top of page
textura-03.png

"Lima Barreto e a Militância Literária"

Foto do escritor: NOVACULTURA.infoNOVACULTURA.info


A emergência do nome de Lima Barreto no ano do centenário do seu nascimento, leva que se reconsidere uma série de conceitos e julgamentos relativos à sua atuação na época em que viveu como agente de crítica social e como escritor. Ao mesmo tempo, cabe uma reanálise da sua obra, seu situacionamento como escritor, a importância dos seus livros e a contribuição que deu numa articulação unitária homem-escritor à nossa cultura.


Lima Barreto é um escritor que foi colocado na penumbra deliberadamente pelos setores dominantes e privilegiados da indústria literária no Brasil. Era pobre, negro, anarquista e, por decorrência de tudo isto, antimilitarista. Sua obra, ao nosso ver, não é porem apenas a de um grande romancista, mas a de um escritor que criou uma nova linguagem para a novelística brasileira. Quero acentuar que, propositadamente, escrevi que ele conseguiu para o nosso romance uma nova linguagem e não um estilo novo. Até Lima Barreto a linguagem do Romance Brasileiro esbarrava em uma série de preconceitos, preconceitos que, até hoje, são perfilhados por muitos dos seus críticos, os quais, escolhendo como referencial básico de perfeição a obra de Machado de Assis, encontram imperfeições em tudo aquilo que, em Lima Barreto, era o transbordar do convencionalismo do linguajar que tinha as suas matrizes em Antônio Feliciano de Castilho, para poder expressara riqueza de pensar e de agir do nosso povo. Esta posição inovadora de Lima Barreto não advinha, porém, como muitos de seus críticos apontam, de um menor adestramento seu como escritor ou insuficiente domínio da língua, mas, pelo contrário, era uma posição consciente, que refletia essencialmente a sua posição como homem e como artista em relação à realidade brasileira.


Nasceu Lima Barreto no Rio de Janeiro em 1881 e morreu em 1922. Nasceu em um subúrbio, quando a cidade crescia, urbanizava-se, adquiria dimensões de grande urbe. O provincianismo da velha capital imperial era substituído pela visão francesa que as elites tinham do mundo. Após a abolição do tráfico de escravos africanos, em 1850, houve uma grande movimentação na aplicação de capitais de ex-traficantes em áreas que se dinamizavam, especialmente na região do café. O segundo Banco do Brasil foi fundado usando-se parte desses capitais imobilizados. Mauá, seu fundador, afirmará em sua autobiografia (que nada mais foi do que um relatório aos credores quando faliu) haver se aproveitado desses capitais, disponíveis e congelados após a extinção desse “ilícito comércio".


Com a extinção do tráfico, há uma dinamização surpreendente na economia brasileira.


Este dinamismo econômico do Rio de Janeiro, onde se centrava o eixo da vida financeira e administrativa do país, poderá ser comprovado com alguns dados suplementares. Por exemplo: segundo Castro Carreiro, de 1850 (ano da abolição do tráfico) a 1860, foram concedidos 71 privilégios industriais para a incorporação de 14 bancos de depósitos e descontos e alguns de emissão; criaram-se 3 caixas econômicas; organizaram-se 20 companhias de navegação a vapor, 23 companhias de seguros, 4 de colonização, 8 de estradas de ferro, 2 de rodagem, 4 de carris urbanos com tração animal, 8 de mineração, 3 de transportes e 2 de gás.


Evidentemente, nem todo este dinamismo era sinônimo de desenvolvimento autônomo da nossa economia. Os capitais estrangeiros já entravam agressivamente, apossando-se daquelas áreas de atividades mais lucrativas e estrategicamente interessantes. Lima Barreto, em várias partes do seu “Diário Íntimo" demonstra a sua inquietação e indignação quanto a essa penetração, fato que também é confirmado nos seus artigos de jornal. A velha Rio de Janeiro sonolenta e bocejante acorda para ganhar o tempo que a economia escravista a fez perder.


É neste período de transformação urbana que Lima Barreto toma consciência do mundo. E. com a sua sensibilidade, procura encontrar a maneira de articular em forma de linguagem literária, todos aqueles elementos novos de falar e de agir, pensar e atuar que surgiam. A genialidade de Lima Barreto está justamente em ser o escritor que, situando-se como artista no centro deste universo dinâmico e contraditório, conseguiu a síntese magnífica de representá-lo usando uma linguagem literária organicamente adequada a esse dinamismo.


Isto, porém, foi pouco compreendido até hoje.


Mesmo alguns críticos que se dizem compreensivistas em relação à obra de Lima Barreto não escapam a essa incompreensão. Procuram fazer comparação entre um Lima Barreto “desleixado” e um Machado de Assis que seria a maior organização de escritor de todos os tempos no Brasil. Tal equívoco foi rebatido pelo próprio Lima Barreto, quando escreveu:


“sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de Dickens, de Swift. Até em Turgueneff, em Tolstoi, poderiam ir buscar os meus modelos; mas em Machado, não! ‘Le moi...’ Machado escrevia com medo de Castilho e escondendo o que sentia, para não se rebaixar; eu não tenho medo da palmatória do Feliciano e escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto. Creio que é a grande diferença."


Nunca um escritor confessou que sua linguagem estava a serviço de uma verdade social com mais ênfase em nossa literatura. Vemos a consciência do escritor que colocava seu instrumental de comunicação a serviço de um pensamento e não de um formalismo literário, fruto de moda e ocasião. Não querer compreender isto é fugir de um dos problemas mais importantes para a valorização da sua obra. O escritor que procurava reformular a sua linguagem para poder dizer tudo aquilo que de novo, problemático e conflitante surgia na sociedade carioca da sua época, era considerado por isso mesmo pelos críticos de desmazelado na forma e incapacitado estilisticamente.


A partir desta incompreensão, passam a caracterizar Lima Barreto apenas por alguns aspectos temáticos da sua obra. Chamam-no, por isto, de romancista urbano, aquele que retratou a paisagem e os costumes do Rio de Janeiro. Isto é, caracterizam Lima Barreto por aquilo que é apenas o condicional e acidental, ou seja, o fato de ele escrever tendo como tema a cidade do Rio de Janeiro. No entanto, antes dele, Manoel Antônio de Almeida, com o seu pioneiro Memórias de um Sargento de Milícias, já havia retratado cenas e costumes do Rio e Joaquim Manuel de Macedo havia retratado a sua paisagem de forma romântica, sem falarmos nos romances do próprio Machado de Assis e de Alencar.


O que há de inovador, de acréscimo, nos romances de Lima Barreto em relação àqueles que o precederam? É que enquanto Manoel Antônio de Almeida retratava de forma magistral, diga-se de passagem, o Rio de Janeiro “no tempo do rei", como se fosse um etnógrafo, registrando os fatos, embora algumas vezes mostrasse o seu pensamento no decorrer do livro; Macedo retratasse um Rio de Janeiro romantizado e afrancesado e Machado de Assis jamais tivesse visto e sentido a paisagem carioca. Lima Barreto pegou, dessa cidade que se desenvolvia, o seu drama humano, as suas contradições, seus conflitos, a expansão de uma cidade que, da forma como estava sendo feita, produzia nos seus habitantes do polo oprimido o que poderíamos chamar de mutilações gritantes nas suas personalidades. Daí ter concentrado a sua ótica de romancista nas pessoas dos subúrbios; na mulher mestiça explorada pela sua situação social, sexual e de cor e no jovem que vem do interior e sente o choque com os valores da cidade que procura o progresso a qualquer custo. Há também os visionários, os utopistas e os críticos da situação política. Foram os exploradores e explorados, por isto, a argamassa do seu livro. Retrata os exploradores nos seus diversos aspectos econômicos, sociais, políticos e psicológicos dentro de um enquadramento em que fica implícito o seu pensamento crítico, e retrata os explorados com a ternura que tinha para com aquela população de subúrbios, formada, na sua maioria, de pardos e negros, desajustados e pobres que sofriam ainda o traumatismo da escravidão terminada recentemente. Aí está a grandeza de Lima Barreto como escritor. Viu o dinamismo do crescimento da cidade não como uma adição de mais casas, prédios, bancos, ruas ou veículos de comunicação, mas como um processo tortuoso e doloroso de urbanização, no qual os oprimidos estavam pagando um preço muito alto: construíam a cidade e eram expulsos dos espaços construídos.


Por exemplo, no Recordações do Escrivão Isaías Caminhai (seu livro de estreia), escrito na primeira pessoa, diz o personagem central: