e aspirações, participando na sua organização para transformar de forma concreta a sua vida.

A extrema-direita está, neste ponto, a desempenhar um trabalho político notável de banalização/hegemonização do seu projecto político. Em recente reportagem televisiva foram denunciadas ligações da extrema-direita a uma organização que resgata animais maltratados, e foi recorrente ler-se “que importa se são fascistas, eles salvam animais” nas caixas de comentários da imprensa. Este enunciado simples é a receita condensada da constituição de uma ideologia em hegemonia: associá-la à resolução concreta, com prova visível, de um problema sentido como tal pelos sectores oprimidos. O campo anticapitalista estará na senda da vitória quando dele se disser nas conversas de café “que importa se querem derrubar a ordem burguesa, eles ajudam os velhos daquele bairro pobre, os desempregados, os filhos com pais na cadeia, a organizar-se para darem uma solução concreta aos seus problemas”. Nessa altura, quando o anticapitalismo for uma força material que obteve a adesão de amplos sectores das classes exploradas, terse-á montado o único movimento antifascista que é indestrutível: o movimento popular organizado.

por João Vilela

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