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"O papel da cultura na luta pela independência"

Foto do escritor: NOVACULTURA.infoNOVACULTURA.info

Prólogo


Apenas o desejo consciente de corresponder ao amável convite da UNESCO e uma profunda convicção da importância do tema que nos foi proposto permitiram a elaboração deste modesto trabalho, numa altura em que as nossas obrigações, no âmbito da difícil luta de libertação do nosso povo, exigem uma mobilização de todo o nosso tempo para o estudo e a solução dos problemas nacionais.


Em vez de explorar exaustivamente os diversos pontos propostos à discussão, sem lhes minimizar de forma alguma o interesse e a acuidade, preferimos centrar a nossa atenção na importância do papel da cultura no movimento de pré-independência ou de libertação. Não dispondo, evidentemente, de tempo para manusear livros e documentos que nos teriam com certeza permitido fundamentar e enriquecer o conteúdo do nosso trabalho, limitamo-nos praticamente a transmitir o resultado da nossa experiência e das nossas observações, tanto no âmbito da nossa luta como no estudo das outras lutas contra o domínio imperialista. Na parte que especificamente se refere ao papel da cultura no movimento de libertação, utilizamos e desenvolvemos algumas das ideias e das considerações contidas na conferência que fizemos, em fevereiro de 1970, na Universidade de Siracusa (EUA), subordinada ao tema “libertação nacional e cultura”.


É inútil recordar que as condições em que este trabalho foi escrito, aliadas às limitações dos nossos conhecimentos, fazem com que tenha deficiências que a generosidade do leitor saberá, senão desculpar, pelo menos compreender. No entanto, se conseguirmos convencê-lo (ou reforçar as suas convicções) da importância decisiva da cultura na evolução do movimento de libertação, este trabalho terá sido útil.


Pessoalmente, esperamos que a UNESCO não tenha cometido um grave erro confundindo corajosamente o Combatente e o investigador. O combate pela libertação e o progresso do povo é também, ou deve ser, um estudo permanente nos campos da educação, da ciência e da cultura.


Junho de 1972



INTRODUÇÃO


A luta dos povos pela libertação nacional e pela independência, contra o domínio imperialista, tornou-se uma forca imensa de progresso para a humanidade e constitui, sem dúvida, um dos traços essenciais da história do nosso tempo.


Uma análise objetiva e sem paixão do imperialismo, enquanto fato ou fenômeno histórico “natural”, ou seja, “necessário” no contexto do tipo de evolução econômico-política duma grande parte da humanidade, revela que o domínio imperialista, com todo o seu cortejo de misérias, de pilhagens, de crimes e de destruição de valores humanos e culturais, não foi senão uma realidade negativa. A imensa acumulação monopolista do capital numa meia dúzia de países do hemisfério norte, como resultado da pirataria do saque dos bens de outros povos e da exploração desenfreada do trabalho desses povos provocou o monopólio das colônias, a partilha do mundo e o domínio imperialista.


Nos países ricos, o capital imperialista, sempre à procura de mais-valia, aumentou a capacidade criadora do homem, operou uma profunda transformação dos meios de produção (forças produtivas materiais) graças aos progressos acelerados da ciência da técnica e da tecnologia, acentuou a socialização do trabalho e permitiu em considerável escala o ascenso de vastas camadas da população. Nos países colonizados, onde a colonização bloqueou em geral, o processo histórico do desenvolvimento dos povos dominados, quando não procedeu à sua eliminação radical ou progressiva, o capital imperialista impôs novos tipos de relações no seio da sociedade autóctone, cuja estrutura se tornou mais complexa, suscitou, fomentou, envenenou ou resolveu contradições e conflitos sociais, introduziu particularmente com o ciclo da moeda e o desenvolvimento do mercado interno e externo novos elementos na economia; levou, sob a influência de uni novo tipo de dominação de classe (colonialista e racista) ao nascimento de novas nações a partir de grupos humanos e de povos que se encontravam em estados diversos de desenvolvimento histórico.


É certo que o imperialismo, como capital em ação, não cumpriu, nos países estrangeiros dominados, a missão histórica que realizou nos países ricos. Não é defender o domínio imperialista reconhecer que deu novos mundos ao mundo, cujas dimensões reduziu, que revelou novas fases de desenvolvimento das sociedades humanas e a despeito ou por causa dos preconceitos, das discriminações e dos crimes aos quais deu lugar, contribuiu para dar um conhecimento mais profundo da humanidade como um todo em movimento, como uma unidade na diversidade complexa das características do seu desenvolvimento.


O domínio imperialista sobre diversos continentes favoreceu uma confrontação multilateral e progressiva (por vezes abruptas) não só entre homens diferentes, mas também entre sociedades diferentes, tanto pelas características somáticas das populações como, principalmente, pelo grau e tipo de desenvolvimento histórico, pelo nível das forças produtivas, pelos dados essenciais da estrutura social e pela cultura. A prática do domínio imperialista a sua afirmação ou a sua negação - exigiu (e exige ainda) o conhecimento mais ou menos correto do objeto dominado e da realidade histórica (econômica, social e cultural) no seio da qual ele se move conhecimento esse que se exprime necessariamente em termos de comparação com o sujeito dominador e com a sua própria realidade histórica. Um tal conhecimento é uma necessidade imperiosa da prática do domínio imperialista, que resulta da confrontação, em geral violenta, de duas identidades distintas no seu conteúdo histórico e antagônicas nas suas funções. A procura de um tal conhecimento, tanto para defender como para contestar o domínio imperialista, contribuiu para um enriquecimento geral das ciências humanas e sociais, apesar do caráter unilateral, subjetivo e muitas vezes imbuído de preconceitos da maior parte das abordagens e dos resultados obtidos nesta procura.


Na realidade, nunca o homem se interessou tanto pelo conhecimento de outros homens e de outras sociedades como no decurso deste século do imperialismo e do domínio imperialista uma quantidade sem precedentes de informações, hipóteses e teorias acumulou-se assim, especialmente nos domínios da história, da etnologia, da etnografia, da sociologia e da cultura relativas aos povos ou aos grupos humanos submetidos ao domínio imperialista Os conceitos de raça, casta, etnia, tribo, nação, cultura identidade, dignidade e tantos outros ainda, tornaram-se alvo de uma atenção crescente por parte dos que estudam o homem e as sociedades ditas “primitivas” ou em “evolução” Mais recentemente, com o incremento da luta pela libertação, que é a negação do domínio imperialista, surgiu a necessidade de analisar e conhecer as características dessas sociedades em função da luta e determinar os fatores que provocam ou travam essa luta exercendo uma influência positiva ou negativa sobre a sua evolução. Os investigadores concordam em geral que, neste contexto a cultura se reveste de uma importância especial. Pode-se, portanto, admitir que qualquer tentativa visando o esclarecimento do verdadeiro papel da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação (pré-independência) pode ser um contributo útil para a luta geral dos povos contra o domínio imperialista.

I


O fato de os movimentos de independência serem em geral marcados, logo na sua fase inicial, por um surto de manifestações de caráter cultural, fez admitir que esses movimentos são precedidos por um “renascimento cultural” do povo dominado. Vai-se mesmo mais longe, admitindo que a cultura é um método de mobilização de grupo e até uma arma na luta pela independência.


A partir da experiência da nossa própria luta, e poder-se-ia dizer, de toda a África, julgamos que se trata de uma concepção demasiado limitada, senão mesmo errônea, do papel primordial da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação. Essa limitação ou esse erro provêm, pensamos, de uma generalização incorreta de um fenômeno real, mas restrito, que se situa a um determinado nível das elites ou das diásporas coloniais. Generalização essa que ignora ou negligencia o dado essencial do problema: o caráter indestrutível da resistência cultural do povo – das massas populares — face ao domínio estrangeiro.


A prática do domínio imperialista exige, como fator de segurança, a opressão cultural e a tentativa de liquidação, direta ou indireta, dos dados essenciais da cultura do povo dominado. Mas este só pode criar e desenvolver o movimento de libertação por guardar bem viva a sua cultura, apesar da repressão permanente e organizada da sua vida cultural; por, anulada a sua resistência político-militar, continuar a resistir culturalmente. E é a resistência cultural que, num determinado momento, de acordo com os fatores internos e externos que condicionam a evolução da sociedade em questão, assim como as suas relações com a potência colonial, pode assumir novas formas (políticas, econômicas, armadas) para contestar o domínio estrangeiro.


Com exceção dos casos de genocídio das populações autóctones ou da sua redução violenta a um mínimo social e culturalmente insignificante, o tempo de colonização não foi suficiente para permitir, pelo menos em África, uma destruição ou uma depreciação significativa dos elementos essenciais da cultura e das tradições do povo colonizado. A experiência colonial do domínio imperialista em África revela que (excetuando o genocídio, a segregação racial e o “apartheid”) a única solução pretensa- mente positiva encontrada pelo poderio colonial para negar a resistência cultural do povo colonizado é a assimilação. Mas o insucesso total da política de “assimilação progressiva” das populações nativas é a prova evidente tanto da falsidade desta teoria como da capacidade de resistência dos povos dominados a uma tentativa de destruição ou depreciação do seu patrimônio cultural.


Por outro lado, mesmo nas colônias de povoamento, onde a grande maioria da população continua composta por autóctones, a expansão da ocupação colonial e, especialmente, da ocupação cultural, está em geral reduzida às zonas costeiras e a algumas zonas restritas do interior. A influência da cultura da potência colonial é quase nula na estrutura horizontal da sociedade dominada, para além dos limites da capital e de outros centros urbanos. Só e sentida de maneira significativa na vertical da pirâmide social colonial — a que o próprio colonialista criou — e exerce-se especialmente sobre o que se pode chamar a “pequena burguesia autóctone” e sobre um número muito reduzido de trabalhadores dos centros urbanos.


Constata-se, portanto, que as grandes massas rurais, assim como uma fração importante da população urbana, num total de mais de 99 por cento da população indígena permanecem livres, ou quase, de qualquer influência cultural da potência colonial. Esta situação é originada, por um lado, pelo caráter necessariamente obscurantista do domínio imperialista que, desprezando e reprimindo a cultura do povo dominado, não tem qualquer interesse em promover a aculturação das massas populares, fonte de mão-de-obra para os trabalhos forçados e principal alvo da exploração; por outro lado, a eficácia da resistência cultural dessas massas que, submetidas ao domínio político e à exploração econômica, encontram na sua própria cultura o único reduto susceptível de preservar a sua identidade. Esta defesa do patrimônio cultural é ainda reforçada, nos casos em que a sociedade autóctone tem uma estrutura vertical, pelo interesse que a potência colonial tem em proteger e reforçar a influência cultural das classes dominantes, suas aliadas.


O que se disse anteriormente implica que, não só para as massas populares do país dominado — para as classes ou camadas sociais trabalhadoras do campo e das cidades -, mas também para as classes dominantes autóctones (chefes tradicionais, famílias nobres, autoridades religiosas), não há, em geral, destruição ou depreciação significativa da cultura o das tradições. Reprimida, perseguida, humilhada, traída por um certo número de categorias sociais comprometidas com o estrangeiro, refugiada nas aldeias, nas florestas e no espírito das gerações vítimas de dominação, a cultura sobrevive a todas as tempestades para retomar graças as lutas de libertação, toda a sua faculdade de desenvolvimento. Eis porque o problema de um “retorno às fontes” ou de um renascimento cultural” não se põe nem poderia pôr-se para as massas populares, visto que elas são portadoras da sua cultura própria, são a fonte da cultura e, ao mesmo tempo, a única entidade verdadeiramente capaz de preservar e de criar a cultura – de fazer a história.


Para uma apreciação correta do verdadeiro papel da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação é preciso portanto (pelo menos em África), fazer a distinção entre a situação das massas populares, que preservam a sua cultura, e a das categorias sociais mais ou menos assimiladas, desenraizadas e culturalmente alienadas ou simplesmente desprovidas de qualquer elemento nativo no processo da sua formação cultural. Ao contrário do que se verifica com as massas populares, as elites coloniais autóctones, forjadas pelo processo de colonização, apesar de serem portadoras de um certo número de elementos culturais próprios da sociedade autóctone, vivem material e espiritualmente a cultura do estrangeiro colonialista, com o qual procuram identificar-se progressivamente, quer no comportamento social, quer na própria apreciação dos valores culturais indígenas.


Ao longo de duas ou três gerações de colonizados, forma-se uma camada social constituída por funcionários do Estado e por empregados dos diversos ramos da economia (especialmente do comércio), assim como por membros das profissões liberais e por alguns proprietários urbanos e agrícolas. Esta nova classe — a pequena burguesia autóctone —, forjada pelo domínio estrangeiro e indispensável ao sistema de exploração colonial, situa-se entre as massas populares trabalhadoras do campo e dos centros urbanos e a minoria de representantes locais da classe dominante estrangeira. Ainda que possa ter relações mais ou menos desenvolvidas com as massas populares ou com os chefes tradicionais, aspira, em geral, a um estilo de vida semelhante, senão idêntico, ao da minoria estrangeira; simultaneamente, enquanto limita as suas relações com as massas, tenta integrar-se nessa minoria, ainda que muitas vezes em detrimento dos laços familiares ou étnicos e sempre graças a esforços individuais. Mas não chega, quaisquer que sejam as exceções aparentes, a franquear as barreiras impostas pelo sistema: está prisioneira das contradições da realidade cultural e social em que vive, porque não pode fugir, na paz colonial, a sua condição de classe marginal ou “marginalizada” Esta marginalidade” constitui, tanto localmente como no seio das diásporas implantadas na metrópole colonialista, o drama sócio- cultural das elites coloniais ou da pequena burguesia indígena, vivido mais ou menos intensamente segundo as circunstâncias materiais e o nível de aculturação, mas sempre no plano individual, não coletivo.


É no contexto desse drama quotidiano, sobre o pano de fundo da confrontação geralmente violenta entre as massas populares e a classe colonial dominante, que surge e se desenvolve na pequena burguesia indígena um sentimento de amargura ou um complexo de frustração e, paralelamente, uma necessidade urgente, de que ela toma pouco a pouco consciência, de contestar a sua marginalidade e de descobrir uma identidade. Resultante do fracasso da tentativa de identificação com a classe dominante estrangeira, para a qual é impulsionada tanto pelos elementos essenciais da sua formação cultural como pelas suas aspirações sociais, esta necessidade de libertação do complexo de frustração e da marginalidade leva a pequena burguesia autóctone a voltar-se para o outro polo do conflito sociocultural no seio do qual vive – as massas populares indígenas —, procurando uma identidade. Como vimos, a sociedade dominada (por estar vencida, oprimida e reprimida nos planos econômico e político) preserva, apesar de todas as tentativas de destruição da parte da potência colonial, o essencial da sua cultura e continua a sua resistência cultural, que é indestrutível. Só no domínio cultural a pequena burguesia autóctone pode tentar satisfazer essa necessidade de libertação e de conquista de uma identidade.


Daí o “retorno às fontes”, que parece tanto mais imperioso quanto o isolamento da pequena burguesia (ou das elites nativas) for grande e quanto o seu sentimento ou complexo de frustração for agudo, como em relação às diásporas africanas implantadas nas metrópoles colonialistas e racistas. Não é, pois, por acaso que teorias ou movimentos” tais como o pan-africanismo e a negritude, duas expressões pertinentes do “regresso às fontes” - baseadas principalmente no postulado da identidade cultural de todos os africanos negros — foram concebidas em espaços culturais distintos dos da África negra. Mais recentemente, a reivindicação, feita pelos negros americanos, de uma identidade africana, e outra manifestação, talvez desesperada, de uma tentativa de “retorno às fontes”, embora nitidamente influenciada por uma realidade nova – a conquista da independência política pela grande maioria dos povos africanos. Caracteriza-se principalmente, nos seus aspectos visíveis, pela manifestação, muitas vezes ostentatória, de um desejo mais ou menos consciente de identificação cultural.


Mas o retorno às fontes” não é, nem pode ser, em si próprio, um ato de luta contra o domínio estrangeiro (colonialista e/ou racista) e já não significa necessariamente um retorno às tradições. E a negação, pela pequena burguesia indígena, da pretensa supremacia da cultura da potência dominante sobre a do povo dominado, com o qual tem necessidade de se identificar para resolver o conflito sociocultural em que se debate procurando uma identidade. O “retorno às fontes” não é pois uma démarche voluntária, mas a única resposta viável à solicitação imperiosa de uma necessidade concreta, histórica, determinada pela contradição irredutível que opõe a sociedade colonizada à potência colonial, as massas populares exploradas à classe estrangeira exploradora, contradição em relação à qual cada camada social ou classe indígena é obrigada a definir uma posição.


Quando o “retorno às fontes” ultrapassa o caso individual para se exprimir através de “grupos” ou de “movimentos” os fatores que condicionam, tanto interna como externamente, a evolução político-econômica da sociedade, atingiram já o nível em que esta contradição se transforma em conflito (velado ou aberto), prelúdio do movimento de pré-independência ou da luta pela libertação do jugo estrangeiro. Assim, o “retorno às fontes” só e historicamente consequente se implicar não apenas um comprometimento real na luta pela independência, mas também uma identificação total e definitiva com as aspirações das massas populares, que não contestam somente a cultura do estrangeiro, mas ainda, globalmente, o domínio estrangeiro. Doutro modo, o “retorno as fontes” não é mais do que uma solução que pretende obter vantagens temporárias, uma forma, consciente ou inconsciente, de oportunismo político da parte da pequena burguesia.


É preciso notar que o fenômeno do “retorno às fontes” quer seja aparente ou real, não se produz de maneira global simultânea e uniforme, no seio da pequena burguesia autóctone. É um processo lento, descontínuo e desigual, cujo desenvolvimento, ao nível de cada indivíduo, depende do grau de aculturação, das condições materiais de existência, da formação ideológica e da própria história enquanto ser social.


Esta desigualdade está na base da cisão da pequena burguesia autóctone em três grupos distintos, face ao movimento de libertação:

· uma primeira minoria que, apesar de desejar o fim da dominação estrangeira, se prende à classe colonial dominante e se opõe abertamente a esse movimento para defender a sua segurança social;

· uma maioria de elementos hesitantes ou indecisos;

· uma segunda minoria cujos elementos participam na criação e na direção do movimento de libertação, de que são o principal elemento de fecundação.


Mas este último grupo, que desempenha um papel decisivo no desenvolvimento do movimento de pré-independência, não consegue identificar-se verdadeiramente com as massas populares (com a sua cultura e as suas aspirações) senão através da luta, dependendo o grau dessa identificação da forma ou das formas de luta, do conteúdo ideológico do movimento e do nível de consciência moral e política de cada indivíduo.

II


O principal problema do movimento de libertação — o da identificação de uma parte da pequena burguesia nativa com as massas populares — pressupõe uma condição essencial: que, contra a ação destrutiva do domínio imperialista, as massas populares preservem a sua identidade, diferente e distinta da potência colonial. Parece, portanto, interessante determinar em que casos esta preservação é possível; por que, quando e a que níveis da sociedade dominada se põe o problema da perda ou da ausência de identidade e, portanto, a necessidade de afirmar ou de reafirmar, no âmbito do movimento de pré-independência, uma identidade diferente e distinta da potência colonial.


A identidade de um indivíduo ou de um determinado grupo humano é uma qualidade biossociológica, independente da vontade desse indivíduo ou desse grupo, mas que só tem significado ao ser expressa em relação a outros indivíduos ou a outros grupos humanos. A natureza dialética da identidade reside no fato de que ela identifica e distingue, porque um indivíduo (ou um grupo humano) não é idêntico a determinados indivíduos (ou grupos) senão se for distinto de outros indivíduos (ou grupos humanos). A definição de uma identidade, individual ou coletiva, é, portanto, simultaneamente, a afirmação e a negação de um determinado número de características que definem indivíduos ou coletividades em função de coordenadas históricas (biológicas e sociológicas), em dado momento da sua evolução. Com efeito, a identidade não é uma qualidade imutável, precisamente porque os dados biológicos e sociológicos que a definem estão em permanente evolução. Quer biológica, quer sociologicamente, não existem, no tempo, dois seres (individuais ou coletivos) absolutamente idênticos, ou absolutamente distintos, porque é sempre possível encontrar características que os distinguem ou que os identifiquem. Da mesma forma, a identidade de um ser é sempre uma qualidade relativa, não exata, mesmo circunstancial, porque a sua definição exige uma seleção mais ou menos rigorosa ou restritiva das características biológicas e sociológicas do ser em questão.


É preciso notar que, no binômio fundamental da definição da identidade, o sociológico é mais determinante do que o biológico. Com efeito, se é certo que o elemento biológico (o patrimônio genético) é a base material indispensável à existência e a continuidade evolutiva da identidade, não deixa de ser um fato que o elemento sociológico é o fator que, dando-lhe um conteúdo e uma forma, imprime significado objetivo a essa qualidade, permitindo a confrontação ou a comparação entre indivíduos ou entre grupos de indivíduos. Para uma definição integral da identidade, a caracterização do elemento biológico é indispensável, mas não implica uma identificação no plano sociológico, enquanto que dois seres ou mais, sociologicamente idênticos, têm necessariamente uma identidade semelhante no plano biológico.


Este fato revela, por um lado, a supremacia da vida social sobre a vida individual, porque a sociedade (humana, por exemplo) é uma forma superior de vida; sugere, por outro lado, a necessidade de não confundir, na apreciação da identidade, a identidade original, em que o elemento biológico é a determinante principal, com a identidade atual, na qual a determinante principal é o elemento sociológico. É evidente que a identidade que é necessário ter em consideração num determinado momento da evolução de um ser (individual ou coletivo) é a identidade atual e qualquer apreciação desse ser feita unicamente com base na sua identidade original está incompleta, parcial e imbuída de preconceitos, tendo em conta que esquece ou ignora a influência decisiva da realidade social (material e espiritual) sobre o conteúdo e a forma da identidade.


Na formação e desenvolvimento da identidade individual ou coletiva, a realidade social é um agente objetivo, resultante dos fatores econômicos, políticos, sociais e culturais que caracterizam a evolução ou a história da sociedade em questão. Se considerarmos que, entre esses fatores, o econômico é fundamental, podemos afirmar que a identidade é, de certa maneira, a expressão de uma realidade econômica. Essa realidade — sejam quais forem os meios geográficos e a via de desenvolvimento da sociedade — é definida pelo nível das forças produtivas (relação entre o homem e a natureza) e pelo modo de produção (relações entre os homens ou as categorias de homens no seio da mesma sociedade). Mas, se admitirmos que a cultura é a síntese dinâmica da realidade material e espiritual da sociedade e exprime as relações tanto entre o homem e a natureza como entre as diferentes categorias de homens no seio de uma mesma sociedade, podemos afirmar que a identidade é, a nível individual ou coletivo e para além da realidade econômica, a expressão de uma cultura. É por isso que atribuir, reconhecer ou afirmar a identidade de um indivíduo ou de um grupo humano é, acima de tudo