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O pensamento de Nelson Werneck Sodré sobre a imprensa e os meios de comunicação no Brasil


Reproduziremos abaixo um texto da obra "A História da Imprensa no Brasil", de Nelson Werneck Sodré, publicada pela primeira vez, em 1966, pela Editora "Civilização Brasileira". Em seis capítulos, o livro de desmesurado fôlego perscruta a história da imprensa neste país, de 1808 até 1966. Portanto analisa a incipiente imprensa colonial, passando pela imprensa da independência — discutindo, aqui, sobre a crise do colonialismo à luz das contradições entre as estruturas burguesas e as estruturas feudais —, chegando a imprensa do período regencial e rematando com uma acurada investigação dos jornais e revistas brasileiros quando das grandes transformações ocorridas na vida política, econômica e social na segunda metade do século XIX e primeira metade do XX. Nesta última parte, Sodré aponta para o declínio da imprensa artesanal e o consequente ascenso da imprensa industrial; noutras palavras, disserta sobre o advento da grande imprensa. Nesse período, começam a surgir, no amplo quadro do desenvolvimento do capitalismo, as empresas jornalísticas de estrutura complexa, que passam a dispor de equipamentos gráficos modernos.

Há de se destacar, também nesta última parte do livro, o esforço deste autor em nos apresentar as ingerências do Imperialismo em nossos meios de comunicação do pensamento. Sodré deslinda o papel-chave das agências de publicidade, que faziam o intermédio entre os monopólios e trustes capitalistas e os gabinetes dos donos dos principais jornais brasileiros, no intuito de adequar as linhas editorias destes últimos aos interesses espúrios (e antipovo) daqueles primeiros. A interferência Imperialista em nossa imprensa também ocorria a partir do poder público brasileiro, no que diz respeito ao fornecimento de papel e de outros produtos importados, como as máquinas, além dos empréstimos, financiamentos, isenções de impostos, favores fiscais e cambiais, etc. — tudo com a assistência do Departamento de Estado norte-americano, é claro. Ainda assim, as aves de rapina instalam, em solo brasileiro, a própria imprensa estrangeira, preparando psicologicamente a opinião pública das massas — e referendando a escalada militarista — para o golpe de 1964, logrando desta maneira o controle dos rumos políticos de nosso país.

Na esteira desta brilhante exposição, notabiliza-se a tese de Sodré acerca da transformação dialética da imprensa brasileira, engendrada pelas ações do Imperialismo: de instrumento de esclarecimento, a imprensa capitalista se transformou em instrumento de alienação, fugindo inteiramente aos seus fins originários. Antes vivia da opinião dos leitores e buscava servi-la; na nova fase — imprensa industrial —, porém, o jornal dispensa a opinião dos leitores e passa a servir, de maneira geral, aos anunciantes.

Além da supracitada edição da "Civilização Brasileira", "A História da Imprensa no Brasil" fora reeditada pela "Grall" (em 1977), "Martins Fontes" (em 1983), "Mauad" (em 1999) e "Intercom/EDIPUCRS" (em 2011). [1] O texto ora reproduzido fora especialmente escrito para a quarta edição (da Mauad); nele, Sodré apresenta os seus pensamentos a respeito da imprensa no Brasil daquela década de 1990, acentuando portanto mudanças as quais não tratou no célebre e original texto.

Sem mais delongas, fiquemos com Nelson Werneck Sodré:

"Da época em que se encerra a análise da imprensa brasileira constante deste livro aos nossos dias, a história — a universal, a brasileira, a da imprensa — acentuou mudanças já em processo (tratadas, portanto, até a 3ª Edição) e mudanças de que ele não tratou. Convém, pois, apontar essas mudanças e situá-las no amplo quadro da época em que vamos vivendo. Ao mesmo passo, e com relevância, outros meios de comunicação assumiram papel destacado e competiram com a imprensa, particularmente aqueles que, utilizando o som e a imagem, alcançaram ampla difusão e preencheram espaços que a imprensa jamais ocupou, em país como o nosso, com alta percentagem de analfabetos e baixo poder aquisitivo caracterizando largas camadas de nosso povo.

De alguns decênios a esta parte, tornou-se comum a referência, por todos os motivos importante, a meios de massa, tratando-se de veículos de comunicação. É preciso, desde logo, compreender e aceitar que a imprensa não é meio de massa, em nosso país. Como, aqui, por imprensa entende-se jornal e revista, é fácil constatar que esses meios não são de uso habitual em parcela numerosa, majoritária mesmo, do nosso povo. Poderíamos, pois, afirmar, a propósito de mudanças na imprensa brasileira, a partir do momento em que se encerrou a história nesse livro, que a mais séria e profunda entre elas residiu na amplitude e alcance dos meios de massa no Brasil. Amplitude e alcance que a imprensa não acompanhou. A primeira mudança, assim, consiste na defasagem entre o desenvolvimento da imprensa e dos chamados meios de massa, em detrimento daquela.

A imprensa, como já ficou analisado aqui, nasceu com o capitalismo e acompanhou o seu desenvolvimento. Ela espelha, atualmente, a ampla crise que caracteriza a atual etapa do avanço do capitalismo. Etapa bem definida, aliás, pelo extraordinário surto e influência dos referidos meios de massa. Como estamos às vésperas de avanço tecnológico de proporções inéditas, nesse terreno, é de crer que profundas mudanças serão operadas nas atividades dos meios de comunicação, sempre em detrimento da imprensa. Mas, se a imprensa nasceu com o capitalismo e acompanhou o seu avanço, esse processo assinala, no Brasil, traços particulares, estreitamente ligados aos aspectos que o avanço capitalista apresentou aqui.

Aquele que mais se destaca, ao nível dos fatos, é o que assinala a diferença, de qualidade e de função, entre a pequena e média empresa, que definiu o início da imprensa industrial, no Brasil, e a dimensão de grande empresa que define, hoje, um jornal ou mesmo, em menor escala, uma revista de grande circulação. Na proporção e no ritmo em que se desenvolvem as relações capitalistas aqui, desenvolveu-se a empresa jornalística. A oficina de um grande jornal moderno, no nosso país, é inteiramente diferente do que era há meio século. A própria redação é diferente, avultando nela o papel daqueles que lidam com o aparelhamento técnico.

O desenvolvimento da imprensa, na fase atual de crescimento das relações capitalistas em nosso país e pelo fato de esse avanço ter concorrido para o aparecimento, a função e a hegemonia dos meios de massa levou ao quadro, que logo se tornou evidente, de ser a empresa jornalística, na maioria esmagadora dos casos, a iniciadora e impulsionadora desses meios de massa, a começar pelo rádio, culminando com a televisão. Gerou-se, aqui, portanto, o conglomerado empresarial agrupando jornal — revista, em alguns casos — e emissora de rádio e televisão. Se esse não foi o quadro geral, deve-se a um traço que já assinala a passagem da imprensa a segundo plano: a menoridade dos jornais no quadro de avanço do capitalismo brasileiro, isto é, a incapacidade financeira de empresas de jornal assumirem — sempre esforçando-se para isso — a dimensão de empresas de televisão. O caráter concentrador do avanço do capitalismo brasileiro, consideravelmente acentuado com a etapa neoliberal em curso, impediu que se generalizasse a composição de agrupamento de jornal e televisão, em alguns casos. A concentração de poder, nos casos em que esse agrupamento ocorreu, foi extraordinariamente agravada e assinalou um traço novo no desenvolvimento da imprensa brasileira. O reflexo e consequência desses traço estão evidentes, hoje.

O processo de concentração teve início, desde logo, no campo da própria imprensa, tomada isoladamente. Há muitos anos não acontece, entre nós, o aparecimento de um grande jornal. Muito ao contrário, o número de grandes jornais reduziu-se acentuadamente. Hoje, são poucos os grandes jornais, no Brasil, como se sabe. E há, até, nesse processo de concentração, inequívoco teor destrutivo, como nos casos de grandes jornais que atingiram o centenário antes de desaparecerem. Outros, também centenários, continuam a circular, mas não são mais do que sombras do que foram. Esse quadro novo, sob muitos aspectos desolador, decorreu, sem dúvida, do fato de que um grande jornal, hoje, é uma empresa capitalista de grandes proporções.

Não está mais ao alcance de qualquer detentor de capital, exige capital de vulto. Para isso concorre, naturalmente, o avanço da tecnologia de imprensa, quando a oficina de um grande jornal parece uma fábrica. Já nem se chama mais oficina, a rigor. Esse avanço tecnológico obrigou, por outro lado, que as empresas jornalísticas se empenhassem em investimentos acima de suas possibilidades normais. A situação financeira delas, por isso mesmo, é periclitante, em casos conhecidos. Se fossem empresas de outra área, estariam liquidadas pelas razões de mercado. Razões que elas defendem com ardor infeliz, todos os dias, atreladas ao neoliberalismo. Como as do condenado que elogia o dono da corda em que será enforcado. Bem disse alguém que o capitalismo tem razões que a razão desconhece.

Seria longo continuar a analisar aqui a relação desigual entre a imprensa e os meios de massa, mesmo quando a análise fosse limitada ao quadro brasileiro. Cumpre-nos, apenas, tratar aquilo que ficou limitado à imprensa, neste último meio século e em nosso país. O primeiro sinal a assinalar as mudanças ocorridas esteve, como já foi mencionado, no desaparecimento de numerosos jornais e revistas. Desaparecimento que acompanhou, na área da imprensa, o processo de oligopolização ocorrido na economia. Nossa economia não apenas sofreu da tendência à concentração, que foi dominante na área econômica mundial, aprofundando a fisionomia de um parque industrial dominado por pequeno número de empresas, ela destacou, nesta última fase, o oligopólio como forma dominante. Interessante frisar o contraste aparente e paradoxal entre a política antimonopolista apregoado pelos pretensos reformadores e a acentuação do papel e espaço dos oligopólios. Não espanta, portanto, que esse processo — o de concentrar as áreas produtoras em pequeno número de empresas — atingisse a imprensa que, conforme foi sempre apontado, acompanha de perto o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. O número de grandes jornais, entre nós, decresceu consideravelmente. Há, hoje, aqui, reduzido número de grandes jornais.

A razão essencial desse fenômeno — a formação de oligopólios também na imprensa — vem do caráter de grande empresa assumido pelos grandes jornais. E é por isso que a nossa época não assiste ao aparecimento de novos jornais, e não apenas devido à função menor que a imprensa desempenha na fase em que dominam os chamados meios de massa. Continuam a existir, por vezes de forma proeminente, exigências isoladas no sentido de fundação de novos jornais. Mas, mesmo pessoas e entidades bem dotadas de meios materiais para enfrentar a tarefa logo desistem desses propósitos. Uns e outros precisam de novos jornais e têm condições para criá-los. Cedo, porém, compreenderam que é muito mais fácil pagar a opinião dos existentes do que lançar novas empresas do ramo.

E aqui convém lembrar que o vocábulo não é aqui empregado no comum sentido pejorativo, mas apenas mencionado pela necessidade de constatar a realidade. Essa realidade aponta diferença essencial no exercício da dominação: antes, o nosso capitalismo dependente era compelido, por razões externas e por razões internas, a efetivar de quando em vez intervenções armadas para impedir mudanças que ameaçassem os interesses dominantes. Daí a sucessão de golpes militares, a partir do irrompimento da chamada "guerra fria". Sempre que, no ventre da sociedade, emergiram manifestações que, em seu andamento, ameaçavam a "ordem", isto é, a estrutura vigente nessa sociedade, surgia o pronunciamento militar, destinado a restabelecer o statu-quo. Hoje, isso não precisa acontecer e a nova política importada mostra mesmo acentuada aversão aos pronunciamentos militares, de que tanto se serviu.

Qual a razão dessa mudança, aqui mencionada porque afeta profundamente o papel e a função da imprensa? A mudança resulta do fato de que a dominação se exerce, dispensando o uso da força, pelo exercício da propaganda, do convencimento. E, para isso, a imprensa é importante. Claro que subordinada aos meios de massa, acompanhando o ritmo ditado por eles. Na expansão colonialista, cujo auge ocorreu nos século XVIII e XIX, os meios de comunicação então existentes convenceram os povos colonizados de que isso ocorria por razões diversas. Eles eram compelidos, por convencimento mais do que pela coação, de que não tinham outra saída: eram colonizados por uma espécie de fatalidade. Daí, nessa fase histórica, preconceitos de duração secular: o preconceito de raça demonstrava aos africanos que eles estavam predestinados, como raça "inferior", no caso dos negros, a trabalhar para os senhores; o preconceito de clima buscava convencer muitos povos de que as regiões tropicais, em que eles viviam, não podiam sediar "civilizações" adiantadas, privativas dos que viviam em climas frios; e assim por diante. Tratei disso num livro chamado A Ideologia do colonialismo. Sempre os dominadores asseguravam a todos os que sofriam o domínio de que deveriam aceitar tranquilamente esse amargo destino, por inelutável.

Como, hoje, procuram provar que a submissão ao neoliberalismo é uma inexorável fatalidade, além de ser "moderna". Os embustes históricos apenas mudam de forma. E a imprensa desempenha neste processo de deformação papel importante, coadjuvando os meios de massa. Quem controla a imprensa e os meios de massa não precisa mais de golpes militares. E os militares, por isso mesmo, ficam como que em disponibilidade. Prega-se até a extinção deles. A "dominação" moderna está empenhada em seu desaparecimento. Nas áreas dominadas, evidentemente.

No amplo quadro de mudanças do nosso tempo, a imprensa assume fisionomia nova. Antes, como se verá no texto desse livro, as fases se diferenciavam: a fase inicial era de imprensa artesanal, que tivera início com o alemão que multiplicou o texto bíblico; a fase seguinte seria a da imprensa industrial, quando o aparelhamento dos jornais apresentou proporções desmedidas, com grandes oficinas em funcionamento acelerado. Na forma, havia outra diferença: a imprensa artesanal vivia da opinião dos leitores e buscava servi-la; na imprensa industrial já isso não acontecia, o jornal dispensa, no conjunto, a opinião dos leitores e passa a servir aos anunciantes, predominantemente. A diferença é progressiva e existe uma relação dialética entre a imprensa e o público. As proporções assumidas pela relação citada variam com o tempo e o meio, como é normal.

Assim, a diferença entre a propaganda veiculada pela imprensa entre a época estudada neste livro e a época atual fica vinculada ao ritmo de avanço do capitalismo brasileiro. Aquilo que conhecemos como publicidade e que assume, em nossos dias, grande importância, condiciona, agora, o desenvolvimento da imprensa em sua fase industrial de acelerado crescimento capitalista. Para a imprensa atual, a importância desse crescimento está na sua relação com a opinião que a imprensa veicula. Essa opinião está completamente distante da opinião do público de leitores. A publicidade é a rainha da imprensa, hoje. Isso porque essa relação está vinculada a uma outra relação: antes, o jornal, ou revista, era empresa pequena ou média, veiculando propagandas de empresas médias ou grandes; hoje, o jornal, ou revista, é também uma grande empresa. Quando preserva e realça os valores da grande empresa, está realçando os valores do próprio jornal, ou revista. Não mais se limita a servir; serve-se também. A publicidade atende a um conjunto de interesses a que o jornal, ou revista, se incorpora. De qualquer maneira, o papel da imprensa, hoje, é muito menos importante do que o papel dos meios de massa.

No Brasil, para passar ao particular, a diferença pode ser aferida por casos concretos relativamente recentes: em 1954, jornais e rádio, habitualmente consorciados empresarialmente, montaram uma "operação" que levou o presidente Vargas ao suicídio, praticamente já deposto, em três semanas, entre 5 e 24 de agosto; em 1964, dez anos depois, jornais, rádio e televisão, trabalhando unidos para a tarefa, levaram o presidente Goulart ao exílio, já deposto, em "operação" realizada em menos de um mês. Os dois editoriais de primeira página do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, assinalaram, nos últimos dias de março, os termos finais da ofensiva. A imprensa, acolitando o rádio, no primeiro caso, e acolitando o rádio e a televisão, no segundo, foi a alavanca que destruiu dois presidentes eleitos. Apelidar de democrático um regime em que isso se tornou possível é, evidentemente, perigoso eufemismo.

Sempre que aparece um meio novo de comunicação — e isso acompanha o desenvolvimento do capitalismo — presume-se o desaparecimento dos que então existem. Assim aconteceu com o aparecimento do rádio e, depois, com o aparecimento da televisão. Na verdade, o novo meio de comunicação importou em mudança significativa na área mas não importou no desaparecimento dos então existentes. Aconteceu, certamente, uma diferenciação de tarefas, de acordo com as características dos novos meios, de penetração maior e mais rápida do que a imprensa. E isso correspondeu, sem dúvida, a mudanças também significativas do papel da imprensa. Todos os meios, os de massa e a imprensa, trabalham com a informação, no aspecto de notícia, mas operam de maneiras diferentes. A informação instantânea, fornecida pelos meios de massa, deve ser completada pela informação calcada na análise, mais lenta mas presumidamente mais profunda. De qualquer maneira, todos esses meios, na sociedade capitalista, comercializam essa mercadoria especial que é a informação. São meios que vendem informação: quem controla a informação, controla o poder.

A imprensa brasileira, hoje, quando o século XX se aproxima do fim, define-se pelo número reduzido de grandes jornais e pela oligopolização. Curiosamente, o número de revistas aumentou e se caracteriza pela especialização, na maior parte dos casos. A especialização no público visado por cada uma define a fisionomia da revista, mas o fato é que a especialização exclui a competêndia com os jornais, além da periodicidade, que é diferente entre jornais e revistas. Nos dois casos, o fundamental reside no fato de que a indústria gráfica apresentou enorme avanço, em nosso país. Esse avanço no campo da tecnologia foi ainda mais acentuado no caso dos grandes jornais. Nenhum deles chegou, entretanto, a se definir como nacional, quanto ao alcance territorial, dimensão que rádio e televisão atingiram, nas proporções que conhecemos.

Do ponto de vista da coleta de informações, particularmente as dos exterior, os grandes jornais se assemelham, todos servindo-se das agências internacionais de notícias. As emissoras de televisão recebem, quase todas, os mesmos filmes, relacionados aos fatos do exterior e isso mostra como os nossos grandes jornais são dependentes das agências internacionais de notícias, de que, em alguns casos, procuram se emancipar, mantendo correspondentes no exterior, primeiro sinal de fuga a essa dependência. Do ponto de vista da matéria informativa que a imprensa brasileira fornece, hoje, os jornais não apresentam diferenças essenciais em relação aos de meio século anterior. Na estrutura de um jornal, antes, a divisão era clara, quanto ao pessoal; hoje, ela não é clara.

Antigamente, um jornal, mesmo um grande jornal, dividia o pessoal em três categorias: direção, redação e oficinas. A direção exercia a propriedade do jornal, com todos os poderes (salvo nos períodos ditatoriais); a redação estava já emancipada da linguagem literária da fase artesanal, já se firmara a diferença entre literatura e jornalismo, particularmente na linguagem, e os jornalistas já apresentavam fisionomia profissional. Passara a fase retratada por Lima Barreto no Isaías Caminha. Hoje, o jornalista é uma coisa, o literato é outra. A mudança importante foi operada no nível das oficinas: elas não comportam mais o aparelhamento gráfico diversificado anterior, em que reinava o linotipo. A oficina, nome em desuso, resume-se em gigantesca impressora que substituiu a rotativa de outros tempos. Ela fabrica o jornal até o empilhamento para distribuição. Não são operários os que a operam, são engenheiros. O trabalho gráfico é residual.

Antes, era possível discriminar assim o pessoal da imprensa: a direção era recrutada na burguesia; a redação, na camada social média ou pequena burguesia; a oficina, no proletariado. Desaparecida a oficina tradicional, o proletariado está excluído da imprensa. A redação obedece a uma hierarquia nova, mais rígida, povoada, interna e externamente, daqueles que ingressam na profissão através de cursos acadêmicos e que, por isso mesmo, demandam estágios para a prática do mister. De qualquer forma, a figura mítica do jornalista foi extinta. Claro que no sentido e com a significação antiga. Não cabe mencionar se há grandes jornalistas, simplesmente a atividade do jornalista está em extinção. Ganhou espaço a reportagem, entretanto, e nessa área é que aparecem agora valores intimamente ligados à imprensa moderna. A imprensa de hoje, e é de esperar que isso seja transitório, não é elaborada por jornalistas e apresenta um aspecto singular; os grandes jornais de hoje têm fisionomia inteiramente diversa de antes.

Uma das diferenças está na impressionante uniformidade de posições, em cada um dos jornais, e não na diversidade. A grande imprensa brasileira opera, na fase atual, uma tarefa que nunca antes desempenhou: a de deformar a realidade, ou a de escondê-la. No momento, por exemplo, todos os grandes jornais apóiam o neoliberalismo adotado pelo governo brasileiro, uns com mais veemência, com menos veemência outros. Tais jornais perderam aquilo que se conhece como credibilidade, o que eles informam não merece confiança. Existe profundo divórcio entre o que o público pensa e acredita e necessita e aquilo que a grande imprensa veicula. A alienação dessa imprensa nova, e aqui a palavra não tem qualquer identidade com o moderno e muito menos com o popular, é total.

Uma das medidas dessa alienação — como distanciamento da realidade — está no desprezo com que a imprensa encara a cultura nacional. Claro que este é apenas um dos aspectos do desprezo por tudo o que é nacional, desde o uso da língua. Salvo o que se relaciona com a música, e assim mesmo apenas no nível da chamada música popular, nada, em termos de cultura, é refletido pela imprensa. A presença de interesse pela música popular está intimamente ligada ao mercado de discos, dominado totalmente por multinacionais que, paralelamente, controlam a programação musical das emissoras de rádio e televisão. O mesmo ocorre em relação ao cinema, que deve a sua presença nas colunas dos jornais à publicidade exigida pela cinematografia norte-americana. Em termos de cultura, como em tudo o mais, o Brasil não existe para a grande imprensa. Essa desnacionalização da imprensa — raiz de sua alienação — tem sólidas razões, por isso mesmo.

Nos dias que correm — quando escrevo estas linhas — está em tramitação no Congresso uma nova lei de imprensa. O neoliberalismo está introduzindo profundas, essenciais mudanças na legislação, em todos os campos. A da imprensa não poderia constituir exceção. O mesmo acontece, por excelentes razões, com a nova e inovadora lei eleitoral; ela vem sendo preparada para assegurar a manutenção do poder pelos representantes do neoliberalismo. O Brasil conhece de velhos tempos a norma costumeira de discutir e votar lei eleitoral sempre que se aproxima uma eleição geral. A nova lei visa sempre acomodar uma situação transitoriamente dominante. No caso, assegurar o controle da imprensa pelas forças políticas dominantes. No detalhe, destituído de importância para a sociedade, especula e regula sobre direitos individuais. O seu teor democrático, assim, é duvidoso, certamente bem limitado. E não muda em nada o problema da sempre discutida liberdade de imprensa.

Esta é colocada sempre, e agora mais do que nunca, nos termos da compatibilização com o regime dominante, com as classes dominantes, com as forças políticas dominantes. Trata-se de assegurar, por dispositivos legais, a situação existente, quando a grande imprensa detém o comando da informação e, com ele, estabelece as regras do jogo político. Batizar de democracia um quadro como o que é apresentado pela grande imprensa brasileira, atualmente, é, sem dúvida, levar muito longe uma farsa que, pelo seu uso e abuso, se transformou em norma. Quando a imprensa, como aqui e agora, modula um coro repetitivo de louvação ao neoliberalismo, está claro e evidente que perdeu a sua característica antiga de refletir a realidade.

Por razões que a dialética explica, verifica-se, por contraste, o extraordinário esforço que se espelha no aparecimento de centenas de jornais novos e pequenos, alguns de vida efêmera, como é natural, preenchendo o vazio que a grande imprensa estabeleceu em relação ao que é nacional e ao que é democrático. O Brasil real, com a sua imensa diversidade e os seus problemas enormes, começa a repontar, definindo os seus traços e os seus rumos, nessa proliferação de jornais que contrastam, em tudo e por tudo, com o quadro estabelecido pela grande imprensa, a imprensa tradicional, porque antiga. A oligopolização é rompida, assim, pelo esforço descomedido dessa floração de jornais e revistas de menor porte, mas que refletem com mais clareza e justeza a paisagem social e política do país. Nos quais, inclusive e felizmente, os nossos problemas, que são aqueles que giram em torno da existência das classes menos favorecidas, vêm sendo discutidos e em torno de cuja dimensão surgem as propostas convenientes aos interesses daquelas camadas da opinião que não encontram guarida nem vez na imprensa oligopolizada. Por outro lado, jornais que servem a aspectos e atividades parceladas da sociedade procuram preencher o vazio que aquela deixa, como se os problemas fundamentais não fizessem parte da realidade do nosso povo.

A farsa que, no desenvolvimento do processo, torna cada vez mais clara o sentido daquilo que, no Brasil atual, se pretende conhecer e aceitar como democracia, coloca com escândalo não apenas o conceito de democracia como o de realidade nacional, sempre escondida nos grandes jornais e revistas, na imprensa que, pouco a pouco, aparece com os seus traços definidores inconfundíveis de alavancas suportando a alienação e buscando convencer os leitores de que o quadro apresentado, nessa unanimidade torpe de opiniões, resulta de uma fatalidade, a que todos devem se curvar. Na verdade, a imprensa oligopolizada e vinculada à estrutura social e política vigente definiu a sua alienação e perdeu qualquer traço do que é nacional aqui. A alienação é o seu retrato." [2]

REFERÊNCIAS

[1] RIBEIRO, Ana Paulo Goulart. Nelson Werneck Sodré e a História da Imprensa no Brasil. Intercom – RBCC, São Paulo, v.38, n.2 (p. 275-288), jul./dez. 2015.

[2] SODRÉ, Nelson Werneck. A História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

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