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"Leninismo e crítica da arte"



Já há algum tempo é aceitável escrever copiosamente sobre as inadequações de nossas críticas literárias. Insuficiências que são realmente grandes. A fim de ajudar nossas críticas, muitos meios são prescritos. Escrevem, por exemplo, que apenas artigos inteligentes são necessários, que todo crítico deve possuir gosto artístico, que deve ser honesto e corajoso na denúncia de vícios, mas mais do que isso, ele deve ser talentoso.


Isto é tudo verdade, claro. Se a pessoa for insensata e desonesta, não pode ser autorizada a passar nem mesmo o umbral da literatura. Sim, é fundamental pensar que sendo inepto ou covarde, deve-se evitar lidar com o leitor. Mas esta não é de forma alguma a questão toda. Faltam pessoas honestas e talentosas? Seria estranho duvidar disso. Por que tanto se escreveu sobre as inadequações de nossa crítica literária? Aparentemente, a influência de outras causas se manifesta aqui.


Ouvir discussões intermináveis sobre inteligência e talento, inadvertidamente, nos lembra um dos personagens da comédia de Shakespeare, Muito barulho por nada. O velho e bem-humorado Dogberry enuncia ao guarda noturno Seacoal: “Ser belo é um presente de sorte, mas saber ler e escrever depende da natureza”. É o que muitos de nossos escritores pensam. Eles estão convencidos de que inteligência e talento são coisas recuperáveis, mas silenciosamente assumem que a arte de ler e escrever é dada pela natureza. Na realidade, isso acontece de maneira diferente. Pregue o gosto e o talento tanto quanto você quiser, se eles não estiverem lá, todo o seu sermão é uma moralidade vazia; se estiverem presentes, este sermão é igualmente infrutífero e desnecessário. Na verdade, esse raciocínio leva a críticas que começam a “ser bonitas” com a ajuda de ornamentos artificiais.


Mas há outro aspecto sobre a arte de ler e escrever. E apesar do que diz o velho Dogberry, esta arte não é dada pela natureza, mas por um trabalho longo e perseverante. É aqui que nossos moralistas dirigem seu zelo. No entanto, as pessoas estão mais conscientes de sua incapacidade do que da ausência de conhecimento, embora este último seja facilmente corrigido.


Sucintamente falando e sem preâmbulo, nossos críticos não compreendem a arte de ler e escrever no espírito do leninismo. Essa é a verdadeira razão de suas insuficiências. É claro que, depois de outubro, muitas das ideias de Lenin estão difundidas entre nós, e são amplamente conhecidas no meio literário. Mas o velho adágio é verdadeiro: saber ainda não é compreender. E o leninismo é ciência, e exige de nós uma compreensão precisa.


Geralmente pensa-se que o conhecimento, ou melhor, um certo sentimento de leninismo, nos é dado naturalmente, e só é necessário adquirir beleza literária com a ajuda dos próprios esforços. Mas, como dissemos acima, isto é um preconceito. Se algo nos é dado pela natureza ou, mais precisamente, pela velha pré-história, que se tornou um hábito de tradição, então muito provavelmente há resquícios do marxismo dogmático, o marxismo da velha escola social-democrata, que deve ser superado através de um trabalho consciente. Estamos falando dos remanescentes desse materialismo histórico que está contido em brochuras e livros de Kautsky, Plekhanov, Gorter, em parte Lafarge, em parte Mehring(1). A geração mais velha de nossos críticos aprendeu a interpretar os fenômenos ideológicos a partir destes panfletos e livros. Junto com os grãos de verdade, extraíram de lá muitos dogmas errados e ambíguos. A geração mais jovem assimilou este legado com a adição de esquemas de ultraesquerda no espírito de Bogdanov, abstrações sociológicas de Bukharin ou Friche. O marxismo vivo ainda precisa pavimentar seu caminho através de uma nuvem de tais distorções.


Recentemente nossa imprensa tem prestado muita atenção à crítica de todos os esquemas sociológicos irritantes. É necessário admitir que as cabeças de muitas figuras literárias ainda estão entupidas de todo tipo de bobagens. Então se afirma que a essência do trabalho de Puchkin é o servilismo, e então é feito de Gogol o representante dos latifundiários, e recentemente lemos nos jornais que um editor não tão zeloso proibiu a palavra “jovem” por ser burguesa. É aceito atribuir tudo isso às custas da estupidez humana comum. E de fato, há muita estupidez aqui, mas esta estupidez tem seu próprio sistema.


Já não basta apenas ridicularizar caricaturas individuais de um tipo social vulgar. É bastante óbvio que eles se originam de uma unilateralidade e de um mal-entendido do marxismo. O lixo sociológico não melhora onde é expresso de forma mais inteligente, mais cuidadosa, mais evasiva. Afinal de contas, o que está sóbrio em mente se torna embriagado na língua.


Mas o que uma pessoa sóbria tem em mente? Que sistema de pontos de vista está subjacente a todos os esquemas sociológicos irritantes? Para responder a esta pergunta, devemos nos dirigir ao atual fundador da escola sociológica na crítica marxista: G.V. Plekhanov. Os próprios escritos de Plekhanov são os menos vulgares, e ainda assim os esquemas de sociologia vulgar vêm desta mesma fonte.


Para garantir que nossa suposição esteja correta, vamos dar o seguinte exemplo. Recentemente, nas páginas do Literaturnaya Gazeta [Jornal Literário], um professor da escola modelo em Ulan-Ude foi publicamente ridicularizado. Este sociólogo deu a seus alunos a seguinte caracterização de L. N. Tolstoi: “Tolstoi é um representante da nobreza aristocrática, patriarcal e patrimonial, não absorvida no aparato burocrático da autocracia e que estava condenada a um empobrecimento econômico gradual”. Você pode rir o quanto quiser desta definição, mas o fato é que o professor de Ulan-Ude só repete de forma mais desordenada um dos dogmas de comuns da crítica literária central.


A origem deste dogma é interessante. O falecido V. M. Friche definiu o trabalho de Tolstoi como “realismo da nobreza mundana. Numerosos seguidores de Fritsche começaram a procurar unidades menores dentro desta nobreza, e lá a província passou a escrever. Não há dúvida, no entanto, que o próprio Friche tirou sua definição de Plekhanov. Para Plekhanov, Tolstoi continua sendo “um escritor dos costumes das classes altas”. A personalidade criativa do grande escritor é inteiramente derivada da psicologia do artista-aristocrata. Apenas a busca social de Tolstoi parece a Plekhanov algo que viola este padrão histórico, e ele ataque isto como um capricho de um barão idealista tolo. Se você nasceu barão e foi criado em um ambiente nobre, então escreva sobre viver em propriedades nobres, e aqui se tem um grande artista. Mas, pelo amor de Deus, não brinque com sua crítica da civilização burguesa, pois do socialismo não entendes nada. Afinal, esta é a ideia principal dos artigos de Plekhanov sobre Tolstoi, assim como toda sua sociologia da literatura: “Cada macaco no seu galho”(2).


Lenin aborda a questão da obra de Tolstoi de maneira diferente. Para Plekhanov, as obras do grande escritor russo foram outra ilustração da regra geral — o ambiente social do qual o artista saiu influencia sua psique e direciona seus interesses. Para Lenin, a fórmula materialista “ser define a consciência” tem um significado mais profundo. Ele não busca em Tolstoi os traços psicológicos da vivência cotidiana de certo estrato social; em sua análise, ele não procede do ser econômico da nobreza, mas do ser social no amplo sentido histórico, das relações e lutas de todas as classes da sociedade.


Qual o significado de Tolstoi? “Sua importância mundial como artista”, escreveu Lenin, “reflete à sua maneira a importância mundial da revolução russa, tanto como pensador quanto como predecessor”(3). Isso foi o que Lenin escreveu em 1910. Que diferença em relação à avaliação geral de Tolstoi nos artigos de Plekhanov! Ali tínhamos um escritor de berço nobre, aqui está um artista, em cujas obras a voz da história mundial pode ser ouvida. As obras de Tolstoi trazem o selo do drama objetivo da revolução russa. Eles são um processo natural, um reflexo da força e fraqueza do movimento de massas camponesas e, além disso, em um país que abre a perspectiva de romper o injusto modo de vida secular na Ásia, o berço da humanidade. “De quem foi o ponto de vista refletido na narrativa de L. Tolstoi?”, pergunta Lenin em Tolstoi e Luta Proletária, “Através de sua boca falou-se toda a massa dos milhões de russos, que já odeiam os senhores da vida moderna, mas que ainda não chegaram a uma luta consciente, firme, irreconciliável contra eles”.(4)


Um artista-aristocrata pode refletir o movimento popular em seu país? Do ponto de vista de Plekhanov, tal pensamento é equivalente a uma rejeição do marxismo. E de fato, esta visão das obras de Tolstoi é firmemente incompatível com o marxismo dogmático da Segunda Internacional. Plekhanov compreendia a dependência da literatura em relação à vida social como dependência psicológica do artista em relação ao seu ambiente. Este aspecto da compreensão materialista da história é desenvolvido por ele de forma tão unilateral que ofusca o fato histórico fundamental de que a arte e a literatura são o reflexo da realidade externa, o espelho da prática humana objetiva e multilateral. Enquanto isso, esta totalidade é o fato inicial para Lenin em sua análise da obra de Tolstoi.


A unilateralidade da “sociologia da arte” de Plekhanov teve, e continua a ter, a mais triste influência na história da literatura e da crítica de arte nos dias de hoje. Este é o esquema absolutamente sóbrio, que está sempre na linguagem da sociologia vulgar, intoxicado pela facilidade de seu sucesso. Todo artista — diz a posição original desta sociologia — apenas coloca em ordem as vivências psicológicas originais que lhe são impostas por seu próprio ambiente, educação ou pelos interesses de seu grupo social. Tais vivências ocorrem involuntariamente, automaticamente, como uma sensação de dor quando se corta o dedo. Cada classe leva sua própria vida espiritual — é triste, feliz, preocupada com sua saúde (lembre-se das críticas de Molière aos médicos) e geralmente sucumbe a uma variedade de humores. A arte só reorganiza os humores de sua classe em reservatórios especiais chamados obras de arte. Neste sentido, cada artista tem sua própria insanidade. Ele não pode ser persuadido nem dissuadido e, a rigor, não vale a pena nem mesmo elogiar ou repreender. Ele é um produto psicológico legítimo de seu meio. Afinal, cada um só pode expressar seu ser, a existência de sua classe, seu grupo, sua camada. Quanto mais forte for a ligação do artista com sua própria mediocridade, mais precisa será nossa análise. De uma forma ou de outra, esta é a maneira como numerosos representantes da sociologia contemporânea da arte e da literatura raciocinam, imensamente mais consistentes na direção que adotaram do que Plekhanov.


O que é literatura? Um reflexo da realidade, um quadro do mundo objetivo ao redor do artista, sua classe, seu estrato social? De forma alguma. A literatura é uma forma especial de “ideologia de classe, expressando em imagens o conhecimento de classe da realidade, servindo às tarefas de autoafirmação de classe…”(5). Esta explicação é dada ao leitor por nossa “Enciclopédia Literária”. Assim, o conteúdo da literatura não é tirado do mundo exterior, mas das profundezas de uma certa psicologia de classe. Alguns historiadores da literatura foram ainda mais longe neste caminho e concluíram que o artista não pode retratar nada além de sua classe. Se Gogol escreveu sobre os cossacos, para um olhar perspicaz, não são cossacos, mas pequenos nobres vestidos com pergaminhos e jupanas, como o próprio Gogol.


Cada peça de literatura torna-se assim um telegrama criptografado, e toda a história da arte mundial uma coleção de hieróglifos e sinais simbólicos, por trás dos quais se esconde um certo significado de classe. Precisamos desvendar estes hieróglifos, determinar seu equivalente sociológico. Daí a característica da sociologia vulgar que é mais frequentemente marcante é sua paixão espontânea por revelações O sociólogo se esforça para apanhar o escritor em flagrante no momento em que ele desliza sem querer, revelando as velhas tendências de sua consciência de classe. Se, por exemplo, Julieta em Shakespeare exclama: “Oh, meu coração está falido!”, o perspicaz mestre de um tipo de pseudo-psicanálise certamente se utilizará disso para ligar o grande dramaturgo aos interesses dos comerciantes londrinos, os nobres comerciantes ou latifundiários burgueses.


O leninismo na história da literatura e da crítica não tem nada a ver com tal análise sociológica ou, melhor dizendo, com adivinhações. As pessoas são lúcidas, sua consciência não é apenas um traço psicológico de algum ponto de vista subjetivo. Ela fornece uma imagem do mundo objetivo ao nosso redor, reflete nossa realidade externa. Escritores e artistas a retratam em uma forma mais ou menos verdadeira, mais ou menos artística. A principal insuficiência dessa forma sociológica é que ela substitui a teoria do reflexo de Lenin pelo simbolismo de classe e, neste ponto crucial, rompe com o marxismo.


Mas como combinar a teoria do reflexo com o ponto de vista da classe? — é o que se pergunta um sociólogo vulgar. Se a literatura reflete a realidade externa, o que resta da análise de classe? Estes receios reiteram inteiramente o que os chamados economistas, e mais tarde o próprio Plekhanov no jornal menchevique Iskra [Faísca], disseram em seu tempo sobre a obra O que Fazer?, de Lenin. O leitor deve ser lembrado que eles acusaram Lenin de idealismo e esquecimento da natureza classista da consciência.


O marxismo dogmático entende a análise de classes como o estabelecimento de tipos sociopsicológicos e estilos de pensamento nativos, igualmente verdadeiros em termos de suas próprias classes e igualmente errôneos em termos de classes opostas. O sociólogo só explica estes tipos, e suas explicações se resumem, em última análise, à filosofia do Dr. Pangloss: “Tudo está como está, e não pode haver outra maneira além disso”.


O conceito da ideologia das diferentes classes nas obras de arte em Lenin é completamente diferente. A natureza de classe dos fenômenos espirituais é determinada em sua base não por sua matiz subjetiva, mas pela profundidade e fidelidade da compreensão da realidade contida neles. Portanto, a matiz subjetiva da própria ideologia de classe é retirada do mundo objetivo. Ela é a conclusão, a conclusão no mais alto grau de dedução e não o ponto de partida. O homem capaz de elevar-se ao ódio pela opressão e pela falsidade em todas as manifestações da vida social em sua época torna-se um ideólogo da classe revolucionária. O homem, que está completamente imerso em seu ser particular, em sua tradicional estreiteza de visão, permanecerá sempre sob o poder das ideias, crenças e preconceitos que resultam dos interesses das classes reacionárias.


Em contraste com o marxismo dogmático, Lenin conseguiu mostrar que a consciência de classe não surge automaticamente. Ideólogos de uma certa classe não nascem, mas se tornam. Assim, a ideologia proletária, ou seja, o marxismo, não é um simples aprofundamento da psicologia do trabalhador, e não pode ser considerada uma consequência direta da vida fabril. A verdadeira consciência de classe é elaborada apenas a partir da observação de todas as classes da sociedade na totalidade das manifestações de vida dessas classes, sejam elas intelectuais, morais ou políticas. A ideologia proletária surge nesta mesma esfera de interrelação de diferentes classes da sociedade, é uma conclusão lógica de toda a prática histórica da humanidade, resultado do desenvolvimento da filosofia, da economia política, do socialismo.


Por outro lado, do ponto de vista da sociologia burguesa, que toma algumas de suas teses da literatura marxista, a ideologia de classe tem um caráter mais puro se for cega e isolada dentro de si mesma, enquanto é mais limitada e ignorante do mundo que a rodeia. Sim, não há dúvida de que qualquer limitação acaba levando à proteção de certos interesses de classe, ou seja, interesses da reação. Mas as próprias massas trabalhadoras permanecerão sob o poder da ideologia reacionária das classes dominantes enquanto não entenderem a realidade social ao seu redor e através do mundo exterior não chegarem a uma compreensão de seu próprio papel histórico, ou seja, de sua autoconsciência de classe. Lenin diz:


O conhecimento do ser humano não é (respective não segue) uma linha reta, mas uma linha curva, que se aproxima infinitamente de uma série de círculos, de uma espiral. Qualquer fragmento, pedaço, bocadinho dessa linha curva pode ser transformado (unilateralmente transformado) numa linha autônoma, completa, reta, que (se por trás das árvores não se vir a floresta), então, conduz ao pântano, à padralhice (em que o interesse de classe das classes dominantes é fixa).(6)


O espírito revolucionário consciente e a defesa consciente ou inconsciente do obscurantismo e da falsidade são antíteses muito importantes em si mesmas, mas insuficientes. Além da oposição de classe direta e clara, sempre houve uma massa de pessoas que já se revoltaram contra seus opressores, mas ainda não chegaram a uma luta consciente e consistente. Esta confusão objetiva de classes, esta falta de separação de classes (como na Rússia entre 1861 e 1905, na França e na Alemanha entre 1789 e 1848) e as flutuações resultantes na própria massa do povo nos explicam melhor as contradições dos grandes escritores, artistas, humanistas do passado. A mistura de características revolucionárias e reacionárias na mente dos melhores representantes da cultura antiga é um certo fato histórico. Os ideais revolucionários raramente eram refletidos de maneira direta na literatura. Rompendo com os fundamentos seculares da velha sociedade, as mentes mais nobres ainda não conseguiram encontrar soluções para as complexas contradições da história humana no mundo exterior ao seu redor. Daí a capitulação interna dessas pessoas à religião e à moral tradicional, daí a consolidação desta capitulação pelos interesses das classes dominantes.


Se Tolstoi apenas expressasse a psicologia da aristocracia em declínio, se Pushkin apenas comemorasse as alegrias e dificuldades dos latifundiários burgueses, então a história da literatura não diria nada sobre eles, assim como não diz nada sobre os milhares de Mitrofanovs literários e os escritores da tendência Ojrankista(7). Existem, no entanto, outros casos. “Se há realmente um grande artista à nossa frente”, diz Lenin, “então pelo menos alguns dos aspectos essenciais da revolução ele teve que refletir em suas obras”.(8) E vemos na interpretação de Lenin, como o grande artista conquista as limitações psicológicas de seu ambiente, torna-se um porta-voz do sofrimento e raiva de milhões de pessoas. Tolstoi transferiu para suas obras a psicologia da democracia camponesa primitiva, originalmente alheia a ele. Este foi o verdadeiro equivalente social de sua criação artística, uma fonte de ascensão espiritual do grande escritor. Por outro lado, a psicologia patriarcal deixou sua marca de rudeza em todo o movimento camponês (1861–1905). Quando o camponês russo quis expressar em sua própria língua a ideia da socialização da terra, ele disse: “A terra não pertence a ninguém, a terra pertence a Deus”. Aquele camponês patriarcal não poderia encontrar melhor porta-voz para sua vacilação do que Tolstoi.


É com critérios semelhantes de luta de classes que Lenin conceituou Herzen. “O colapso espiritual de Herzen, seu profundo ceticismo e pessimismo após 1848 foi o colapso das ilusões burguesas no socialismo. O drama espiritual de Herzen foi o nascimento e o reflexo daquela época histórica mundial, quando a democracia burguesa revolucionária já havia morrido (na Europa) e o proletariado socialista revolucionário ainda não havia amadurecido”.(9)


E no mundo capitalista de hoje há muitas pessoas que já se decepcionaram com a democracia burguesa, mas ainda não chegaram à democracia proletária. As hesitações de milhões de pessoas se refletem nas buscas artísticas de uma ampla variedade de escritores ocidentais, cuja posição de classe é determinada, em última instância, por sua atitude em relação às principais forças combativas de nosso tempo, ao problema central da época, à questão da propriedade e do poder.


Disto é evidente que esta forma tão difundida entre nós de descrever as aspirações dessas pessoas com base na psicologia desta ou daquela pequena camada intermediária da classe burguesa não responde às demandas do leninismo. Em nossos livros didáticos, Anatole France ainda figura como o ideólogo da burguesia média, Romain Rolland como um humanista pequeno-burguês e assim por diante. A classificação desses tipos psicológicos obscurece completamente para muitos críticos a questão principal da atitude do escritor em relação à revolução. Aqui a sociologia vulgar se funde diretamente com o “sectarismo presunçoso” na Internacional Comunista.


Voltemos, entretanto, à questão dos clássicos da literatura mundial, porque os autores de livros didáticos e outras obras destinadas à leitura instrutiva os tratam como representantes do velho mundo da maneira mais impiedosa. Segundo essa literatura, as obras de Pushkin, Gogol, Tolstoi devem ser entendidas a partir dos assuntos internos da nobreza russa, do empobrecimento ou degeneração burguesa dessa classe. A história da literatura ocidental faz o mesmo em relação a Shakespeare, Moliere, Goethe. Mas tudo isso desvaloriza a história artística da humanidade, e toda essa campanha sociológica contra ela é decisivamente diferente da análise de classe real, que torna possível apresentar tudo o que é verdadeiramente grande na história da arte e mostrar sua conexão com os elementos democráticos e socialistas da velha cultura. O leninismo ensina-nos a capacidade de compreender o conteúdo histórico do património artístico para separar nele o que é vivo do que é morto, e o que pertence ao futuro do que é a marca do passado servil.


Aqui chegamos à principal falha de nossa escola sociológica. Pessoas que escrevem e falam tanto sobre análise de classes não entendem nada sobre a verdadeira luta de classes. Essencialmente, eles separam a luta de classes do socialismo. Todos os absurdos da sociologia vulgar baseiam-se não no conceito de classes de Lenin, mas no conceito burguês-menchevique de classes.


O que, de fato, fazem os historiadores literários que estão entusiasmados com esta mania sociológica? Buscam os grupos de elite irrelevantes da burguesia e da nobreza a quem atribuir as criações de Shakespeare ou Balzac Se acreditarmos em nossos sociólogos, toda a história da arte universal expressa a pequena luta por um pedaço de carne entre os diferentes tipos de parasitas. E este é o conteúdo principal da luta de classes? E onde estão as principais contradições de classe de cada época histórica? Onde está a luta milenar entre o topo e a base? Para onde foi o povo? Estas perguntas são feitas em vão. Não há nada semelhante nos esquemas históricos de nossos sociólogos. O máximo que podem fazer é elogiar a burguesia “progressista”, “jovem”, “em ascensão”, “fortalecedora”, “madura”. Assim, pode-se ver que a sociologia vulgar e não vulgar (à sua maneira) trabalha para arrancar a arte do povo. A poesia de Pushkin torna-se patrimônio dos proprietários de terras burgueses, as obras de Gogol vão para a pequena nobreza latifundiária e outros escritores antigos não podem reivindicar nada melhor.


Podemos ser informados que o povo tinha pouca ou nenhuma expressão direta na arte do passado. Até certo ponto, isto é verdade, mas não significa que a arte e a literatura se desenvolveram sem a influência da maior parte da humanidade. Saltykov-Shchedrin está mais próximo de Lenin do que dezenas de nossos marxistas. Ele escreve: “Além das forças do bem e do mal, há também um conhecido ambiente passivo na sociedade, que serve principalmente como uma arena para todo tipo de influência. Não é possível desconsiderar esse meio, mesmo que o escritor não tenha outras reivindicações além de coletar materiais. Muitas vezes não há uma palavra sobre isso e, portanto, parece que foi riscado, mas esta risca é imaginária, na verdade, a representação deste ambiente passivo nunca deixa a mente do escritor. É apenas este meio em que ‘o homem que come quinoa’ se esconde. Ele vive ou apenas se esconde? É minha opinião que embora ele se esconda de preferência, ele ainda vive um pouco”.


O homem que se alimenta de quinoa é um camponês, uma estranha criatura que La Bruyere notou da janela de sua carruagem, uma incompreensível criatura sofredora, que, segundo Montaigne, difere do rei apenas pela forma de suas calças. Como podemos dizer que a literatura se desenvolveu sem a influência do camponês, do trabalhador, do soldado que voltou dos campos da guerra imperialista? Lembre-se com que persistência Lenin rejeita os sociólogos “veji”(10) que tentaram separar a literatura russa e as críticas do século XIX do estado de espírito dos servos. Sabemos pelo exemplo de Tolstoi que as buscas espirituais do grande escritor, emergido do meio nobre, conseguiram refletir as contradições da vida das massas populares. Mesmo autores democráticos do século XVIII, como Vico, Winkelmann, Fergusson e Herder, apontaram com razão as verdadeiras raízes populares da arte, a degeneração da criatividade artística em todos os lugares onde pessoas dotadas, perdendo contato com a base democrática da cultura, se tornaram um componente ideológico da classe dominante (como Marx expressou em “Teorias da mais-valia”). Esta crença, característica de todos os pensadores revolucionários do passado, inspirou Belinski quando escreveu sua carta a Gogol. E o mesmo pensamento em seu desenvolvimento posterior foi a base dos artigos de Lenin sobre Tolstoi. “A arte pertence ao povo”, disse Lenin a Clara Zetkin. “Ela deve lançar suas raízes mais profundas nas grandes massas trabalhadoras. Deve ser compreendido por essas massas e apreciado por elas.”.(11) Um verdadeiro reflexo da vida e um caráter popular são dois critérios fundamentais da crítica leninista, dois lados de uma mesma totalidade.


A luta de classes na literatura é a luta do povo contra a ideologia da dominação e da escravidão, contra a inexpressividade religiosa, a brutalidade primitiva, a vilania refinada e o servilismo obsceno. E inscrever este ponto de vista de classe ao longo de toda a história da arte não significa de forma alguma que devemos classificar as obras de arte nas prateleiras de acordo com os diferentes grupos sociais. Isso significa submeter o legado do passado a uma análise real e concreta e, tendo apreciado tudo o que nele há de grande, compreender tanto as contradições da história da arte quanto seus graves desvios, para julgá-las do ponto de vista da posterior demarcação mais clara das classes, do ponto de vista da luta proletária contemporânea.


A chamada sociologia, uma explicação sem alma que nos é apresentada sob o disfarce da análise de classe marxista, está muito mais próxima dos últimos produtos do pensamento burguês moderno (por exemplo, da “sociologia do conhecimento” alemã) do que do leninismo. Ele rompe com a melhor tradição de crítica democrática russa — a tradição de Belinski, Tchernichevski e Dobroliubov. Existe uma certa discrepância entre o marxismo criativo, que está na base das conquistas da Revolução de outubro, e a tediosa escolástica aparentemente marxista, que ainda prejudica nossa imprensa. Você pode chamá-lo de acúmulo de críticas ou o que quiser — o fato permanece. Existe o marxismo dogmático e o marxismo criativo — vivo, versátil, desprovido de quaisquer limitações professorais ou sectárias, totalmente imbuído do espírito da dialética revolucionária. Nós nos baseamos neste último, isto é, com base no leninismo. Mas em nossas críticas literárias, em artigos de revistas e livros sobre a história da literatura, esta continua sendo, muitas vezes, uma simples afirmação.


Devemos trabalhar nisso para dominar a arte de ler e escrever no espírito do leninismo.


Por Mikhail Lifschitz, publicado originalmente no “Literaturnaya Gazeta”, em 1936


Tradução de Bruno Bianchi, disponível no marxists.org


NOTAS

(1) No momento, o autor mostra uma atitude diferente em relação aos aqui citados. A unilateralidade da polêmica não merece aplausos, embora essa unilateralidade faça parte do processo da vida. O que era, era (nota do autor incluída na reedição de 1986).


(2) No original, em tradução literal, algo como “Todo grilo conhece seu forno”. A expressão vem do fato de grilos se esconderem à noite na boca do forno nas casas russas devido ao clima mais ameno. A expressão é usada geralmente para indicar que alguém deve saber seu lugar e não se envolver em assuntos que não lhe dizem respeito (N.T.).

(3) Lenin, V. I., L. N. Tolstoi.

(4) Lenin, V. I., Tolstoi e a Luta Proletária.

(5) Enciclopédia de Literatura, tomo 6, Moscou, 1932.

(6) Lenin, V. I., Cadernos Filosóficos, São Paulo: Boitempo, 2018, p. 336–7.

(7) A Tendência Ojrankista foi um movimento literário que surgiu no século XIX. O conteúdo da prosa Ojrankista foi direcionado para a defesa dos valores aristocráticos, do patriarcalismo e, em geral, de todo o modo de vida que existia antes da libertação dos camponeses da servidão.

(8) Lenin, V. I. Lev Tolstoi, espelho da revolução russa.

(9) Lenin, V. I., Em memória de Herzen.

(10) Veji: uma coleção de artigos da intelligentsia burguesa liberal, publicada sob o título “Coleção de artigos sobre a intelligentsia russa”, com autores como N.A. Berdiaev, S.N. Bulgakov, P.B. Struve, e outros. Veji expressa a posição da burguesia liberal após a revolução de 1905 que declarou guerra ao materialismo filosófico, defendeu a restauração da visão mística do mundo e a defesa de instituições hostis ao povo enquanto rejeitava tudo relacionado ao movimento democrático de massa.

(11) Zetkin, C., Sobre Lenin: memórias e encontros.



Nota dos editores: nem todas as posições expressas neste texto ou pelo autor condizem necessariamente e/ou integralmente com a linha política de nosso site ou da União Reconstrução Comunista.



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