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"O papel da cultura na luta pela independência"


Prólogo


Apenas o desejo consciente de corresponder ao amável convite da UNESCO e uma profunda convicção da importância do tema que nos foi proposto permitiram a elaboração deste modesto trabalho, numa altura em que as nossas obrigações, no âmbito da difícil luta de libertação do nosso povo, exigem uma mobilização de todo o nosso tempo para o estudo e a solução dos problemas nacionais.


Em vez de explorar exaustivamente os diversos pontos propostos à discussão, sem lhes minimizar de forma alguma o interesse e a acuidade, preferimos centrar a nossa atenção na importância do papel da cultura no movimento de pré-independência ou de libertação. Não dispondo, evidentemente, de tempo para manusear livros e documentos que nos teriam com certeza permitido fundamentar e enriquecer o conteúdo do nosso trabalho, limitamo-nos praticamente a transmitir o resultado da nossa experiência e das nossas observações, tanto no âmbito da nossa luta como no estudo das outras lutas contra o domínio imperialista. Na parte que especificamente se refere ao papel da cultura no movimento de libertação, utilizamos e desenvolvemos algumas das ideias e das considerações contidas na conferência que fizemos, em fevereiro de 1970, na Universidade de Siracusa (EUA), subordinada ao tema “libertação nacional e cultura”.


É inútil recordar que as condições em que este trabalho foi escrito, aliadas às limitações dos nossos conhecimentos, fazem com que tenha deficiências que a generosidade do leitor saberá, senão desculpar, pelo menos compreender. No entanto, se conseguirmos convencê-lo (ou reforçar as suas convicções) da importância decisiva da cultura na evolução do movimento de libertação, este trabalho terá sido útil.


Pessoalmente, esperamos que a UNESCO não tenha cometido um grave erro confundindo corajosamente o Combatente e o investigador. O combate pela libertação e o progresso do povo é também, ou deve ser, um estudo permanente nos campos da educação, da ciência e da cultura.


Junho de 1972



INTRODUÇÃO


A luta dos povos pela libertação nacional e pela independência, contra o domínio imperialista, tornou-se uma forca imensa de progresso para a humanidade e constitui, sem dúvida, um dos traços essenciais da história do nosso tempo.


Uma análise objetiva e sem paixão do imperialismo, enquanto fato ou fenômeno histórico “natural”, ou seja, “necessário” no contexto do tipo de evolução econômico-política duma grande parte da humanidade, revela que o domínio imperialista, com todo o seu cortejo de misérias, de pilhagens, de crimes e de destruição de valores humanos e culturais, não foi senão uma realidade negativa. A imensa acumulação monopolista do capital numa meia dúzia de países do hemisfério norte, como resultado da pirataria do saque dos bens de outros povos e da exploração desenfreada do trabalho desses povos provocou o monopólio das colônias, a partilha do mundo e o domínio imperialista.


Nos países ricos, o capital imperialista, sempre à procura de mais-valia, aumentou a capacidade criadora do homem, operou uma profunda transformação dos meios de produção (forças produtivas materiais) graças aos progressos acelerados da ciência da técnica e da tecnologia, acentuou a socialização do trabalho e permitiu em considerável escala o ascenso de vastas camadas da população. Nos países colonizados, onde a colonização bloqueou em geral, o processo histórico do desenvolvimento dos povos dominados, quando não procedeu à sua eliminação radical ou progressiva, o capital imperialista impôs novos tipos de relações no seio da sociedade autóctone, cuja estrutura se tornou mais complexa, suscitou, fomentou, envenenou ou resolveu contradições e conflitos sociais, introduziu particularmente com o ciclo da moeda e o desenvolvimento do mercado interno e externo novos elementos na economia; levou, sob a influência de uni novo tipo de dominação de classe (colonialista e racista) ao nascimento de novas nações a partir de grupos humanos e de povos que se encontravam em estados diversos de desenvolvimento histórico.


É certo que o imperialismo, como capital em ação, não cumpriu, nos países estrangeiros dominados, a missão histórica que realizou nos países ricos. Não é defender o domínio imperialista reconhecer que deu novos mundos ao mundo, cujas dimensões reduziu, que revelou novas fases de desenvolvimento das sociedades humanas e a despeito ou por causa dos preconceitos, das discriminações e dos crimes aos quais deu lugar, contribuiu para dar um conhecimento mais profundo da humanidade como um todo em movimento, como uma unidade na diversidade complexa das características do seu desenvolvimento.


O domínio imperialista sobre diversos continentes favoreceu uma confrontação multilateral e progressiva (por vezes abruptas) não só entre homens diferentes, mas também entre sociedades diferentes, tanto pelas características somáticas das populações como, principalmente, pelo grau e tipo de desenvolvimento histórico, pelo nível das forças produtivas, pelos dados essenciais da estrutura social e pela cultura. A prática do domínio imperialista a sua afirmação ou a sua negação - exigiu (e exige ainda) o conhecimento mais ou menos correto do objeto dominado e da realidade histórica (econômica, social e cultural) no seio da qual ele se move conhecimento esse que se exprime necessariamente em termos de comparação com o sujeito dominador e com a sua própria realidade histórica. Um tal conhecimento é uma necessidade imperiosa da prática do domínio imperialista, que resulta da confrontação, em geral violenta, de duas identidades distintas no seu conteúdo histórico e antagônicas nas suas funções. A procura de um tal conhecimento, tanto para defender como para contestar o domínio imperialista, contribuiu para um enriquecimento geral das ciências humanas e sociais, apesar do caráter unilateral, subjetivo e muitas vezes imbuído de preconceitos da maior parte das abordagens e dos resultados obtidos nesta procura.


Na realidade, nunca o homem se interessou tanto pelo conhecimento de outros homens e de outras sociedades como no decurso deste século do imperialismo e do domínio imperialista uma quantidade sem precedentes de informações, hipóteses e teorias acumulou-se assim, especialmente nos domínios da história, da etnologia, da etnografia, da sociologia e da cultura relativas aos povos ou aos grupos humanos submetidos ao domínio imperialista Os conceitos de raça, casta, etnia, tribo, nação, cultura identidade, dignidade e tantos outros ainda, tornaram-se alvo de uma atenção crescente por parte dos que estudam o homem e as sociedades ditas “primitivas” ou em “evolução” Mais recentemente, com o incremento da luta pela libertação, que é a negação do domínio imperialista, surgiu a necessidade de analisar e conhecer as características dessas sociedades em função da luta e determinar os fatores que provocam ou travam essa luta exercendo uma influência positiva ou negativa sobre a sua evolução. Os investigadores concordam em geral que, neste contexto a cultura se reveste de uma importância especial. Pode-se, portanto, admitir que qualquer tentativa visando o esclarecimento do verdadeiro papel da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação (pré-independência) pode ser um contributo útil para a luta geral dos povos contra o domínio imperialista.

I


O fato de os movimentos de independência serem em geral marcados, logo na sua fase inicial, por um surto de manifestações de caráter cultural, fez admitir que esses movimentos são precedidos por um “renascimento cultural” do povo dominado. Vai-se mesmo mais longe, admitindo que a cultura é um método de mobilização de grupo e até uma arma na luta pela independência.


A partir da experiência da nossa própria luta, e poder-se-ia dizer, de toda a África, julgamos que se trata de uma concepção demasiado limitada, senão mesmo errônea, do papel primordial da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação. Essa limitação ou esse erro provêm, pensamos, de uma generalização incorreta de um fenômeno real, mas restrito, que se situa a um determinado nível das elites ou das diásporas coloniais. Generalização essa que ignora ou negligencia o dado essencial do problema: o caráter indestrutível da resistência cultural do povo – das massas populares — face ao domínio estrangeiro.


A prática do domínio imperialista exige, como fator de segurança, a opressão cultural e a tentativa de liquidação, direta ou indireta, dos dados essenciais da cultura do povo dominado. Mas este só pode criar e desenvolver o movimento de libertação por guardar bem viva a sua cultura, apesar da repressão permanente e organizada da sua vida cultural; por, anulada a sua resistência político-militar, continuar a resistir culturalmente. E é a resistência cultural que, num determinado momento, de acordo com os fatores internos e externos que condicionam a evolução da sociedade em questão, assim como as suas relações com a potência colonial, pode assumir novas formas (políticas, econômicas, armadas) para contestar o domínio estrangeiro.


Com exceção dos casos de genocídio das populações autóctones ou da sua redução violenta a um mínimo social e culturalmente insignificante, o tempo de colonização não foi suficiente para permitir, pelo menos em África, uma destruição ou uma depreciação significativa dos elementos essenciais da cultura e das tradições do povo colonizado. A experiência colonial do domínio imperialista em África revela que (excetuando o genocídio, a segregação racial e o “apartheid”) a única solução pretensa- mente positiva encontrada pelo poderio colonial para negar a resistência cultural do povo colonizado é a assimilação. Mas o insucesso total da política de “assimilação progressiva” das populações nativas é a prova evidente tanto da falsidade desta teoria como da capacidade de resistência dos povos dominados a uma tentativa de destruição ou depreciação do seu patrimônio cultural.


Por outro lado, mesmo nas colônias de povoamento, onde a grande maioria da população continua composta por autóctones, a expansão da ocupação colonial e, especialmente, da ocupação cultural, está em geral reduzida às zonas costeiras e a algumas zonas restritas do interior. A influência da cultura da potência colonial é quase nula na estrutura horizontal da sociedade dominada, para além dos limites da capital e de outros centros urbanos. Só e sentida de maneira significativa na vertical da pirâmide social colonial — a que o próprio colonialista criou — e exerce-se especialmente sobre o que se pode chamar a “pequena burguesia autóctone” e sobre um número muito reduzido de trabalhadores dos centros urbanos.


Constata-se, portanto, que as grandes massas rurais, assim como uma fração importante da população urbana, num total de mais de 99 por cento da população indígena permanecem livres, ou quase, de qualquer influência cultural da potência colonial. Esta situação é originada, por um lado, pelo caráter necessariamente obscurantista do domínio imperialista que, desprezando e reprimindo a cultura do povo dominado, não tem qualquer interesse em promover a aculturação das massas populares, fonte de mão-de-obra para os trabalhos forçados e principal alvo da exploração; por outro lado, a eficácia da resistência cultural dessas massas que, submetidas ao domínio político e à exploração econômica, encontram na sua própria cultura o único reduto susceptível de preservar a sua identidade. Esta defesa do patrimônio cultural é ainda reforçada, nos casos em que a sociedade autóctone tem uma estrutura vertical, pelo interesse que a potência colonial tem em proteger e reforçar a influência cultural das classes dominantes, suas aliadas.


O que se disse anteriormente implica que, não só para as massas populares do país dominado — para as classes ou camadas sociais trabalhadoras do campo e das cidades -, mas também para as classes dominantes autóctones (chefes tradicionais, famílias nobres, autoridades religiosas), não há, em geral, destruição ou depreciação significativa da cultura o das tradições. Reprimida, perseguida, humilhada, traída por um certo número de categorias sociais comprometidas com o estrangeiro, refugiada nas aldeias, nas florestas e no espírito das gerações vítimas de dominação, a cultura sobrevive a todas as tempestades para retomar graças as lutas de libertação, toda a sua faculdade de desenvolvimento. Eis porque o problema de um “retorno às fontes” ou de um renascimento cultural” não se põe nem poderia pôr-se para as massas populares, visto que elas são portadoras da sua cultura própria, são a fonte da cultura e, ao mesmo tempo, a única entidade verdadeiramente capaz de preservar e de criar a cultura – de fazer a história.


Para uma apreciação correta do verdadeiro papel da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação é preciso portanto (pelo menos em África), fazer a distinção entre a situação das massas populares, que preservam a sua cultura, e a das categorias sociais mais ou menos assimiladas, desenraizadas e culturalmente alienadas ou simplesmente desprovidas de qualquer elemento nativo no processo da sua formação cultural. Ao contrário do que se verifica com as massas populares, as elites coloniais autóctones, forjadas pelo processo de colonização, apesar de serem portadoras de um certo número de elementos culturais próprios da sociedade autóctone, vivem material e espiritualmente a cultura do estrangeiro colonialista, com o qual procuram identificar-se progressivamente, quer no comportamento social, quer na própria apreciação dos valores culturais indígenas.


Ao longo de duas ou três gerações de colonizados, forma-se uma camada social constituída por funcionários do Estado e por empregados dos diversos ramos da economia (especialmente do comércio), assim como por membros das profissões liberais e por alguns proprietários urbanos e agrícolas. Esta nova classe — a pequena burguesia autóctone —, forjada pelo domínio estrangeiro e indispensável ao sistema de exploração colonial, situa-se entre as massas populares trabalhadoras do campo e dos centros urbanos e a minoria de representantes locais da classe dominante estrangeira. Ainda que possa ter relações mais ou menos desenvolvidas com as massas populares ou com os chefes tradicionais, aspira, em geral, a um estilo de vida semelhante, senão idêntico, ao da minoria estrangeira; simultaneamente, enquanto limita as suas relações com as massas, tenta integrar-se nessa minoria, ainda que muitas vezes em detrimento dos laços familiares ou étnicos e sempre graças a esforços individuais. Mas não chega, quaisquer que sejam as exceções aparentes, a franquear as barreiras impostas pelo sistema: está prisioneira das contradições da realidade cultural e social em que vive, porque não pode fugir, na paz colonial, a sua condição de classe marginal ou “marginalizada” Esta marginalidade” constitui, tanto localmente como no seio das diásporas implantadas na metrópole colonialista, o drama sócio- cultural das elites coloniais ou da pequena burguesia indígena, vivido mais ou menos intensamente segundo as circunstâncias materiais e o nível de aculturação, mas sempre no plano individual, não coletivo.


É no contexto desse drama quotidiano, sobre o pano de fundo da confrontação geralmente violenta entre as massas populares e a classe colonial dominante, que surge e se desenvolve na pequena burguesia indígena um sentimento de amargura ou um complexo de frustração e, paralelamente, uma necessidade urgente, de que ela toma pouco a pouco consciência, de contestar a sua marginalidade e de descobrir uma identidade. Resultante do fracasso da tentativa de identificação com a classe dominante estrangeira, para a qual é impulsionada tanto pelos elementos essenciais da sua formação cultural como pelas suas aspirações sociais, esta necessidade de libertação do complexo de frustração e da marginalidade leva a pequena burguesia autóctone a voltar-se para o outro polo do conflito sociocultural no seio do qual vive – as massas populares indígenas —, procurando uma identidade. Como vimos, a sociedade dominada (por estar vencida, oprimida e reprimida nos planos econômico e político) preserva, apesar de todas as tentativas de destruição da parte da potência colonial, o essencial da sua cultura e continua a sua resistência cultural, que é indestrutível. Só no domínio cultural a pequena burguesia autóctone pode tentar satisfazer essa necessidade de libertação e de conquista de uma identidade.


Daí o “retorno às fontes”, que parece tanto mais imperioso quanto o isolamento da pequena burguesia (ou das elites nativas) for grande e quanto o seu sentimento ou complexo de frustração for agudo, como em relação às diásporas africanas implantadas nas metrópoles colonialistas e racistas. Não é, pois, por acaso que teorias ou movimentos” tais como o pan-africanismo e a negritude, duas expressões pertinentes do “regresso às fontes” - baseadas principalmente no postulado da identidade cultural de todos os africanos negros — foram concebidas em espaços culturais distintos dos da África negra. Mais recentemente, a reivindicação, feita pelos negros americanos, de uma identidade africana, e outra manifestação, talvez desesperada, de uma tentativa de “retorno às fontes”, embora nitidamente influenciada por uma realidade nova – a conquista da independência política pela grande maioria dos povos africanos. Caracteriza-se principalmente, nos seus aspectos visíveis, pela manifestação, muitas vezes ostentatória, de um desejo mais ou menos consciente de identificação cultural.


Mas o retorno às fontes” não é, nem pode ser, em si próprio, um ato de luta contra o domínio estrangeiro (colonialista e/ou racista) e já não significa necessariamente um retorno às tradições. E a negação, pela pequena burguesia indígena, da pretensa supremacia da cultura da potência dominante sobre a do povo dominado, com o qual tem necessidade de se identificar para resolver o conflito sociocultural em que se debate procurando uma identidade. O “retorno às fontes” não é pois uma démarche voluntária, mas a única resposta viável à solicitação imperiosa de uma necessidade concreta, histórica, determinada pela contradição irredutível que opõe a sociedade colonizada à potência colonial, as massas populares exploradas à classe estrangeira exploradora, contradição em relação à qual cada camada social ou classe indígena é obrigada a definir uma posição.


Quando o “retorno às fontes” ultrapassa o caso individual para se exprimir através de “grupos” ou de “movimentos” os fatores que condicionam, tanto interna como externamente, a evolução político-econômica da sociedade, atingiram já o nível em que esta contradição se transforma em conflito (velado ou aberto), prelúdio do movimento de pré-independência ou da luta pela libertação do jugo estrangeiro. Assim, o “retorno às fontes” só e historicamente consequente se implicar não apenas um comprometimento real na luta pela independência, mas também uma identificação total e definitiva com as aspirações das massas populares, que não contestam somente a cultura do estrangeiro, mas ainda, globalmente, o domínio estrangeiro. Doutro modo, o “retorno as fontes” não é mais do que uma solução que pretende obter vantagens temporárias, uma forma, consciente ou inconsciente, de oportunismo político da parte da pequena burguesia.


É preciso notar que o fenômeno do “retorno às fontes” quer seja aparente ou real, não se produz de maneira global simultânea e uniforme, no seio da pequena burguesia autóctone. É um processo lento, descontínuo e desigual, cujo desenvolvimento, ao nível de cada indivíduo, depende do grau de aculturação, das condições materiais de existência, da formação ideológica e da própria história enquanto ser social.


Esta desigualdade está na base da cisão da pequena burguesia autóctone em três grupos distintos, face ao movimento de libertação:

· uma primeira minoria que, apesar de desejar o fim da dominação estrangeira, se prende à classe colonial dominante e se opõe abertamente a esse movimento para defender a sua segurança social;

· uma maioria de elementos hesitantes ou indecisos;

· uma segunda minoria cujos elementos participam na criação e na direção do movimento de libertação, de que são o principal elemento de fecundação.


Mas este último grupo, que desempenha um papel decisivo no desenvolvimento do movimento de pré-independência, não consegue identificar-se verdadeiramente com as massas populares (com a sua cultura e as suas aspirações) senão através da luta, dependendo o grau dessa identificação da forma ou das formas de luta, do conteúdo ideológico do movimento e do nível de consciência moral e política de cada indivíduo.

II


O principal problema do movimento de libertação — o da identificação de uma parte da pequena burguesia nativa com as massas populares — pressupõe uma condição essencial: que, contra a ação destrutiva do domínio imperialista, as massas populares preservem a sua identidade, diferente e distinta da potência colonial. Parece, portanto, interessante determinar em que casos esta preservação é possível; por que, quando e a que níveis da sociedade dominada se põe o problema da perda ou da ausência de identidade e, portanto, a necessidade de afirmar ou de reafirmar, no âmbito do movimento de pré-independência, uma identidade diferente e distinta da potência colonial.


A identidade de um indivíduo ou de um determinado grupo humano é uma qualidade biossociológica, independente da vontade desse indivíduo ou desse grupo, mas que só tem significado ao ser expressa em relação a outros indivíduos ou a outros grupos humanos. A natureza dialética da identidade reside no fato de que ela identifica e distingue, porque um indivíduo (ou um grupo humano) não é idêntico a determinados indivíduos (ou grupos) senão se for distinto de outros indivíduos (ou grupos humanos). A definição de uma identidade, individual ou coletiva, é, portanto, simultaneamente, a afirmação e a negação de um determinado número de características que definem indivíduos ou coletividades em função de coordenadas históricas (biológicas e sociológicas), em dado momento da sua evolução. Com efeito, a identidade não é uma qualidade imutável, precisamente porque os dados biológicos e sociológicos que a definem estão em permanente evolução. Quer biológica, quer sociologicamente, não existem, no tempo, dois seres (individuais ou coletivos) absolutamente idênticos, ou absolutamente distintos, porque é sempre possível encontrar características que os distinguem ou que os identifiquem. Da mesma forma, a identidade de um ser é sempre uma qualidade relativa, não exata, mesmo circunstancial, porque a sua definição exige uma seleção mais ou menos rigorosa ou restritiva das características biológicas e sociológicas do ser em questão.


É preciso notar que, no binômio fundamental da definição da identidade, o sociológico é mais determinante do que o biológico. Com efeito, se é certo que o elemento biológico (o patrimônio genético) é a base material indispensável à existência e a continuidade evolutiva da identidade, não deixa de ser um fato que o elemento sociológico é o fator que, dando-lhe um conteúdo e uma forma, imprime significado objetivo a essa qualidade, permitindo a confrontação ou a comparação entre indivíduos ou entre grupos de indivíduos. Para uma definição integral da identidade, a caracterização do elemento biológico é indispensável, mas não implica uma identificação no plano sociológico, enquanto que dois seres ou mais, sociologicamente idênticos, têm necessariamente uma identidade semelhante no plano biológico.


Este fato revela, por um lado, a supremacia da vida social sobre a vida individual, porque a sociedade (humana, por exemplo) é uma forma superior de vida; sugere, por outro lado, a necessidade de não confundir, na apreciação da identidade, a identidade original, em que o elemento biológico é a determinante principal, com a identidade atual, na qual a determinante principal é o elemento sociológico. É evidente que a identidade que é necessário ter em consideração num determinado momento da evolução de um ser (individual ou coletivo) é a identidade atual e qualquer apreciação desse ser feita unicamente com base na sua identidade original está incompleta, parcial e imbuída de preconceitos, tendo em conta que esquece ou ignora a influência decisiva da realidade social (material e espiritual) sobre o conteúdo e a forma da identidade.


Na formação e desenvolvimento da identidade individual ou coletiva, a realidade social é um agente objetivo, resultante dos fatores econômicos, políticos, sociais e culturais que caracterizam a evolução ou a história da sociedade em questão. Se considerarmos que, entre esses fatores, o econômico é fundamental, podemos afirmar que a identidade é, de certa maneira, a expressão de uma realidade econômica. Essa realidade — sejam quais forem os meios geográficos e a via de desenvolvimento da sociedade — é definida pelo nível das forças produtivas (relação entre o homem e a natureza) e pelo modo de produção (relações entre os homens ou as categorias de homens no seio da mesma sociedade). Mas, se admitirmos que a cultura é a síntese dinâmica da realidade material e espiritual da sociedade e exprime as relações tanto entre o homem e a natureza como entre as diferentes categorias de homens no seio de uma mesma sociedade, podemos afirmar que a identidade é, a nível individual ou coletivo e para além da realidade econômica, a expressão de uma cultura. É por isso que atribuir, reconhecer ou afirmar a identidade de um indivíduo ou de um grupo humano é, acima de tudo, situar esse indivíduo ou grupo no âmbito de uma cultura. Ora, como todos sabem, a base principal da cultura é, em todas as sociedades, a estrutura social. Parece mais licito concluir que a possibilidade de um determinado grupo humano preservar (ou perder) a sua identidade face ao domínio estrangeiro depende do grau de destruição verificada na sua estrutura social por esse mesmo domínio.


Quanto à ação e aos efeitos do domínio imperialista sobre a estrutura social do povo dominado, importa considerar aqui o caso do colonialismo clássico de que o movimento de pré-independência e a contestação. Nesse caso, seja qual for o grau de desenvolvimento histórico da sociedade dominada, a estrutura social pode sofrer as seguintes ações e efeitos:

· destruição total, com a liquidação imediata ou progressiva da população indígena e a sua substituição consequente por uma população alógena;

· destruição parcial, com fixação de uma população alógena mais ou menos numerosa;

· conservação aparente, condicionada pela reclusão da sociedade autóctone em zonas geográficas ou reservas próprias, geralmente desprovidas de possibilidades de vida, com implantação maciça de uma população alógena.


A experiência do domínio imperialista demonstra que a destruição completa da estrutura social, que implica a perda de identidade, só e possível com a liquidação total da população indígena ou pela sua redução a um mínimo social e culturalmente insignificante. Em contrapartida, nos dois últimos casos, que são os que interessa considerar em África, há a possibilidade de preservação da cultura e, portanto, da identidade, mesmo que a estrutura social sofra uma importante destruição parcial. Como é natural, esta possibilidade varia com os tipos e os tempos de colonização. Podemos, no entanto, afirmar que o domínio político, a exploração econômica e a repressão cultural praticadas pela potência colonial provocaram uma “cristalização” da cultura e uma sobrestimação” da identidade por parte dos grupos dominados, como principal efeito do bloqueamento do seu processo histórico pelo domínio imperialista.


O caráter fundamentalmente horizontal da estrutura social dos povos africanos — multiplicidade ou profusão de grupos étnicos — faz com que a resistência cultural e o grau de preservação da identidade não sejam uniformes. Desta forma, se é um fato que os grupos étnicos conseguiram, de uma forma geral, preservar a sua identidade e, portanto, não há perda dessa qualidade na horizontal social, verifica-se que os grupos mais resistentes são os que mais violentos choques tiveram com a potência colonial na fase da ocupação efetiva ou então aqueles que, devido à sua localização geográfica, tiveram menos contatos com a potência estrangeira.


Convém notar que a potência colonial defronta, de forma insolúvel, uma contradição no seu comportamento face aos grupos étnicos: por um lado, tem necessidade de dividir ou de manter a divisão para reinar e, por isso, mantém e fomenta a separação e mesmo as querelas entre os grupos étnicos; por outro lado, para tentar garantir a perpetuação do seu domínio, precisa de destruir a estrutura social desses grupos, a sua cultura e, portanto, a sua identidade. Além disso, é forçada a adotar uma política de proteção da estrutura social e de defesa das classes dirigentes dos grupos que (como, por exemplo, a etnia ou a nação fula, no nosso país) apoiarem decisivamente as suas guerras de conquista colonial — política que favorece a preservação da identidade do grupo.


Como já dissemos, de uma maneira geral, não se verificam modificações importantes no referente à cultura, na vertical da pirâmide ou das pirâmides sociais indígenas (grupos ou sociedades com um Estado). Cada camada ou classe mantém a sua identidade, tanto nos centros urbanos como em algumas zonas do interior do país onde a influência cultural da potência colonial é sensível, o problema da identidade é mais complexo. Enquanto que a base e o topo da pirâmide social (respectivamente, a maioria das massas populares trabalhadoras, constituída por indivíduos de etnias diferentes, e a classe estrangeira dominante) mantêm as suas identidades, a zona central dessa pirâmide (a pequena burguesia autóctone), culturalmente desenraizada, alienada ou mais ou menos assimilada, debate-se num conflito sociocultural, procurando uma identidade. É preciso notar ainda que, embora solidamente ligada por uma nova identidade — a da potência colonial — a classe dominante estrangeira não consegue libertar-se das contradições e dos limites da sua própria sociedade, que transfere para a área de colonização.


Quando, por ação de uma minoria da pequena burguesia autóctone aliada às massas populares indígenas, se desencadeia o movimento de pré-independência, essas massas não têm qualquer necessidade de afirmar ou reafirmar a sua identidade, que nunca confundiram nem poderiam confundir com a da potência colonial. Essa necessidade só surge ao nível da pequena burguesia autóctone (elites) que, nesta fase da evolução das contradições do processo de colonização, é forçada a tomar posição face ao conflito que opõe as massas populares à potência colonial. No entanto, como sucede nos casos de necessidade de uma identificação cultural, a reafirmação de uma identidade distinta da potência colonial não é um fato generalizado no seio da pequena burguesia. Só uma minoria reafirma essa diferença, enquanto que outra minoria afirma, quantas vezes de forma espalhafatosa, a sua identificação com a classe estrangeira dominante, e a maioria, silenciosa, se debate na indecisão.


É importante observar ainda que, mesmo no seio da parte da pequena burguesia que reafirma uma identidade distinta da potência colonial e, portanto, idêntica à das massas populares, essa reafirmação nem sempre se realiza da mesma forma. Parte dessa minoria, integrada no movimento de pré-independência, utiliza dados culturais estrangeiros para exprimir, recorrendo principalmente à literatura e às artes, mais a descoberta da sua identidade do que as aspirações e os sofrimentos das massas populares que lhe servem de tema. E como utiliza precisamente para essa expressão a linguagem e a língua da potência colonial, só excepcionalmente consegue influenciar as massas populares em geral iletradas e familiarizadas com outras formas de expressão artística. Esse fato, todavia, não diminui o valor da contribuição dessa minoria pequeno-burguesa no processo de desenvolvimento da luta, pois consegue influenciar, com a sua reafirmação de identidade, tanto parte dos indecisos e retardatários da sua própria categoria social como um importante setor da opinião pública da metrópole colonial, principalmente intelectuais.


A outra parte da pequena burguesia, que se empenha ab initio no movimento de pré-independência, descobre na participação imediata na luta de libertação e na integração nas massas populares a melhor forma de exprimir uma identidade distinta da potência colonial.


É por isso que a identificação com as massas populares e a reafirmação da identidade podem ser temporárias ou definitivas, apenas aparentes ou reais, face aos esforços e aos sacrifícios quotidianos exigidos pela própria luta que, sendo uma expressão política organizada de cultura, é também, e necessariamente, uma prova não apenas de identidade, mas ainda de dignidade.


Durante o processo de domínio colonialista, as massas populares, sejam quais forem as características da estrutura social do grupo a que pertencem, não deixam de resistir à potência colonial. Numa primeira fase — a da conquista, cinicamente denominada “pacificação” — resistem, de armas na mão, à ocupação estrangeira. Numa segunda fase — a idade de ouro do colonialismo triunfante — opõem ao domínio estrangeiro uma resistência passiva, quase silenciosa, mas muitas vezes esmaltada de rebeliões, geralmente individuais, raramente coletivas, especialmente no âmbito do trabalho, do pagamento de impostos, mesmo no contato social com os representantes estrangeiros ou autóctones da potência colonial. Numa terceira fase — a da luta de libertação — são as massas populares que constituem a força principal para a resistência política ou armada que conteste e liquide o domínio estrangeiro. Essa resistência, longa e multiforme, só é possível porque, preservando a sua cultura e a sua identidade, as massas populares mantêm intacto o sentimento de dignidade individual e coletiva, apesar dos vexames, das humilhações e das sevícias de que são tantas vezes alvo. Isto é tanto mais verdadeiro quanto é certo que os indivíduos ou as categorias sociais que se põem “voluntariamente” ao serviço da potência colonial o fazem, consciente ou inconscientemente, em benefício de interesses de grupos ou de classes contrários aos da esmagadora maioria das massas populares.


A afirmação ou a reafirmação de uma identidade distinta da potência colonial por parte da pequena burguesia autóctone contribui, portanto, unicamente para restituir um sentimento de dignidade a essa mesma categoria social. Ainda nesse plano, é conveniente observar que o sentimento de dignidade no seio da pequena burguesia depende do comportamento objetivo, moral e social, de cada indivíduo, do grau de subjetividade da sua atitude face aos dois polos do conflito colonial, entre os quais é obrigado a viver o drama quotidiano da colonização. Esse drama é tanto mais intenso quanto é um fato que, no âmbito profissional, a pequena burguesia, no desempenho das suas funções, é forçada a uma confrontação permanente, tanto com a classe estrangeira dominante, como com as massas populares. Esta situação faz com que, por um lado, o elemento pequeno-burguês seja alvo de frequentes humilhações, quase quotidianas, da parte dos estrangeiros e que, por outro lado, tome nítida consciência, tanto das injustiças a que estão sujeitas as massas populares, como da sua resistência e do seu espírito de revolta. Daí deriva este paradoxo aparente da contestação do domínio colonial: é no seio da pequena burguesia autóctone, categoria social nascida da própria colonização, que surgem as primeiras iniciativas consequentes visando a mobilização e a organização das massas populares para a luta contra a potência colonial.


Essa luta, através de todas as vicissitudes e sejam quais forem as formas que assume, reflete a consciência ou a tomada de consciência de uma identidade própria, generaliza e consolida o sentimento de dignidade, reforçado pelo desenvolvimento da consciência política, e vai beber à cultura ou às culturas das massas populares em revolta uma das suas principais forças.


III


Uma apreciação correta do papel da cultura no movimento da pré-independência ou da libertação exige que se faça uma nítida distinção entre cultura e manifestações culturais. A cultura é a síntese dinâmica, ao nível da consciência do indivíduo ou da coletividade, da realidade histórica, material e espiritual, duma sociedade ou dum grupo humano, das relações existentes entre o homem e a natureza, como entre os homens e as categorias sociais. As manifestações culturais são as diferentes formas pelas quais esta síntese se exprime, individual ou coletivamente, em cada etapa da evolução da sociedade ou do grupo humano em questão.


Verificou-se que a cultura é a verdadeira base do movimento de libertação, e que as únicas sociedades que podem mobilizar-se, organizar-se e lutar contra o domínio estrangeiro são as que preservam a sua cultura. Esta, quaisquer que sejam as características ideológicas ou idealistas da sua expressão, é um elemento essencial do processo histórico. É nela que reside a capacidade (ou a responsabilidade) de elaborar ou de fecundar elementos que assegurem a continuidade da história e determinem, ao mesmo tempo, as possibilidades de progresso ou de regressão da sociedade.


Compreende-se assim que, sendo o domínio imperialista a negação do processo histórico da sociedade dominada, é necessariamente a negação do seu processo cultural. Também — e porque uma sociedade que se liberta verdadeiramente do jugo estrangeiro retoma os caminhos ascendentes da sua própria cultura — a luta de libertação é, antes de mais, um ato de cultura.


A luta de libertação é um fato essencialmente político. Por conseguinte, só podem ser utilizados métodos políticos (incluindo o uso da violência para liquidar a violência, sempre armada, do domínio imperialista) no decurso do seu desenvolvimento. A cultura não é, pois, nem poderá ser, uma arma ou um método de mobilização de grupo contra o domínio estrangeiro. Ela é bem mais do que isso. Com efeito, é no conhecimento concreto da realidade local, em especial da realidade cultural, que se fundamenta a escolha, a estruturação e o desenvolvimento dos métodos mais adequados para a luta. Daí a necessidade, para o movimento de libertação, de conceder uma importância primordial não só às características gerais da cultura da sociedade dominada, mas também às de cada categoria social. Embora tenha um caráter de massa, a cultura não é uniforme, não se desenvolve igualmente em todos os setores, horizontais ou verticais, da sociedade.


A atitude e o comportamento de cada categoria ou de cada indivíduo face à luta e ao seu desenvolvimento são, certamente, ditados pelos seus interesses econômicos e também profundamente influenciados pela sua cultura. Pode-se mesmo afirmar que é a diferença dos níveis de cultura que explica os diferentes comportamentos dos indivíduos duma mesma categoria social face ao movimento de libertação. É neste plano, portanto, que a cultura atinge todo o seu significado para cada indivíduo: compreensão e integração no meio social, identificação com os problemas fundamentais e as aspirações da sociedade, aceitação ou negação da possibilidade duma transformação no sentido do progresso.


É evidente que a multiplicidade de categorias sociais, em especial de etnias, torna mais complexa a definição do papel da cultura no movimento de libertação. Mas esta complexidade não pode nem deve diminuir a importância decisiva, no desenvolvimento desse movimento, do caráter de classe da cultura, muito mais sensível nas categorias urbanas e nas sociedades rurais de estrutura vertical (Estado), mas que não deve deixar de ser tomada em consideração mesmo nos casos em que o fenômeno de classe surge ainda no estado embrionário. A experiência demonstra que, perante a necessidade de uma opção política exigida pela contestação do domínio estrangeiro, as categorias privilegiadas, na sua maioria, colocam os seus interesses imediatos de classe acima dos interesses do grupo ou da sociedade, contra as aspirações das massas populares.


Na apreciação do papel da cultura no movimento de libertação, é conveniente não esquecer que a cultura, como resultante e determinante da história, comporta elementos essenciais e secundários, forças e fraquezas, virtudes e defeitos, aspectos positivos, fatores de progresso e de estagnação ou mesmo de regressão – em suma, contradições e mesmo conflitos. Seja qual for a complexidade desse panorama cultural, o movimento de libertação tem necessidade de nele localizar e definir os dados contraditórios para preservar os valores positivos, efetuar a confluência desses valores no sentido da luta e no âmbito de uma nova dimensão — a dimensão nacional. É preciso, no entanto, notar que só no decurso da luta a complexidade e a importância dos problemas culturais surgem em toda a sua vastidão, o que obriga frequentemente a adaptações e correções sucessivas da estratégia e das táticas em função de realidades que só a luta pode revelar. Da mesma forma, só a luta revela como e quanto a cultura é uma fonte inesgotável de coragem, de recursos materiais e morais, de energia física e psíquica para as massas populares, assim como também, sob determinados aspectos, de obstáculos e dificuldades, concepções erradas da realidade, desvios no cumprimento do dever e limitações do ritmo e da eficácia da luta perante as exigências políticas, técnicas e científicas que impõe.


Tudo isso implica uma permanente confrontação, tanto entre os diferentes elementos da cultura, como entre esta e as exigências da luta. Desenvolve-se assim uma ação recíproca entre a cultura e a luta. A cultura, base e fonte de inspiração da luta, começa a ser influenciada por esta, influência que se reflete de forma mais ou menos evidente, quer na evolução do comportamento das categorias sociais e dos indivíduos, quer no desenrolar da própria luta. Tanto os dirigentes do movimento de libertação, na sua maior parte originários dos centros urbanos (pequena burguesia e trabalhadores assalariados), como as massas populares (cuja esmagadora maioria é composta por camponeses), melhoram o seu nível cultural: maior conhecimento das realidades do país, libertação de complexos e preconceitos de classe, alargamento do universo no qual evoluem, destruição das barreiras étnicas, reforço da consciência política, integração no país e no mundo, etc.


Qualquer que seja a sua forma, a luta exige a mobilização e a organização de uma maioria signific0tiva da população, a unidade política e moral das diversas categorias sociais, a liquidação progressiva dos vestígios da mentalidade tribal e feudal, a recusa das regras e dos tabus sociais e religiosos incompatíveis com o caráter racional e nacional do movimento de libertação, e opera ainda muitas outras modificações profundas na vida das populações. Isto é tanto mais autêntico quanto é certo que a dinâmica da luta exige também a prática da democracia, da crítica e da autocrítica, a participação crescente das populações na gestão da sua vida, a alfabetização, a criação de escolas e de serviços sanitários, a formação de quadros vindos dos meios camponeses e operários, e muitas outras realizações que implicam uma verdadeira marcha forçada da sociedade no caminho do progresso cultural. Demonstra-se assim que a luta de libertação não é apenas um fato cultural, é também um fator de cultura.


No seio da sociedade indígena, as influências da luta refletem-se nos resultados multilaterais das realizações acima mencionadas, assim como no desenvolvimento e/ou sobre a consolidação da consciência nacional. A ação confluente do movimento de libertação no plano cultural leva à criação de uma lenta, mas sólida unidade cultural, de natureza simbiótica, correspondente à unidade moral e política necessária à dinâmica da luta. Com a ruptura do hermetismo de grupo, a agressividade de caráter racial (tribal ou étnico) tende a desaparecer progressivamente para dar lugar à compreensão, à solidariedade e ao respeito mútuo entre os diversos setores horizontais da sociedade, unidos e identificados na luta e num destino comum face ao domínio estrangeiro — sentimentos esses de que as massas populares tomam facilmente consciência se o oportunismo político, característico das camadas sociais médias, não vier perturbar esse processo. Constata-se igualmente um reforço da identidade de grupo e um correspondente avivar da dignidade. Esses fatores em nada prejudicam a estruturação e o movimento do conjunto social no sentido de um avanço harmonioso e em função de novas coordenadas históricas — as da dimensão nacional — de que só uma ação política intensiva e eficaz, elemento essencial da luta, pode definir a trajetória e os limites e garantir a continuidade.


Entre os representantes do poder colonial e na opinião metropolitana, a luta de libertação — prova ativa da cultura, da identidade e da dignidade do povo da colônia — criou primeiro um sentimento geral de espanto, surpresa e incredulidade. Uma vez superado esse sentimento, que é fruto de preconceitos ou da deformação sistemática que caracteriza a informação colonialista, as reações variam segundo os interesses e as opções políticas e o grau de cristalização de uma mentalidade colonialista ou racista das diferentes categorias sociais, isto é, dos indivíduos. Os progressos da luta e os sacrifícios impostos pela necessidade de exercer uma repressão colonialista, policial e/ou militar, provocam na opinião metropolitana uma cisão que se traduz por tomadas de posição diferentes, ou até divergentes, e pela emergência de novas contradições políticas e sociais.


A partir do momento em que a luta se imponha como um fato irreversível, e mesmo que os meios utilizados para a dominar sejam muito grandes, opera-se uma mudança qualitativa na opinião metropolitana que, na sua maioria, aceita progressivamente a possibilidade, ou mesmo a fatalidade, da independência da colônia. Uma tal mudança traduz o reconhecimento, consciente ou não, do fato de o povo colonizado em luta ter uma identidade e uma cultura próprias. E isto apesar do fato de uma minoria ativa, agarrada aos seus interesses e aos seus preconceitos, continuar durante todo o conflito a recusar o direito à independência, a não admitir a equivalência das culturas que este direito implica. Equivalência que, numa etapa decisiva do conflito, é implicitamente reconhecida ou aceita, mesmo pela potência colonial, quando, para desviar a luta dos seus objetivos, aplica uma política demagógica de “promoção econômica e social”, de “desenvolvimento cultural” baseado na personalidade própria do povo colonizado, recorrendo, no plano político, a novas formas de domínio. Com efeito, se o neocolonialismo é, acima de tudo, a continuação do domínio econômico imperialista disfarçado por uma direção política autóctone, é também o reconhecimento tácito, pela potência colonial, do fato do povo que ela domina e explora ter a sua própria identidade, a qual exige uma direção política própria, para a satisfação de uma necessidade cultural.


Deve-se notar também que, aceitando a existência de uma identidade e de uma cultura do povo colonizado, portanto do seu direito inalienável à autodeterminação e à independência, a opinião metropolitana (ou, pelo menos, uma parte importante dessa opinião) reflete um progresso significativo de ordem cultural e liberta-se de um elemento negativo da sua cultura: o preconceito da supremacia da nação colonizadora sobre a nação colonizada. Este progresso pode ter consequências importantes, mesmo transcendentes, na via e na evolução política da potência imperialista ou colonial, como o provam alguns fatos da história recente ou mesmo atual da luta dos povos contra o domínio estrangeiro.


Algumas afinidades genético-somáticas e culturais entre vários grupos humanos de um ou de diversos continentes, assim como situações mais ou menos semelhantes em relação ao domínio colonial e/ou racista, levaram a formular teorias e a criar “movimentos” baseados na hipótese da existência de culturas raciais ou continentais. A importância do papel da cultura no movimento de libertação, geralmente reconhecida ou pressentida, contribuiu para dar a esta hipótese uma certa audiência. Sem pretender minimizar a importância que tais teorias ou “movimentos” tiveram ou têm enquanto tentativas, bem sucedidas ou não, de procura de uma identidade, e enquanto meio de contestação do domínio estrangeiro, podemos afirmar que uma análise objetiva da realidade cultural conduz a negar a importância de culturas raciais ou continentais. Em primeiro lugar, porque a cultura, tal como a história, é um fenômeno em expansão e intimamente ligado à realidade econômica e social do ambiente, ao nível das forças produtivas e ao modo de produção da sociedade que a criou. Em segundo lugar — mas não menos importante — porque o desenvolvimento da cultura prossegue de maneira desigual, ao nível de um continente, de uma “raça”, mesmo de uma sociedade. Com efeito, as coordenadas da cultura, tal como as de qualquer fenômeno em desenvolvimento, variam no espaço e no tempo, sejam estes materiais (físicos) ou humanos (biológicos e sociológicos). Eis porque a cultura — criação da sociedade e síntese dos equilíbrios e das soluções que ela provoca para resolver os conflitos que a caracterizam em cada fase da história — é uma realidade social independente da vontade dos homens, da cor da pele, da forma dos olhos ou dos limites geográficos.


A apreciação correta do papel da cultura no movimento de libertação exige que sejam considerados globalmente e nas suas relações internas os fatores que a definem; que seja recusada a aceitação cega dos valores culturais sem ter em consideração o que podem ter de negativo, reacionário ou regressivo; que se evite qualquer confusão entre o que é expressão de uma realidade histórica e material e o que parece ser uma criação de espírito, separada dessa realidade, ou o resultado de uma natureza específica; que não seja estabelecida uma conexão absurda entre as criações artísticas, válidas ou não, e pretensas características psíquicas e somáticas de uma “raça”; finalmente, que se evite qualquer apreciação crítica, não científica ou acientífica, do fenômeno cultural.


Estas condições são tanto mais necessárias para que a cultura desempenhe convenientemente o papel que lhe compete no movimento de libertação, quanto forem claros os objetivos definidos por este na via da conquista do direito do povo, que representa e dirige, a ter a sua própria história e a dispor livremente das suas forças produtivas, tendo em vista o ulterior desenvolvimento de uma cultura mais rica, popular, nacional, científica e universal.


A luta de libertação, que é a mais complexa expressão do vigor cultural do povo, da sua identidade e da sua dignidade, enriquece a cultura e abre-lhe novas perspectivas de desenvolvimento. As manifestações culturais adquirem um novo conteúdo e novas formas de expressão, tornando-se assim um poderoso instrumento de informação e formação política, não apenas na luta pela independência como também na primordial batalha do progresso.

Este texto foi lido, na ausência do autor Amílcar Cabral, na Reunião de Peritos sobre noções de raça, identidade e dignidade. UNESCO, Paris, 3-7 de Julho de 1972.


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