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Vigotski: "Autocontrole"


Se tentássemos sintetizar as formas separadas do desenvolvimento das funções mentais superiores descritas nos capítulos anteriores, seria fácil ver que todas elas têm uma característica psicológica comum que abordamos indiretamente até aqui, mas que é a característica que os distingue de todos os outros processos mentais. Todos estes processos são modos de controlar nossas próprias reações por diferentes meios. Enfrentamos o problema de considerar em que consiste o processo de controlá-las e como elas se desenvolvem na criança. O mais típico para controlar nosso próprio comportamento é a seleção, e não é à toa que, ao estudar os processos voluntários, a velha psicologia via a essência do ato voluntário na seleção. Ao continuar nossa análise, também nos deparamos muitas vezes com este fenômeno.

Por exemplo, nos experimentos sobre atenção, tivemos a oportunidade de estudar a reação de seleção, uma vez que ela é determinada pela estrutura de estímulo externo. Na reação de seleção, instruídos pela lembrança mnemotécnica, tentamos traçar o curso dessa forma complexa de comportamento quando ela é determinada preliminarmente, de tal maneira que certos estímulos devem corresponder a certas reações.

Se nos experimentos do primeiro tipo, a seleção dependia principalmente de atividades externas e que toda atividade da criança fosse reduzida a isolar esses traços externos e captar a relação objetiva entre eles, então na reação subsequente, a questão era sobre estímulos que não tinham relação externa entre si, e o problema da criança foi reduzido para fixar ou estabelecer as conexões necessárias do cérebro de forma confiável. Correspondentemente, o primeiro problema da seleção foi resolvido com a ajuda da atenção; o segundo, com a ajuda da memória. Neste ponto, eis que um dispositivo mnemotécnico foi a chave do controle desta reação.

Contudo, há ainda uma seleção de um terceiro tipo que tentamos encontrar em experimentos especiais, que poderiam esclarecer o problema em si de controlar nossas reações. Esta é a livre escolha entre duas possibilidades determinadas não externamente, mas internamente pela própria criança.

Na psicologia experimental, um método de estudar a livre escolha, no qual o sujeito é instruído a selecionar e realizar uma de duas ações, foi estabelecido há muito tempo. Nós complicaremos um pouco este dispositivo pedindo à criança que escolha entre duas séries de ações, as quais incluem algo que o sujeito ache prazeroso e algo que ache desprazeroso. Neste caso, o aumento do número de ações a partir das quais a seleção é feita não apenas introduziu uma complexificação quantitativa no sistema de motivos conflitantes que determina a escolha em uma direção ou noutra, não só complexificou o conflito de motivos, mas também afetou efetivamente a qualidade do próprio processo de seleção. As mudanças qualitativas foram evidentes onde o motivo inequívoco foi substituído por motivos ambíguos e isto resultou em um ajuste complexo com relação à dada série de ações. Como foi dito, as séries incluíam algo atrativo e algo desagradável, algo prazeroso e algo desprazeroso, e isso também se aplicava à nova série da qual uma seleção tinha que ser feita. Deste modo, nós obtivemos, experimentalmente, um modelo do comportamento complexo que é geralmente denominado “conflito de motivos” em uma seleção complexa.

Do ponto de vista do método, a mudança substancial introduzida por este dispositivo consiste em sermos capazes de criar motivo experimental a partir das séries, uma vez que elas são flexíveis e podem ser incrementadas, diminuídas, substituídas em partes e finalmente movidas de série para série; em outras palavras, nós somos capazes de mudar, experimentalmente, as condições básicas de seleção e estudar como a mudança dos processos dependem disso.

A experiência mostra que desde o princípio essas condições de seleção se tornam bastante complexas e impedem o processo; o sujeito experimenta a indecisão, a vacilação, a suspensão de motivos e o esforço em balanceá-los. Às vezes a seleção é interrompida e torna-se extremamente difícil. Nestes casos, introduzimos um novo fator adicional que é o epicentro de nossos experimentos; nós sugerimos à criança que ela faça uma escolha por sorteio. A sugestão é feita através de vários dispositivos; começando com um dado na mesa, ou deixando a criança brincar com o dado antes do experimento e terminando com uma pergunta direta sobre se ele gostaria de usar o dado, ou uma sugestão direta onde a criança vê como outra pessoa resolve este mesmo problema.

Por vezes nós pudemos observar como o sujeito usa o dado ou algum outro dispositivo deste tipo completamente independente, mas desde que nossa principal tarefa não fosse estudar a criatividade da criança, mas sim o processo de seleção usando o dado; na maioria das vezes, nós procedemos como indicado acima. Recorremos ao dispositivo que usamos repetidamente: a sugestão direta de que a criança use o dispositivo apropriado. Como Köhler costuma dizer, nós colocamos uma vareta nas mãos do macaco e observamos o que aconteceria. Procedemos desta maneira ao estudar a escrita quando dávamos um lápis à criança e a induzíamos a escrever.

Nossos experimentos mostram a profundidade das mudanças em todo o comportamento da criança quando o uso de um dado é apresentado. A fim de estudar em que circunstâncias a criança recorre ao seu uso, nós subsequentemente deixamos esta decisão para a sua livre escolha. Variando as condições externas, nós pudemos, pura e empiricamente, observar as circunstâncias sob as quais a criança voluntariamente recorreu ao uso do dado. Assim, se abreviarmos o tempo de seleção e não permitimos que conflitos de motivos e resolução desse tempo de conflito se desenvolvam, a criança quase sempre recorreu ao uso do dado. Isto também aconteceu nos casos onde a criança não estava consciente de alguns dos motivos; digamos, uma ou duas das ações na série foram dadas à ela em um envelope lacrado que ela poderia abrir somente após fazer uma escolha. Frequentemente, ela recorria ao uso do dado mesmo quando os motivos não eram diferentes, isto é, se as duas séries entre as quais ela tinha que escolher não envolvessem ações que a afetariam de maneira positiva ou negativa. O equilíbrio relativo dos motivos teve o mesmo efeito nos casos em que ambas as séries, dentre as quais a escolha tinha de ser feita, incluíram elementos atrativos e repugnantes de forma mais ou menos igual.

Isso demonstrou que a complexidade dos motivos e a dificuldade de escolha, mas particularmente a presença dos elementos de força emocional prazerosa ou repugnante, resultaram em um uso mais frequente do dado; e, finalmente, quando ambas as séries incluíam motivos extremamente diversos que eram difíceis de se comparar, a avaliação emocional da qual estava em planos aparentemente diferentes, isto é, quando os motivos eram dirigidos a diferentes aspectos da personalidade da criança, a seleção natural era impedida e a criança prontamente deixava que o jogo do dado decidisse seu destino.

Esta é uma pequena lista de casos em que a criança geralmente recorre ao dado. Perguntamos: o que todos estes casos têm em comum? Nós podemos fazer apenas uma determinação qualitativa da situação na qual dados são utilizados. Até certo ponto, esta situação exibe uma similaridade com a bem conhecida anedota filosófica, que é erroneamente atribuída à Buridan, e que é geralmente usada para ilustrar que nossa vontade é determinada por motivos, e quando os motivos são iguais, a seleção torna-se impossível e a vontade é paralisada.

Entre outros, Spinoza também aborda este exemplo, indicando não a liberdade de nossa vontade, mas sua dependência de motivos externos. Ele diz que o burro, tendo experienciado apenas a fome e a sede, posto entre comida e água em distâncias iguais de si, morrerá de fome e de sede, já que ele não tem base para fazer a escolha entre ir para a direita em direção à comida ou ir para a esquerda em busca à água. A anedota diz que o ser humano, como a folha de papel que permanece no lugar se a puxarmos com igual força em lados opostos, ficará paralisado se os motivos que o compõem estiverem em equilíbrio. A anedota contém a idéia profunda e verdadeira de que a ilusão do livre-arbítrio colapsa assim que tentamos traçar a determinação da vontade e sua dependência dos motivos.

Entende-se que, neste exemplo, tomamos o caso ideal de motivos equilibrados (que nós nunca evidenciamos na realidade) e, correspondentemente, condições extremamente simplificadas do efeito dos motivos. Mas a cada passo, na vida e nos experimentos laboratoriais, encontramos situações que se aproximam, em certa medida, à situação do burro de Buridan, e que envolvem motivos aproximadamente equilibrados, em questão de força, que resultam em uma recusa temporária de fazer uma escolha, em vacilação, em mais ou menos longa inatividade e que parecem paralisar a vontade. A inatividade resultante de vacilações dos motivos tem servido, muitas vezes, como um tema nas obras trágicas e cômicas, e Spinoza, dando este exemplo, diz precisamente que o homem, posto em tal situação, experienciando nada mais que a fome e a sede, vendo a comida e a água de distâncias iguais de si, sempre morrerá de fome e sede.

Mas o próprio Spinoza, tocando nesta questão em outro momento, fornece uma resposta que é diretamente oposta. O que aconteceria se um homem se encontrasse na situação do burro de Buridan? Spinoza responde: se imaginarmos um homem na situação do burro, nós teríamos que considerá-lo como um ser irracional, mas mais indigno que o burro se ele morrer de fome e sede. E, na verdade, aqui tocamos nos elementos de maior importância que distinguem a vontade do homem da vontade de um animal.

A liberdade humana consiste especificamente na capacidade do homem de pensar, isto é, que o homem está ciente da situação em desenvolvimento. Para a questão proposta por Spinoza, podemos dar uma resposta empírica com base em ambas as observações, na vida e em nossos experimentos. O Homem, colocado na situação do burro de Buridan, joga os dados e, desta forma, escapa da dificuldade que o confronta. Esta é uma operação impossível para os animais, uma operação na qual todo o problema da liberdade da vontade aparece com uma distinção experimental. Em experimentos nos quais a criança é confrontada por uma situação semelhante e encontra uma saída usando um dado, vemos o profundo sentido filosófico do fenômeno que nos interessa. Já citamos a opinião de um dos sujeitos de Ach, de que um experimento psicológico desse tipo é transformado em filosofia experimental.

Na verdade, nos experimentos com o dado, estamos inclinados a ver essa filosofia experimental. Dois tipos de atividades são apresentados para a seleção da criança; ela deve selecionar um e rejeitar o outro. Ao complexificar a seleção, equilibrar os motivos, reduzir o tempo, criar um sério impedimento emocional, criamos uma “situação Buridan” para a criança. A seleção é feita com maior dificuldade. A criança recorre a um dado e introduz na situação novos estímulos completamente neutros em comparação com toda a situação, e atribui-lhes a força do motivo. Ela decide antecipadamente que, se o dado virar o lado preto para cima, ela escolherá um motivo; se ele virar o lado branco para cima, escolherá o outro. Desta forma, a escolha é feita antecipadamente.

A criança atribui a força dos motivos à estímulos neutros, introduzindo um motivo auxiliar na situação e deixando a seleção para o dado. Então, ela joga o dado, ele cai com o lado preto para cima, ela seleciona a primeira série e a escolha é feita. Quão diferente é da seleção que a criança acabara de fazer entre séries semelhantes sem a ajuda do dado! Podemos comparar os dois processos experimentalmente e observar algo muito instrutivo.

Primeiramente, nós analisaremos a seleção usando o dado. Como devemos chamar a ação escolhida pela criança – livre ou não livre? Por um lado, não era de todo livre, sendo estritamente determinada; a criança executou a ação não porque quisesse, não porque preferisse à alternativa, nem mesmo porque estava simplesmente atraída por ela, mas exclusivamente porque o dado caiu com o lado preto para cima. A criança executou a ação como uma reação a um estímulo, como uma resposta à instrução; um segundo mais cedo ela não poderia ter dito qual das duas ações ela escolheria. Assim, temos a seleção mais determinada e menos livre.

Mas, por outro lado, em si mesmos, os lados preto e branco do dado não compelem a criança, em nenhum grau, a realizar uma ação ou outra. A própria criança atribuiu-lhe a força de um motivo antecipadamente e ela própria ligou uma ação ao lado branco e a outra ao lado preto do dado. Ela fez isso apenas para determinar sua seleção por meio desses estímulos. Assim, temos liberdade máxima e um ato completamente voluntário. A contradição dialética que consiste na liberdade da vontade aparece aqui de uma forma separada experimentalmente e acessível à análise.

O experimento nos diz que a liberdade da vontade não é livre de motivos; isso consiste no fato de que a criança reconhece a situação, reconhece a necessidade de fazer uma escolha baseada em um motivo e, como a definição filosófica afirma, no caso dado, sua liberdade é o reconhecimento da necessidade. A criança controla sua reação de seleção, porém não de maneira a alterar as leis que a governam, mas de modo a torná-la sujeita à lei de Bacon [1], isto é, sujeita à lei.

Como sabemos, a lei básica de nosso comportamento afirma que ele é determinado por situações e a reação é provocada por estímulos; por essa razão, a chave para controlar o comportamento está em controlar os estímulos. Nós não podemos dominar nosso próprio comportamento, exceto através de estímulos apropriados. No caso da seleção com o dado de que acabamos de falar, a criança controla seu comportamento, direciona-o através do estímulo auxiliar. Nesse sentido, o comportamento humano não é uma exceção às leis da natureza. Como sabemos, estamos sujeitos à natureza, cumprimos suas leis. Nosso comportamento é um dos processos naturais, cuja lei básica é também a lei do estímulo-resposta, e por essa razão, a lei básica de dominar os processos naturais é dominá-los através de estímulos. Não devemos produzir nenhum processo de comportamento e controlá-lo a não ser criando um estímulo apropriado.

Só uma psicologia espiritualista poderia admitir que o espírito afeta diretamente o corpo, que nossos pensamentos são um processo puramente mental e podem provocar qualquer mudança no comportamento humano. Deste modo, S. Ramon e Cajal explicam a influência da vontade no processo de concepções por meio da contração das células neurológicas afetadas pela vontade; ele explica a atividade da atenção da mesma forma.

Seu oponente está completamente justificado em perguntar: como pode a vontade, da qual Ramon e Cajal desvia um papel tão importante, ser eficaz? Não é essa a propriedade da célula neuróglia? É possível entender a palavra “vontade” como uma corrente nervosa? Na verdade, se assumirmos que o processo mental pode mudar um átomo cerebral por uma milionésima parte - a lei de conservação de energia será interrompida, isto é, devemos rejeitar instantaneamente o princípio básico da ciência natural no qual toda a ciência contemporânea é sediada. Resta-nos supor que nosso controle sobre nossos próprios processos de comportamento é construído essencialmente da mesma maneira que o controle sobre os processos naturais. É claro que o homem que vive na sociedade é sempre afetado por outras pessoas. A fala, por exemplo, é um dos poderosos meios de afetar o comportamento dos outros e, naturalmente, no processo de desenvolvimento, o próprio homem domina os meios pelos quais os outros controlavam seu comportamento.

O. Neurath desenvolveu uma posição sobre o uso de meios auxiliares em um estudo sobre os chamados motivos auxiliares; os dados são uma forma simples de tais meios quando eles funcionam para afetar a decisão de alguém, isto é, a escolha que alguém faz, através de alguns estímulos neutros que adquirem a força dos motivos por causa desse significado.

Podemos citar vários exemplos de motivos auxiliares.

William James, na análise do ato voluntário, voltou-se para o ato diário de se levantar. Ao acordar, uma pessoa sabe, por um lado, que ela deve se levantar e, por outro lado, que ela gostaria de dormir um pouco mais. Um conflito de motivos se desenvolve. Os dois motivos se alternam, aparecem na consciência, e substituem um ao outro. James acreditava que é a mais característico que, no instante da vacilação para a pessoa, o momento de transição para a ação, o momento da decisão, passe despercebido. É como se isso não tivesse acontecido. De repente, um dos motivos, como se empurrado, espreme o competidor e quase automaticamente resulta em uma seleção. De repente, eu me encontro levantado – esta é uma forma de colocar.

A indefinição desse momento mais importante no ato voluntário pode ser explicada pelo fato de que seu mecanismo é interno. O motivo auxiliar, neste caso, não é suficientemente distinto e claro. Um típico ato voluntário desenvolvido na mesma situação exibe os três instantes seguintes: (1) eu tenho que me levantar (motivo), (2) eu não quero me levantar (motivo), (3) contar para si mesmo: um, dois, três (motivo auxiliar) e (4) na contagem de três, levantando. Essa é a introdução de um motivo auxiliar, criando uma situação interna que me faz levantar. Isto é absolutamente semelhante a dizer para uma criança, “Agora, um, dois, três – beba seu remédio”. Isso é vontade no verdadeiro sentido da palavra. No exemplo de levantar, levantei-me ao sinal “três” (reflexo condicionado), mas eu mesmo, através de um sinal e uma conexão com ele, me levantei, isto é, eu controlei meu comportamento através de um estímulo auxiliar ou um motivo auxiliar. Encontramos o mecanismo em si, isto é, controlando-se através de estímulos auxiliares, em estudos experimentais e clínicos da vontade.

K. Lewin fez estudos experimentais sobre a formação e execução dos chamados atos intencionais. Ele chegou a esta conclusão: a intenção em si é um ato volitivo que cria situações que tornam possível ao homem sujeitar-se subsequentemente à ação de estímulos externos, de modo que a realização do ato intencional não seja de todo voluntária, mas é um ato puramente da ordem do reflexo condicionado. Decido deixar uma carta na caixa de correio e, por essa razão, lembro-me de uma conexão apropriada entre a caixa de correio e minha ação. Essa, e apenas essa, é a essência da intenção. Eu criei uma certa conexão que, subsequentemente, agirá automaticamente na maneira de uma necessidade natural. Lewin chama isso de quase-necessidade. Agora devo sair para a rua – e a primeira caixa de correio me obrigará automaticamente a realizar toda a operação de envio da carta.

Portanto, um estudo da intenção compele uma conclusão que parece paradoxal à primeira vista – especificamente, intenção é um típico processo de controlar nosso próprio comportamento criando situações e conexões apropriadas, mas executá-lo é um processo que é completamente independente da vontade e toma seu lugar automaticamente. Deste modo, o paradoxo da vontade consiste em que a vontade cria atos involuntários. Entretanto, mesmo aqui há uma grande diferença entre executar uma ação intencional que é aparentemente ditada pela necessidade recém-criada e um simples hábito.

Lewin explica a ação voluntária com o mesmo exemplo da caixa de correio. É claro, se neste caso a conexão condicionada simplesmente chamou um hábito em um reflexo condicionado, teríamos que esperar que a segunda, terceira, etc. caixa de correio fosse um lembrete ainda mais forte de enviar a carta. Ademais, o aparato criado pára de agir assim que a necessidade pela qual foi criado é satisfeita. Aqui, o processo da ação voluntária é uma reminiscência do curso da reação instintiva comum. Lewin não compreende completamente a diferença essencial entre ações voluntárias e involuntárias evidentes em sua experiência.

Como seus experimentos mostraram, o comportamento humano que não tem uma intenção específica está sujeito ao poder da situação. Cada coisa requer um tipo de ação; provoca, excita, atualiza algum tipo de reação. O comportamento típico de uma pessoa que espera em uma sala vazia sem nada para fazer é caracterizado principalmente pelo fato de estar à mercê do ambiente. A intenção também se baseia na criação de uma ação em resposta a uma necessidade direta de coisas ou, como diz Lewin, saindo do campo circundante. A intenção de enviar a carta cria uma situação na qual a primeira caixa de correio adquire a capacidade de determinar nosso comportamento, mas, além disso, com intenção, ocorre uma mudança essencial no comportamento da pessoa. Ela, usando o poder das coisas ou estímulos, controla seu próprio comportamento através deles, agrupando-os, pondo-os juntos, sorteando-os. Em outras palavras, a grande singularidade da vontade consiste no homem não ter poder sobre seu próprio comportamento, além do poder que as coisas têm sobre seu comportamento. Mas o homem submete a si mesmo ao poder das coisas sobre o comportamento, faz com que elas sirvam aos seus próprios interesses e controla este poder como ele quer. Ele transforma o ambiente com sua atividade externa e, desta maneira, afeta seu próprio comportamento, sujeitando-o a sua própria autoridade.

Que nas experiências de Lewin estamos realmente falando de tal controle de si através de estímulos, é fácil ver a partir de seu exemplo. O sujeito é solicitado a esperar por um longo tempo e sem nenhum propósito em uma sala vazia. Ela vacila – para sair ou continuar esperando, ocorre um conflito de motivos. Ela olha para seu relógio; isso só reforça um dos motivos, especificamente, que é hora de partir, que já é tarde. Até agora, o sujeito estava exclusivamente à mercê dos motivos, mas agora ela começa a controlar seu próprio comportamento. O relógio, instantaneamente, constitui um estímulo que adquire o significado de um motivo auxiliar. O sujeito decide “quando os ponteiros do relógio atingirem uma certa posição, eu me levantarei e irei embora”. Consequentemente, ela fecha uma conexão condicionada entre a posição dos ponteiros e a sua saída; ela decide ir embora através dos ponteiros do relógio e age em resposta ao estímulo externo; em outras palavras, ela introduz um motivo auxiliar semelhante ao dos dados ou a contagem “um, dois, três” para se levantar. Neste exemplo, é bem fácil notar como ocorre uma mudança no papel funcional do estímulo, sua conversão em um motivo auxiliar.

Estudos clínicos da histeria também possibilitam detectar este tipo de separação.

E. Bleuler estabeleceu, há muito tempo, a independência relativa do quase automático mecanismo de acionamento separado da vontade e da decisão. Breuler chama isso de aparato do acaso e cita o mesmo exemplo de Lewin: “eu escrevi uma carta, coloquei-a em meu bolso com a intenção de depositá-la na caixa de correio mais próxima. Eu não tenho que pensar nisso mais. A primeira caixa de correio que eu vir assim que sair de casa me lembrará de enviar a carta”. Quando uma pessoa faz uma escolha, ela aparentemente estabelece em seu cérebro um aparato, por exemplo, que o verde causará nela uma reação com sua mão direita e vermelho, com sua mão esquerda.

Em reações isoladas, o “eu” consciente participa muito pouco ou não participa. A reação prossegue automaticamente. O oposto também acontece quando a consciência interfere e impede reações. Nos exemplos citados acima, usando uma situação primária simples, construímos um certo aparato cerebral para determinar o caso em questão. O aparato toma a decisão exatamente da mesma maneira que o hábito cria um aparato automático ou, como a filogênese, constrói aparatos apropriados.

Nas palavras de Kretschmer, toda decisão, todo desejo de empreender algo, cria este tipo de aparato funcional, partindo do automatismo mais simples, lembrando reflexos e respondendo a certo estímulo com reação, como em um simples experimento psicológico, e finalizando com um contínuo problema da vida real que termina somente na morte, e cuja resolução será interrompida milhares de vezes. A questão de se dormir ou não dormir após o alarme é um exemplo disso; um aparato semelhante também pode se desenvolver como resultado da combinação da parte centrífuga de um reflexo com algum novo estímulo (o reflexo condicionado pavloviano).

Podemos tirar essas duas conclusões.

Em primeiro lugar, vemos que na ação voluntária devemos diferenciar dois aparatos que são relativamente independentes um do outro. O primeiro corresponde ao momento de decisão e consiste na formação de um certo aparato funcional, no estabelecimento de uma conexão reflexa e em formar um novo e ousado trajeto. Esta é a parte de encerramento do processo voluntário. É formada exatamente como um hábito é formado, isto é, consiste em construir uma curva reflexa condicionada. Em resumo, podemos dizer que este é um reflexo criado artificialmente. Em nossos experimentos, corresponde ao momento que é apresentado de forma muito satisfatória, em forma isolada, o momento da decisão de agir de certo modo dependendo da queda do dado. Aqui, vemos mais claramente o momento de decisão porque até este exato momento, o sujeito ainda não sabe como ele irá agir. Aqui, vemos claramente que a decisão em si que determina a escolha subsequente é completamente análoga à formação de uma dupla conexão na reação de seleção. O sujeito, como quem se dá a instrução: “se o dado cair com o lado preto para cima, eu reagirei de um modo, se cair com o lado branco para cima, reagirei de outro modo”.

Em segundo lugar, devemos distinguir o aparato atuante, isto é, o funcionamento da conexão cerebral já formada dessa maneira. Nos exemplos de Lewin e Bleuler, isso corresponderia ao momento de realizar uma ação voluntária quando a caixa de correio lembra-me de enviar a carta. Em nosso exemplo, isso seria a implementação de uma ou outra ação após jogar o dado. A segunda parte, relativamente independente do processo voluntário, age exatamente como a reação de seleção geralmente atua. Aqui temos o reflexo condicionado pavloviano.

Se o primeiro momento consiste em criar um reflexo condicionado, que pode ser comparado ao momento no laboratório quando um cão desenvolve um reflexo condicionado, então o segundo momento consiste no funcionamento de um reflexo já desenvolvido; uma analogia à isso pode ser encontrada na ação de um estímulo condicionado desenvolvido.

Por conseguinte, o paradoxo da vontade consiste em criarmos com sua ajuda um mecanismo de ação involuntária.

A questão da relação da segunda, ou mecanismo de ação, com a primeira, ou mecanismo de encerramento, pode ser respondida de diferentes formas.

Experimentos conduziram Lewin à convicção de que há uma dependência mais próxima entre o primeiro e segundo momentos que, neste caso, uma quase-necessidade é formada, que automaticamente desliga o aparato correspondente depois que a quase-necessidade se extingue. Assim, na opinião de Lewin, a necessidade surge primeiro e a conexão condicionada em si não é a verdadeira causa da ação intencional, pois, diz Lewin, se uma ação pretendida estava sujeita à lei de associação, então, devido à lei da repetição, a segunda, terceira e quarta caixa de correio despertariam uma lembrança mais forte sobre a carta do que a primeira. Se isso realmente não acontecer, é somente porque uma ação pretendida é semelhante não ao hábito, mas à necessidade. Quando a necessidade expira, o aparato criado para serví-la desaparece em si.

Os dados clínicos conduziram Kretschmer, por outro lado, à posição de que essa é uma representação errônea, que aparentemente todo movimento, toda função do sistema nervoso central termina por si. Em sua opinião, todo encerramento que se desenvolve deve ser aberto novamente para que pare de funcionar. Kretschmer diz que há tão poucas mudanças que originam-se em si na fisiologia como na física. Ele cita exemplos do fato de que, uma vez que uma configuração é criada, ela continua a funcionar automaticamente. Em sua opinião, desde o começo uma ação frequentemente torna-se relativamente independente da vontade, de modo que a vontade apenas cria uma configuração preparada que, agora, começa a funcionar por si mesma. E esta configuração produzida para um propósito específico, este aparato funcional, não para de funcionar por si só. Por isso, é necessário um impulso especial direcionado da vontade que desativaria o encerramento estabelecido para um determinado propósito, desligá-lo; caso contrário, continuaria a trabalhar indefinidamente. Na opinião de Kretschmer, é especificamente isso o que ocorre na histeria. Um aparato funcional apropriado para um dado caso é formado, torna-se livre da vontade e adquire uma existência independente dela; e continua a trabalhar apesar dela e, inclusive, contra ela.

A observação nos leva à conclusão de que, neste caso, a verdade está do lado de Lewin e não de Kretschmer. Os dados de Kretschmer indicam que somente naqueles casos produzidos por decisão, o aparato continua a levar uma existência independente, quando há motivos especiais que os ampara. Quando isso não acontece, ele desliga-se automaticamente e, como os experimentos demonstram, desliga-se porque, no momento da decisão, ou seja, no momento da criação desse aparato, são determinadas todas as condições diferenciadas para sua existência e atividade. Se continuar a funcionar (e isso acontece em casos de anomalia), o aparato criado começa a se alimentar de outras fontes de energia e resulta na formação da histeria.

Deste modo, chegamos a separar o ato voluntário em dois processos separados, dos quais o primeiro, correspondente à decisão, consiste no encerramento de uma nova conexão cerebral, no uso de um trajeto ou na criação de um aparato funcional especial. O segundo, ou processo de ativação, consiste no trabalho do aparato criado, em ação de acordo com a instrução, na implementação de uma decisão, e exibe todas as marcas da reação de seleção que estudamos. Em conexão com tal separação do ato voluntário em dois processos separados, devemos também distinguir os diferentes métodos de ação dos estímulos em ambos os processos e, em conexão com isso, o tipo especial de estímulo ou motivo auxiliar para cada processo. Assim, chegamos a distinguir os conceitos de estímulo e motivo.

Se como estímulo, entendemos a estimulação mais ou menos simples atuando diretamente sobre uma curva reflexa já estabelecida, não importando como ela foi estabelecida, e como motivo, entendemos um complexo sistema de estímulos ligado à construção, formação ou seleção de uma das curvas de reflexo, então a diferenciação entre um motivo e um estímulo pode ser bastante precisa. Podemos dizer que o estímulo se torna um motivo sob certas condições; ele ativa uma complexa formação reativa invadindo um determinado sistema formado para avaliar a configuração e os hábitos. Essa formação complexa e reativa cristalizada em torno do estímulo é um motivo. Assim, na seleção voluntária não são estímulos que estão em conflito, mas formações reativas, sistemas inteiros de montagens. O motivo é, em certo sentido, uma reação a um estímulo. Estímulos aparentemente ativam os associados e os envolvem no conflito, eles lutam como se estivessem armados. Em uma colisão concreta de dois estímulos, pode ocorrer um conflito de montagens. Se imaginarmos um caso simples no qual decido não cumprimentar uma pessoa, tendo perdido meu respeito por ela, então o estímulo direto seria encontrá-lo e recordar minha decisão. O conflito na verdade não é entre dois estímulos: isso foi resolvido antes, quando o próprio aparato foi formado, no momento da decisão, e surge como resultado do conflito de motivos no sentido da palavra, como acabamos de dizer.

Podemos dar mais um passo na compreensão dos processos de seleção voluntária se admitirmos não apenas o fato de que nela não são estímulos, mas motivos que estão em conflito; mas, também, se admitirmos que o conflito em si não é o estímulo geral sobre o qual estão em conflito. Na seleção voluntária com um conflito de motivos, há também um conflito sobre o campo de motivo comum, geralmente não para o mecanismo de atuação, mas para o mecanismo de encerramento. Essa distinção tem um profundo significado psicológico e neurológico. Vamos começar com o último.

Conforme estabelecido por C. Sherrington, o conflito sobre o campo do motivo comum e como ele é mais claramente evidente na colisão de dois reflexos em um cão (Nota do tradutor: por exemplo, uma coceira que requer coçar as costas e um desenho de proteção traseira que requer que se curve), é, em essência, um conflito de duas correntes nervosas que vão dos trajetos sensoriais até o neurônio eferente. Este conflito sobre um percurso motor depende em grande medida de condições puramente mecânicas.

O conflito de motivos que ocorre quando uma decisão é feita não se trata sobre o mecanismo de atuação, nem sobre o neurônio eferente, e nem sobre o trajeto motor para a excitação nervosa já desenvolvida – ele se trata da escolha do trajeto de encerramento. Por essa razão, não estamos falando que o mesmo órgão implementador foi derrotado no conflito por um estímulo presente em outro, mas de qual trajeto selecionar, que tipo de trajeto de união no córtex cerebral estabelecer, que tipo de encerramento ou aparato cerebral criar. Por isso, do ponto de vista neurológico, transferir o conflito para um território diferente, para outra instância, e mudar o próprio objeto do conflito é de maior importância.

Por si só, entende-se que essas mudanças não são sem consequências para o próprio processo de conflito, uma vez que seu resultado pode ser determinado por fatores bastantes diferentes sob essas condições completamente novas em que o conflito está ocorrendo. Especificamente, pensamos que tomar uma decisão em favor de um motivo que é mais fraco no sentido biológico, pode ser verdadeiramente explicado apenas em conexão com a transferência de todo o processo para novas instâncias. Aqui, chegamos imediatamente ao significado psicológico da distinção que fizemos. Se é verdade que o conflito não está sobre o mecanismo de atuação, mas sobre o de encerramento, então podemos determinar a própria seleção como construção desse tipo de aparato cerebral. A seleção é um ato do mecanismo de encerramento, isto é, o encerramento da conexão entre o estímulo dado e a reação. Tudo o que segue ocorre exatamente como acontece na seleção após a instrução.

O significado psicológico disso pode ser resumido em três pontos básicos.

O primeiro é que o conflito de motivos muda no tempo - é transferido para um momento anterior. O conflito entre motivos frequentemente ocorre muito tempo antes que a situação real se desenvolva, na qual se torna necessário agir. Em geral, o este conflito e a decisão associada a ele são, em geral, possíveis apenas se precederem o conflito de estímulos no tempo; caso contrário, o conflito de motivos é convertido simplesmente em conflito sobre um campo de motivos comum. Desta forma, o conflito é movido e jogado fora, e decidido até o seu fim; é um líder do regimento aparentemente antecipado para o plano estratégico da competição. Psicologicamente, é muito compreensível que o desenvolvimento do plano possa ser completamente diferente de sua execução. Uma decisão é tomada e o conflito termina muitas vezes antes que o conflito real ou atual comece.

Outra mudança psicológica substancial no processo de seleção é que, aqui, temos uma explicação do problema básico da ação voluntária que foi essencialmente deixado sem solução com base na psicologia empírica. Temos em mente a conhecida ilusão que sempre surge com um ato voluntário, e consiste em que este ato é dirigido como se fosse uma série de maior resistência. Selecionamos o que é mais difícil e chamamos apenas essa escolha de voluntária.

William James reconheceu este problema como sendo insolúvel na base de uma visão científica determinista da vontade, e teve que admitir a intrusão da força espiritual, o voluntário “sim, deixe estar!” (“fiat – decreto/ordem”) - a palavra com a qual Deus criou o mundo). A seleção da palavra em si é muito indicativa. Se escondermos a filosofia desse termo, podemos ver facilmente que, em essência, oculto por trás dele está a ideia seguinte. Para explicar o ato voluntário, por exemplo, o fato de uma pessoa na mesa de operações reprimir gritos de dor e estender ao cirurgião o membro afetado, apesar de um impulso direto que o faria afastar o braço e gritar, a ciência não pode dizer nada mais, exceto que aqui temos uma repetição de um ato como o da criação do mundo, mas é claro em escala microscópica. Isso significa que explicar um ato voluntário levou o cientista a se posicionar empiricamente em um ensino puramente bíblico sobre a criação do mundo.

Várias observações, particularmente em estudos experimentais, mostraram que essa ilusão de ação ao longo da série de maior resistência surge regularmente toda vez que uma seleção voluntária é feita.

Recentemente, Claparède chegou à mesma conclusão com base em seus experimentos. Mas o mais importante é o fato de que a ilusão é provocada por algo que é, sem dúvida, objetivo. Para revelar o momento objetivo incorporado no processo de seleção voluntária que leva ao desenvolvimento dessa ilusão, podemos formular o estado da matéria assim: na seleção voluntária, tanto o sujeito quanto o experimentador, seguindo a série de maior resistência, dão a impressão que o resultado do conflito seria diferente se tivesse ocorrido em instâncias diferentes. Se houvesse realmente um conflito sobre os campos motores, o paciente na mesa de operação gritaria sem dúvida e afastaria o braço ferido, já que a força relativa da estimulação e todos os outros pontos indicados por Sherrington que afetam o resultado desse conflito certamente favoreceriam tal resultado.

No entanto, a ilusão surge não apenas no sujeito, mas também nos psicólogos. Eles não levam em conta o simples fato de que a série de maior resistência em alguns casos pode ser a série de menor resistência em outros. Transferir o conflito do estímulo para o motivo, transferí-lo para um novo plano e mudar o próprio objeto do conflito transforma profundamente a força relativa dos estímulos iniciais, as condições e o resultado do conflito entre eles. O estímulo mais forte pode se tornar o motivo mais fraco e, inversamente, a estimulação mais forte que automaticamente teria dominado o caminho eferente motor no momento decisivo seria rompida da mesma forma que um forte fluxo de água rasga um dique. Esta estimulação só pode afetar a seleção do trajeto de encerramento tangencialmente, isto é, apenas unilateralmente.

Parece-nos que, sem essa distinção, a psicologia não seria capaz de encontrar uma maneira de estudar as funções superiores de comportamento humano e estabelecer a principal diferença entre o comportamento do homem e dos animais.

Consideremos um exemplo simples. Nos experimentos de Pavlov, uma reação positiva foi desenvolvida para uma estimulação dolorosa e prejudicial. O cão reagiu a uma injeção, a queimaduras, à dor, como normalmente reage à alimentação. Pavlov indica que tal desvio de reação do trajeto inicial poderia ter surgido apenas como resultado de um conflito muito longo entre duas curvas de reflexo, um conflito que às vezes terminava em conquista de um ou outro oponente. Significativamente, a opinião de Pavlov, baseada em experimentos, é que a conexão unilateral existente entre essas reações é determinada pela natureza da besta. Isso significa que o centro de alimentação, sendo biologicamente mais forte, pode atrair para si a estimulação que geralmente vai para o centro da dor, mas não o contrário. Além disso, uma pessoa diz que está com fome e continua com fome. Parece-nos que, a partir da visão comum de uma pessoa que experimenta a fome e não come a comida dada a ele, independentemente da fome terrível, podemos dizer que seu comportamento é dirigido ao longo da série de maior resistência. O fato do suicídio entre as pessoas, o fato deste ato não ser encontrado no reino animal, tem sido considerado paradoxal por todo o ensino sobre a liberdade da vontade, e não sem razão muitos filósofos a consideram um sinal de liberdade humana. Mas, é claro como, no caso da fome, e no exemplo de James, do paciente na mesa de operações, também aqui a liberdade não é, evidentemente, a liberdade da necessidade, mas a liberdade entendida como o reconhecimento da necessidade. Nesse plano, a expressão “tomar-se na mão” pode ter um certo sentido literal como a expressão “suportar a dor, apertar os dentes”. Isso significa que a base de tal liberdade, como a base da liberdade em relação ao mundo externo, é o reconhecimento da necessidade.

O terceiro ponto psicológico resultante da nossa distinção entre estímulos e motivos é que o caráter do estímulo auxiliar usado mudar, dependendo se este estímulo é um meio auxiliar no conflito sobre o mecanismo de encerramento ou no conflito sobre o mecanismo de atuação. Dados como um sinal voluntário e sinais mnemotécnicos na reação de seleção com instrução, cumprem funções completamente diferentes psicologicamente. Podemos dizer que a diferença entre a seleção predeterminada e a livre seleção é que, em um caso, o sujeito realiza a instrução e, no outro, ele cria a instrução. Em termos psicológicos, isso corresponderia ao fato de que, em um caso, um mecanismo de acionamento estabelecido funciona e, de outro, estamos falando da criação do aparato em si.

Diante disso, podemos chegar a uma conclusão psicológica muito importante: é assim que podemos explicar o antigo ensinamento dos intelectuais que apontam que as leis da vontade são, em essência, leis da memória; que o sentido, as formas e os meios verdadeiros de ação controladora do pensamento pertencem à vontade; que o mecanismo da vontade essencialmente não é outra coisa senão a associação que está sob nosso controle, e que, em conexão com isso, a técnica do desejo em ação, como E. Neumann observou, é, em um grau significativo, mnemotécnica. Tudo isso indica que a ação voluntária pode ser treinada, que, por si mesmos, fatores voluntários, como as tendências determinantes de Ach, provavelmente são contrários à vontade e, como podemos, só podemos entender os meios pelos quais controlamos a ação. Nesse sentido, significará controle sobre a ação realizada em si mesma; nós apenas criamos condições artificiais para realizar a ação; por essa razão, a vontade nunca é um processo direto e não mediado.

No capítulo sobre a memória, citamos a opinião válida dos psicólogos, voltando a Spinoza, de que a alma não pode realizar nenhum tipo de intenção se não se lembrar dela. Contudo, parece-nos que estes psicólogos assumiram erroneamente que o mecanismo de acionamento é a essência do processo voluntário, e não prestaram atenção ao próprio processo de formação desse mecanismo. Isto é absolutamente correto: implementar uma ação pretendida é muito parecido com uma operação mnemotécnica, isto é, uma conexão artificial condicionada-associativa entre um estímulo e uma resposta. Mas o processo em si de estabelecer essa conexão é bem diferente.

Kretschmer, como vimos acima, distinguindo duas vontades e explicando todas as características do comportamento do histérico pelo conflito das duas vontades, chega diretamente à conclusão de que estamos lidando não apenas com duas direções diferentes de reação do paciente histérico, que, em contraste com o paciente do exemplo de James, vem ao médico e quer que o médico o cure por um lado, e, por outro lado, como todos os pacientes histéricos, opõe-se a isso. Aqui, como mostra a brilhante análise clínica de Kretschmer, esta não é uma situação como o conflito entre dois estímulos ou dois motivos. Ele diz que a situação não se refere apenas a duas observações diferentes, mas também a diferentes aspectos da vontade, e nisso reside a parte principal do problema. A visão da vontade em que o paciente se opõe a sua cura exibe uma estrutura completamente diferente, do ponto de vista psicológico, do que a visão em que o paciente se esforça para se recuperar. Kretschmer chama o primeiro tipo de hipobulia, e o segundo, vontade, no verdadeiro sentido da palavra.

Em observações clínicas, podemos distinguir o efeito de estímulos em um aparato voluntário e o efeito de motivos em outro. A vontade do paciente-histérico é afetada por argumentos e evidências razoáveis, consideração, apreciação da situação e, em geral, tudo que o leva a uma decisão. Outra visão da vontade que faz o paciente se opor à cura é caracterizada principalmente por esta ser cega, não valorizar a situação e não estar ligada aos mecanismos intelectuais. Como diz Kretschmer, essa vontade é como um corpo estranho em relação à personalidade integral; é cega, sem memória do passado ou pensamento do futuro. Concentra-se no momento presente, e o caráter de sua reação é determinado exclusivamente pela impressão daquele momento. Esta vontade não é afetada por convicções ou argumentos razoáveis; eles não a alcançam e não a ouvem, pois é um lugar vazio; só pode ser afetado de outras maneiras, por exemplo, por um grito alto, um golpe agudo ou inesperado, dor ou um solavanco. Assim, em resumo, a primeira fluirá de motivos, a segunda reagirá à estimulação.

Podemos dizer que, no segundo caso, o que está agindo é um aparato cerebral isolado. O mais importante é o seguinte. O que notamos no histérico como uma espécie de corpo estranho doente, seja um demônio ou uma contraparte da vontade intencional, encontramos em animais superiores e em crianças pequenas. Para eles, é a vontade em geral, é um passo no desenvolvimento e é um método de desejo normal, talvez o único existente.

O tipo hipobúlico de vontade é um degrau inferior, ontogenético e filogenético, do aparelho intencional. Além disso, notamos o ponto de vista genético injetado no ensinamento sobre a vontade. Os dois aparatos da vontade de que falamos desde o começo são, na verdade, dois estágios na gênese da vontade.

Talvez a coisa mais notável que o psicólogo possa agora dizer sobre a vontade seja a seguinte: ela se desenvolverá e será o produto do desenvolvimento cultural da criança. O autocontrole e os princípios e meios desse controle não diferem basicamente do controle sobre o meio ambiente. O homem é parte da natureza, seu comportamento é um processo natural, e controlá-lo é como todo controle da natureza, de acordo com o princípio de Bacon de que “a natureza só é comandada se é obedecida.” Não é em vão que Bacon coloca o controle da natureza e o controle do intelecto em uma só ordem; ele diz que a mão nua e a mente tomadas em si não significam muito - a ação é feita com ferramentas e meios auxiliares.

Mas ninguém expressou com tanta clareza a idéia geral de que a liberdade de vontade é derivada e se desenvolve no processo do desenvolvimento histórico da humanidade, como fez Engels. Ele diz: “Não na independência imaginária das leis da natureza reside a liberdade, mas em reconhecer essas leis e, com base nisso, conhecer as possibilidades de, sistematicamente, fazer com que elas funcionem em direção a determinados objetivos. Isto se refere tanto às leis da natureza externa quanto às leis que governam a existência corporal e mental do próprio homem; que existem duas classes de leis que podem ser separadas umas das outras é a coisa mais importante em nosso conceito, que não está longe da realidade. Consequentemente, a liberdade de vontade não significa outra coisa senão a capacidade de tomar uma decisão com conhecimento do assunto”(Marx e Engels, Collected Works, Vol. 20, p. 116). Em outras palavras, Engels coloca em uma ordem o controle da natureza e o controle do eu. A liberdade de vontade em relação a um e ao outro é, para ele como para Hegel, entender a necessidade.

Engels diz: “Consequentemente, a liberdade é baseada no reconhecimento das necessidades da natureza (Naturnotwendigheiten), no controle de nós mesmos e da natureza externa; por esta razão, é um produto indispensável do desenvolvimento histórico. Os primeiros seres humanos que saíram do reino animal eram, em todos os aspectos, tão carentes de liberdade quanto os animais; mas cada passo adiante no caminho da cultura era um passo em direção à liberdade ” (ibid.).

Portanto, o psicólogo-geneticista é confrontado com a tarefa mais importante de encontrar, no desenvolvimento da criança, as séries ao longo das quais ocorre a maturação da liberdade da vontade. Somos confrontados com a tarefa de apresentar o crescimento gradual dessa liberdade, de revelar seus mecanismos e mostrá-lo como um produto do desenvolvimento.

Vimos que, para o clínico, o significado genético da vontade do histérico é claro. Nas palavras de Janet, ao estudar o histérico, estamos lidando com uma criança grande. Kretschmer diz do histérico que ele não pode ser convencido ou simplesmente forçado, ele deve ser constrangido.

O método com o qual afetamos a vontade em casos difíceis de histeria é semelhante ao conceito de treinamento. Não difere em princípio da vontade no sentido superior da palavra. Este último não cria novos mecanismos. Isso é evidente pelo fato de que as pessoas de quem falamos como fortes baseiam essa característica em uma hipobulia bem conservada.

A perspectiva filosófica se abre diante de nós neste ponto de nosso estudo. Pela primeira vez no processo de estudos psicológicos, podemos resolver problemas essencialmente puramente filosóficos por meio de um experimento psicológico, e demonstrar empiricamente a origem da liberdade da vontade humana. Não podemos traçar, em toda a sua abrangência, a perspectiva filosófica que se abre diante de nós aqui. Esperamos fazer isso em outro trabalho dedicado especificamente à filosofia. Agora vamos tentar apenas observar essa perspectiva, a fim de ver mais claramente o lugar que alcançamos. Não podemos deixar de notar que chegamos ao mesmo entendimento de liberdade e autocontrole que Spinoza desenvolveu em sua "Ética".

1931

Escrito por Lev Vigotski

Traduzido por J. Lima

Nota

“Natura non vincitur nisi parendo” (A natureza só é comandada se é obedecida), Aforisma 3 do Livro 1 de Novum Organum Scientiarum, Francis Bacon.

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