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"Sobre a Marcha e o Samba"



Os gêneros de música urbana reconhecidos como mais autenticamente cariocas – a marcha e o samba - surgiram da necessidade de um ritmo para a desordem do Carnaval.


Até os primeiros anos do presente século, as músicas cantadas no Carnaval tanto podiam ser os velhos estribilhos de sabor africano divulgados pelos antigos ranchos da Saúde, ou pelo cucumbis e afoxés de escravos, como as poucas, modas sertanejas e até as valsas dos brancos, lançadas durante o ano em partituras para piano.


Isto se dava porque o Carnaval, mal saído do entrudo – que não levava em conta a música, mas a brincadeira grossa de molhar os passantes com seringas d’água –, ainda não possuía qualquer organização.


Foram os ranchos que, ao adotarem a formação das procissões religiosas, instituíram um mínimo de disciplina em meio ao caos do Carnaval sugerindo desde logo à Maestrina Chiquinha Gonzaga , em 1899, motivo para a marcha Ó Abre Alas, declaradamente inspirada na cadência que os negros imprimiam à passeata enquanto desfilavam cantando suas músicas “bárbaras”.


De saída, porém, é preciso notar que, embora criada cerebrina mente por uma compositora da classe média, nesse ano de 1899 , a marcha, para se vulgarizar, teria que esperar pelo menos 20 anos, até que os ranchos carnavalescos – numa curiosa a trajetória de ascensão social – deixassem de ser coisa exclusiva de negros para admitir a mestiçagem e o semi-eruditismo de músicos que os transformariam em verdadeiras orquestras ambulantes.


Assim, como explicar que, pela necessidade de encontrar um ritmo para uma festa de rua, as primeiras camadas urbanas modernas do Rio de Janeiro tenham chegado a essa criação de dois gêneros de música a marcha e o samba? Foi assim.


Aparecidos os ranchos de Carnaval no Rio de Janeiro por volta de 1870, quando entre a população branca grupos de portugueses andavam ainda pela cidade malhando bumbos no Zé-Pereira, e nacionais da classe média dançavam polcas e schottisches pela rua, o Carnaval carioca passou a sentir os efeitos do adensamento súbito da sua população. A liberação da mão de obra escrava, com a decadência do cultivo do café no vale do Paraíba, do lado Fluminense, e a formação das primeiras empresas industriais, passaram a diferenciar a população, criando toda uma gama de distinções sociais. Havia os escravos, e logo os ex escravos, igualados a massa dos trabalhadores braçais, formando a classe baixa; os artífices, empregados do comércio e o pessoal subalterno dos serviços públicos, oficiais ou particulares, constituindo uma baixa classe média; os pequenos comerciantes e os burocratas compondo a classe média propriamente dita e, finalmente, os doutores e os grandes comerciantes constituindo a precária burguesia, cuja elite era representada pela minoria dos donos de terras e pelos capitalistas e proprietários em geral.


Essa diversificação vinha pôr em relevo, no Rio de Janeiro, o problema da participação de camadas novas numa festa que, pelo menos desde meados do século, se havia estruturado num esquema rígido: as camadas baixas “jogavam o entrudo”, atirando-se farinha e água suja na cara, em plena rua, num vale-tudo brutal; as famílias burguesas assistiam aos bailes de máscaras nos teatros, enquanto os homens, particularmente, filiavam-se às grandes sociedades, onde os desfiles de carros de críticas lhes permitiam manifestar um pensamento político precariamente atendido pelas eleições roubadas.


Assim, os elementos que vinham compor a baixa classe média e engrossar a classe média propriamente dita teriam que ficar de fora, não fora a reestruturação do carnaval vir dar vez a todos. Os pretos, igualando-se na sua condição de trabalhadores urbanos a brancos e mestiços de profissões não qualificadas, iam formar então os cordões que só guardavam dos ranchos a forma processional e as figuras do porta-estandarte e do mestre-sala; a gente miúda passaria a dominar os ranchos, matando suas últimas sobrevivências folclóricas com a novidade dos instrumentos de sopro e a execução de trechos de óperas; a classe média se organizaria em blocos formados por vizinhos de uma mesma rua ou bairro, a fim de brincar “em família” nas batalhas de confete circunscritas a ruas fechadas, onde as moças podiam evoluir ao som das músicas sob as vistas atentas dos papais.


Ora, é de concluir-se que, com essa nova organização, alcançada nos primeiros anos do presente século, as musicas feitas para dançar de par – como as polcas e as valsas – teriam mesmo que tornar-se anacrônicas, quando o estilo de passeata de ranchos, blocos e cordões estava pedindo um ritmo marchado, necessariamente binário, com acentuação do tempo forte, e cuja marcação deveria facilitar o avanço da massa dos foliões.


Para os antigos ranchos criados pelos baianos da zona da Saúde, na área dos trapiches do porto, e agora integrados pela pequena humanidade dos pretos, mestiços e brancos situados logo acima da ralé, o problema de uma música própria não constituiu dificuldade. Era dessa camada que, desde meados do século XIX, saíam os músicos das bandas militares e dos conjuntos dos chamados chorões, que durante o ano faziam o papel de orquestra de pobre, animando festas de casamento, de aniversário e batizado por toda a cidade, com suas flautas, violões, cavaquinhos e oficlides. Atraídos para os novos ranchos, esses músicos – muitos dos quais eram capazes de ler na pauta – emprestaram o seu estilo chorado à lenta evolução dos desfiles, cada vez mais presos à complicação de enredos que obrigavam ao uso de carretas. Foi por isso – por essa preocupação de valorizar a sua condição de “músicos”, através da execução de peças “difíceis” (trechos de óperas e canções italianas, principalmente) – que as orquestras dos ranchos não desenvolveram a invenção da marcha de ritmo vivo de Chiquinha Gonzaga, mas evoluíram, pela languidez mestiça do estilo, para uma forma de marcha cadenciada e dolente, mais tarde fixada como gênero sob o nome de marcha-rancho.


Nos cordões, porém, onde se reuniu a massa heterogênea das camadas populares, a solução teria que ser outra. Os cordões eram compostos por gente sem o mínimo poder aquisitivo, o que desde logo excluía a possibilidade de aparecer alguém com um instrumento que não fosse de percussão. Uma flauta e um violão custava dinheiro, mas uma barrica e um couro de cabrito para um surdo, um tambor ou uma cuíca não eram tão difíceis assim de conseguir.


Essa circunstância, aliada ao fato de os cordões – liderados quase sempre por capoeiras e desordeiros – terem partido desde logo para a adoção de estribilhos e quadrinhas soltas, de ritmo algo batucado, como a famosa


“Oi trepa Antônio,

Siri está no pau...”,


Preparou o aparecimento do novo gênero de música que, pela esquematização do seu ritmo, serviu não só a esses foliões de pé descalço, mas também à gente da classe média, quando a proliferação das orquestras tipo jazz band e os bailes de salão vieram aparar-lhes as asperezas.


Até o aparecimento do samba, em 1917, como gênero de música cultivada conscientemente, o carnaval carioca refletiu de maneira mais transparente as contradições expressas na confusão que resultava da maneira indecisa pela qual as novas camadas procuravam enquadrar-se na “festa do povo”.

Assim foi que, no início do século, enquanto os ranchos já modernizados desfilavam evoluindo lentamente ao som de músicas dolentes, e a gente da camada baixa berrava estribilhos anônimos de batuques, ou cantava chulas e quadrinhas soltas como,


“Eu vô bebê

Eu vô me embriagá

Eu vô fazê barulho

Pra polícia me pegá”


o grosso da gente média continuava a divertir-se cantando, indistintamente, a marcha Ó Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga, o tango-chula Vem Cá Mulata, de Arquimedes de Oliveira, a polca No Bico da Chaleira, do Maestro João José da Costa Junior, ou até – como aconteceu em 1913 – um one-step intitulado Caraboo, lançado pouco antes no palco do Teatro São Paulo, em versão brasileira, sob o título de Ó Minha Carabu.


Esperava-se por aí, pois, às vésperas da Primeira Grande Guerra, e embora as diferentes classes sociais do Rio já pudessem dar-se ao luxo de se divertir em três diferentes carnavais – o dos pobres na Praça Onze, o dos remediados na Avenida Central (hoje Rio Branco) e o dos ricos nos corsos com automóveis e nos grandes clubes –, a grande festa ainda não tinha descoberto o ritmo capaz de conferir-lhe um denominador comum musical.

Foi quando na Rua Visconde de Itaúna, 117, na casa de Tia Ciata, uma das baianas pioneiras dos velhos ranchos da Saúde (e fundadora, ela mesma, do rancho Rosa Branca), um grupo de compositores semi-alfabetizados elaborou um arranjo musical com temas urbanos e sertanejos que, ao ser lançado para o carnaval de 1917, acabou se constituindo no grande achado musical do samba carioca.



É importante notar que, quando o primeiro samba com ritmo de samba surgiu na casa da Tia Ciata, como obra coletiva de um grupo de velhos foliões baianos, e de gente da moderna baixa classe média carioca (caso de Donga e do compositor e pianista Sinhô, diretamente ligados ao aparecimento do novo gênero, inicialmente ainda muito preso ao maxixe), a geração de antigos trabalhadores da zona portuária da Saúde tinha evoluído muito, e o próprio baiano Hilário Jovino, animador dos mais antigos ranchos, havia comprado o título de tenente da Guarda Nacional.

Assim, quando o compositor Ernesto dos Santos, o Donga, correu em dezembro de 1916 a registrar na Biblioteca Nacional, sob o número 3.295, a composição intitulada Roceiro, destinada a fazer sucesso no carnaval do ano seguinte com o nome Pelo Telefone, levando no selo do disco a indicação “samba”, esse pequeno fato e a subsequente polêmica em torno da sua esperteza iam revelar uma curiosa particularidade: o novo gênero de música urbana não nascia mais anonimamente, mas entre pessoas que tinham consciência de constituir a sua criação uma coisa registrável.


Esse característico – que comprova, desde logo, mais do que a origem não folclórica do samba carioca, a sua própria filiação não de todo popular – seria acentuado pelo fato de o compositor resposável pela fixação da música em sua primeira fase, o mulato Sinhô, apresentar-se já como pianista profissional, ligado a clubes de dança pagos, a casas de música e companhias de discos.


Realmente, quando em 1916 surgiu na Cidade Nova a verdadeira colcha de retalhos de estribilhos (inclusive folclóricos) revestidos do novo ritmo do samba, a casa da baiana Tia Ciata era o ponto de reunião da gente mais hetoregêna possível.


Ao contrário do Café Paraíso, na Rua Larga, quase esquina da Rua Regente Feijó, e de outros bares do Rio frequentados por bambas das camadas mais populares da zona velha da cidade, a casa da doceira Tia Ciata não recebia apenas macumbeiros e boêmios, mas profissionais (marceneiros, alfaiates), pequenos funcionários públicos, repórteres (como Mauro de Almeida, o Peru dos Pés Frios, autor da letra com que foi registrado o samba Pelo Telefone), baianos bem-sucedidos no Rio, como o Tenente Hilário Jovino Ferreira, e representantes da primeira geração de compositores profissionais cariocas, tais como Sinhô e Caninha.


Assim, não é de se estranhar que, quando o samba Pelo Telefone estourou como sucesso popular, no carnaval de 1917, a luta em torno da sua autoria e a posterior exploração do novo gênero tenha colocado em campos opostos o carioca Sinhô – que acabaria recebendo mais tarde o título de Rei do Samba – e os baianos da casa da Tia Ciata, tendo à frente o líder Hilário Jovino Ferreira, que chegou a desafiar o pianista, pelos jornais, para um torneio de samba de improviso.


Contemporâneo do disco e do teatro de revista eminentemente musical, o samba nascia com o destino de passar às mãos dos compositores profissionais – que logo seriam Sinhô, Careca, Caninha, Donga, Pixinguinha, etc. –, e isso explica o seu estilo amaxixado dos primeiros tempos. Embora de origem popular, o samba começava logo corrompido pelo vício de execução dos integrandes de orquestras das gravadoras e do teatro musicado, àquela época impregnados do ritmo do maxixe, e começando a deixar influenciar-se pelos novos gêneros americanos do one-step, do ragtime, do black bottom, etc.


O fato é que, divulgada a novidade musical através do sucesso do samba Pelo Telefone (onde a intromissão da classe média ficava clara a partir da letra ironizando a repressão policial à jogatina), o samba ia acabar em pouco tempo não apenas com a polca e as chulas, mas com as toadas sertanejas estilo Caboca de Caxangá, e com a voga de motivos nordestinos tipo O meu boi morreu, indicadores da presença da massa de emigrantes nordestinos servindo de massa flutuante de mão-de-obra no Rio.


A partir de 1918 - embora ainda nesse ano rivalizando com a marcha portuguesa A baratinha, e com o cateretê O matuto, do compositor paulista Marcelo Tupinambá – o samba não deixaria mais de figurar como gênero de maior sucesso no carnaval. E, muito significativamente, essa grande carreira do novo gênero urbano, nascido sob signo da apropriação de temas rurais por parte de profissionais do disco e do teatro musicado, ia ter inicio em um samba de Sinhô cuja letra revelava ainda uma vez o triunfo da cidade, ao depreciar os baianos da casa da Tia Ciata com a ironia de título Quem são eles:


“A Bahia é boa terra

Ela lá e eu aqui, iaiá...

Ai, ai, ai,

Não era assim que bem chorava”


Embora os compositores cariocas Pixinguinha e seu irmão China também se tivesse julgado solidariamente atingidos pela ironia de Sinhô, e por isso respondido em 1919 ao Quem são eles? Com o terrível perfil do adversário no samba Já te digo –


“Um sou eu

O outro eu não sei quem é (bis)

Ele sofreu

Para usar colarinho em pé (bis)”


– o certo é que o samba, surgido de um apanhado de temas anônimos, acabaria mesmo ternando-se exclusivo do grupo de elementos populares que, após lutar para usar colarinho em pé, passava a dominar os meios de divulgação da época: as editoras musicais, as casas de música, as gravadoras de discos, as orquestras de teatro de revista, os conjuntos de casas de chope (os “chopes berrantes” por oposição aos cafés-concerto), as orquestras de sala de espera de cinema e, finalmente o rádio.


A criação do samba, entretanto, inicialmente muito preso aos requebrados do maxixe (ao menos como apareciam quando gravados em disco), revelava-se ainda assim um pouco rude ao ouvido das camadas médias, muito mais ligadas a tradição melódica europeia das valsas, schottisches, polcas e mazurcas do que à complicação rítmica herdada dos negros africanos, através dos seus filhos e herdada dos negros africanos, através dos seus filhos e netos, componentes das ultimas camadas da população carioca.


E eis como se explica o fato de, quase contemporaneamente ao aparecimento do samba, ter surgido a marcha carnavalesca.


A marchinha de carnaval carioca, que pela extrema esquematização rítmica permanece praticamente inalterada até hoje, nem chegou, como aconteceu com o samba, a inspirar-se em motivos de tradição popular. Criação típica de compositores da classe média da década de 20, a marcha carnavalesca presentava mais o resultado do impacto das marchas portuguesas divulgadas no Brasil por companhias de teatro musicado nos primeiros anos do século, e depois pelo ritmo do ragtime americano, do que propriamente uma retomada consciente do exemplo dado por Chiquinha Gonzaga em sua composição Ó abre alas, de 1899.


Tal como havia acontecido com o samba, o ritmo da marcha já tinha aparecido, aqui e ali, desde o fim do século passado, em algumas músicas rotuladas de Tango, canção carnavalesca, fadinho, etc., mas foi quando a massa crescente das famílias aderiu os bailes de carnaval com orquestra do tipo Jazz-band que o ritmo ganhou consciência de gênero musical independente.

Tudo se prendia, no fundo, ao fato de, até pelo menos 1920, as musicas não serem feitas exclusivamente para o carnaval, as músicas eram as de todo ano, e só quem produzia com intenção carnavalesca eram os compositores anônimos dos grupos, ranchos, blocos e cordões, quase sempre fazendo glosas aos seus nomes, como era o caso do bloco Tire o Dedo do Aparelho, que ainda no carnaval de 1913 se apresentava cantando tango:


“Toda moça que é dengosa,

Buliçosa,

Queira aceitar um conselho:

Quando vir algum brinquedo,

Tenha medo,

Tire o dedo do aparelho...”


Assim, quando o sucesso do samba Pelo Telefone, lançado por Donga expressamente pra o carnaval, e amparado desde logo na sua gravação em disco pelo cantor Baiano (Odeon, número 121 322), anunciou o advento do novo gênero de música carnavalesca, já três compositores, pelo menos, estavam prontos para lançar a marcha, quase simultaneamente.


Alertados muito provavelmente pelo sucesso da “canção carnavalesca” A baratinha, do português Mário São João Rabelo, cujo estribilho sucesso de carnaval de 1918 –


“A baratinha, iaiá,

A baratinha, ioiô,

A baratinha bateu asas e voou...”


- seria inclusive aproveitado em outro carnaval, mais de trinta anos depois, os compositores Sinhô, Eduardo Souto e Freire Júnior lançaram-se à produção de uma série de marchas: O Pé de Anjo (Sinhô), Pois não (chamada, aliás, impropriamente, de “samba carnavalesco”, pelos autores Eduardo Souto e Filomeno Ribeiro), ambas de 1920, e Ai, amor, de Freire Júnior, de 1921.


A partir de O pé de anjo (por sinal calcada na melodia da valsa francesa divulgada no Brasil com o nome de Geny), mas principalmente a partir de Ai, amor, a marcha estaria fixada como o segundo gênero de musica mais constante no carnaval até pelo menos a década de 70. O samba, criado por compositores populares em fase de ascensão social, ainda se identificaria coma camada baixa, quando o ritmo passou a ser aproveitado, alguns anos depois do Pelo Telefone, pelo grupo de compositores da zona carioca do Estácio, próximo a praça Onze. A marcha, porém, seria sempre uma expressão particular de classe média, e a melhor prova disso está na própria letra da marcha. Ai, amor, do mulato dentista Freire Júnior, autor de revista para teatros da Praça Tiradentes. De fato, o compositor aproveitava exatamente, no plano musical, o tema que garantia a fama do desenhista J. Carlos, responsável pela fixação dos tipos socais da melindrosa e do almofadinha – que nada mais eram, afinal, do que os dois mais refinados produtos da nova classe média urbana carioca surgida na segunda década do século, quando a influencia do cinema norte-americano começava a justificar inclusive a construção do Rio de Janeiro, do centro de diversões intitulada Cinelândia.


Ao contrário das letras estapafúrdias ou imitadoras da linguagem nordestina e caipira, usadas até então em polcas, chulas, tangos e canções carnavalescas, em geral, a marcha de Freire Júnior traçava em sua longa letra de vinte e oito versos os perfis da moça e do rapaz típicos das novas camadas médias do Rio de então, dentro de um espírito crítico que foi sempre o distintivo do intelectual colocado à margem da produção:


“Melindrosinha

Moça chique e vaporosa

Elegante e bonitinha

Perfumada como a rosa.

Namoradeira

Com vontade de casar

Os botões de laranjeira

Nos dão muito que pensar”


E o estribilho, em que se inaugurava definitivamente o ritmo e a cadência da marcha carnavalesca, como até hoje a conhecemos, dizia, com uma delicadeza a que não faltava, sequer, a velha comparação da mulher com a flor:


“Aí, amor

Ai, ó flor

Não me faças sofrer assim

Este mal que não tem mais fim.

Moço bonito

É rapaz bem descolado (i.e., desempregado)

Que por processo esquisito

Ainda chique e perfumado

Este tratante

Dó ré mi saber tocar (jazer dó ré mi: furtar)

Intitula-se estudante

Para as moças embrulhar.

Misteriosa

É mocinha sem vintém

Que também é melindrosa

Sem dizer nada a ninguém.

Veste a capricho,

Anda só, vai ao cinema,

Acerta sempre no bicho

Pra resolver o problema”


Pela primeira vez, dentro de um ritmo bastante estilizado para poder ser aceito sem dificuldades por gente de camadas heterogêneas, desvinculada da tradição popular dos carnavais de pé no chão, um gênero novo de música punha à disposição dos foliões dos bailes de salão e dos blocos formados por vizinhos de rua ou de bairro um tipo de composição com que se identificavam, inclusive pelas letras.


Realmente, a despeito de Sinhô ter contribuído para o gênero em 1922 com a marchinha Sai da raia, de inegável sabor popular no estribilho que cantava –


“Meu bem, não chora,

Arruma a trouxa,

Diga adeus e vá-se embora”


- já em 1923 seria ainda Freire Júnior quem viria acrescentar dois novos toques distintivos à marcha carnavalesca, acabando por configura-la como produto típico de compositores de classe média: o suporte rítmico de frases alternadas, na base de onomatopeias, sem qualquer significado, e o aproveitamento do trocadilho:


“Ó menina venha cá,

Ula lá, ula lá,

Creia em mim e tenha fé

Ole lé, ole lé,

Meu amor é pra ti

Bem-te-vi, bem-te-vi

Não sou coió

Bem-te-vi só...”


Essa obra de identificação da marcha com a classe média seria completada a partir de 1926 (um ano antes da estreia de Lamartine Babo com a marcha: o pianista José Francisco de Freitas, autor da marchinha Eu vi –


“Eu vi

Eu vi

Você beliscar Lili

Lili...”


- e do grande sucesso que foi no mesmo ano outra marcha de sua autoria, Zizinha,

cuja partitura para piano alcançou a tiragem de trinta e um mil exemplares vendidos em todo Brasil.


Fixados que foram os gêneros de música carnavalesca, um pouco antes de 1930, o samba e a marcha, toda a sua evolução posterior só fez acompanhar, passo a passo, a evolução social das classes a que se dirigiam: o samba vacilante de Donga, Sinhô e Caninha, da década de 20, ganhou no Estácio o ritmo batucado com a geração de compositores da camada mais baixa (Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Armando Marçal, Heitor dos Prazeres), enquanto a marcha continuaria praticamente inalterada, por nunca ter atingido realmente a massa, única capaz de acrescentar-lhe alguma novidade.


Com o aparecimento da geração de compositores profissionais dos meios do rádio e das fábricas de discos – Ari Barroso, Lamartine Babo, João de Barro, Noel Rosa, Assis Valente, Haroldo Lobo, Ataulfo Alves e outros -, o samba nascido carnavalesco, foi adaptado pela modificação do seu andamento para o meio do ano sob o nome de samba-canção.


Criado para as orquestras de danças de salão, o samba-canção, entregue ao semi-eruditismo dos orquestradores, foi progressivamente amolengando o ritmo ate transformar-se, no correr da década de 40, na pasta sonora que o confundiu por vezes com o bolero (samba Risque, de Ari Barroso, por exemplo), para gáudio das modernas gerações contemporâneas das “oportunidades da guerra”, responsáveis pelo fenômeno do chamado café-society e pela proliferação das boates.


Como, paralelamente, compositores de camadas populares efetuavam operação contrária, sincopando ainda mais o samba da década de 30 nas caricaturas conhecidas por samba de breque, e alguns compositores isolados, como Nélson Cavaquinho, continuavam a cultivar o samba-canção, mais chegado às fontes populares (isto é, mais samba do que canção), verificou-se depois de um certo tempo a coexistência de vários tipos de samba.


Essa coexistência indicava, é claro, a coexistência de toda uma gama de diferentes grupos na escala social, o que, por sua vez, se explicava pelo advento do progresso industrial, paralelamente à sobrevivência de condições quase feudais em vários pontos do país, com reflexo no Rio de Janeiro.


E foi assim que, quando o samba-canção cultivado pelos compositores profissionais de classe média passou a não comportar mais qualquer evolução formal, pelo esgotamento das possibilidades (ainda foram tentadas hibridações como as sambaladas e os diferentes tipos de balanços inutilmente), surgiu no fim da década de 50, com o movimento denominado bossa nova, a tentativa de sair do impasse, ao nível da classe média de cultura universitária, pelo rompimento puro e simples com a experiência rítmica acumulada ao longo dos anos pelas camadas populares.


Escrito por José Ramos Tinhorão

Do livro “Pequena História da Música Popular” (p. 119-131)









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