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"Construindo uma Noruega: uma crítica a Slavoj Žižek"


A maioria de nós agora está bem consciente da perniciosa e perigosa metáfora para a migração – a tendência dos jornais ou dos colunistas de descreverem esse movimento em termos ameaçadoramente brandos: uma onda, corrente, uma maré, um influxo, um órgão crescente de água marrom fedorenta que pode apenas ameaçar qualquer população bem estabelecida. Essa linguagem não é apenas monstruosamente desindividualizante e desumanizadora: quando centenas de imigrantes estão morrendo à beira-mar, isso ajuda a arrebentar qualquer corte ético antes que se possa rever suas posições. Da água para a água, do pó ao pó. Um vasto número de pessoas, incluindo crianças, pode se afogar sem ninguém sentir qualquer necessidade de fazer nada sobre isso; apenas quando os corpos encalham na praia, que surge um impulso para fazer alguma coisa. Portanto, é lamentável, mas não surpreendente, que “The Non-Existence of Norway”, o artigo de Slavoj Žižek sobre a imigração publicado na London Review of Books, começa com esses termos familiares: “A onda de refugiados indo da África e Oriente Médio para a Europa Ocidental”. O que vem a seguir é ainda mais inquietante: Žižek compara a resposta europeia para a crise ao modelo de Kübler-Ross dos cinco estágios do luto: negação, raiva, negociação, e por aí vai (depressão e aceitação). Não apenas qualquer luto, entretanto – A Europa vem apresentando "um conjunto de reações notavelmente semelhantes ao que vemos quando descobrimos ter uma doença terminal." Os imigrantes não são apenas uma onda; Žižek ressuscita uma metáfora muito mais abertamente racista. O outro internamente é um parasita, um agente patógeno, um câncer, um agente corrosivo e poluidor que leva a morte para o corpo (saudável, homogêneo e homoestático) infectado. Claro, isso está sob os termos da reação europeia, não se trata dele mesmo fazendo a comparação; é algo que poderia facilmente ser descartado como um mero artifício retórico. Mas não é um bom prenúncio do que há de vir.

Não existem velhas piadas soviéticas nesse artigo, nenhuma referência à Hitchcock ou Kung Fu Panda, e apenas uma breve e superficial menção à Stalin. Fundamentalmente não há Freud, Lacan ou Hegel, e nem mesmo alguma citação de Derrida (o que surpreende, dado que a questão da imigração no final se trata de hospitalidade). Acima de tudo, não há nada que possa ser considerado como Marxismo. O que levanta a pergunta de qual premissa teórica estamos falando? Em essencial é apenas um jogo, uma forma de construir leituras de entretenimento sobre efemeridades da cultura pop, que devem ser postas de lado em prol de uma análise pragmática quando assuntos reais e importantes como imigração surgem? Ou é algo que realmente é essencial na formação de uma compreensão sofisticada do mundo, e nunca mais do que isso quando a demanda é que coloquemos de lado nossos rizomas e diferenças, e começamos a lidar com a realidade? O quão culpado eu seja de ser parte da primeira tendência, eu gostaria de acreditar que a última é algo real. Claramente, Žižek discorda: o que seu artigo nos dá é um artigo de opinião sem adulteração e sem mediações, uma perspectiva bastante de senso comum, que poderia facilmente figurar nas páginas do Wall Street Journal ou no blog de algum político reacionário.

O argumento de Žižek é complicado e contraditório, mas pode ser brevemente resumido assim. A “crise” migratória que atualmente aflinge a Europa é definida (corretamente) como o resultado inevitável de sucessivas intervenções ocidentais no Oriente Médio e no Norte da África, junto de relações neocoloniais em todo o Sul do globo. Ao mesmo tempo, os imigrantes exigem uma reivindicação “enigmaticamente utópica”: eles não querem apenas chegar em algum lugar seguro dentro da Europa, longe de bombas e armas.

Os milhares que marcham heroicamente pela Hungria estão correndo para a Áustria e Alemanha, aqueles forçados a ficar em acampamentos em Calais “não estão satisfeitos com a França” e ao invés disso, exigem ir para a Grã-Bretanha, pessoas que arriscam suas vidas em botes de borracha pelo Mar Egeu querem construir uma vida boa para si e seus filhos na Noruega – mas, Žižek insiste, “não existe Noruega, mesmo na Noruega”. A vida não é justa, pessoal. Os imigrantes em todo canto se encontram com a violência reacionária, afirmando defender o modo europeu pré-existente de vida dos invasores, mas a “linha padrão da esquerda sobre isso parte de um moralismo arrogante” – insistir que a dignidade humana supera quaisquer preocupações sobre as perturbações sociais é "apenas o inverso da brutalidade anti-imigrante”, porque ele aceita que a defesa de seu modo de vida está em contradição com o “universalismo ético”. Mas ao invés de demonstrar que isso é uma falsa oposição, no entanto, Žižek aparentemente do nada começa a valorizar a visão (absurda) que a imigração ameaça de alguma forma o modo europeu de vida.

“Devíamos tolerar imigrantes que não deixam suas crianças irem para as escolas do Estado, que obrigam suas mulheres a se vestirem e comportarem de certa forma, que organizam os casamentos de seus filhos, que discriminam homossexuais?” Depois de se entregar nesse retoricismo de ar especulativo por alguns parágrafos, Žižek finalmente chega a algum prescritivismo sério. A Europa deve “reafirmar seu compromisso” com um tratamento digno aos refugiados (Isso quer dizer que esse compromisso já existe?). Ao mesmo tempo, deve se “impor regras claras e regulações”, através de uma forte autoridade europeia forte. Imigrantes serão alocados a um local na Europa e devem permanecer lá. Não devem cometer quaisquer atos de violência sexista, racista ou religiosa, já que devido a seus tipos estrangeiros, fariam. Isso é porque estão na Europa agora, e não estão mais livres de se jogar a uma barbárie endêmica e única às partes do mundo que produzem a imigração. “Tais regras privilegiam o modo de vida da Europa Ocidental, mas é o preço a se pagar pela hospitalidade da Europa”. E isso deve ser apoiado pela violência brutal do Estado.

Existem muitas coisas aí bastante erradas, mesmo algumas que vão além do óbvio. A ideia que o problema principal é o “fluxo” imigratório para a Europa, que a Europa vem evidenciando uma crise migratória, ao invés do inverso que é mais preciso: os imigrantes estão evidenciando uma crise europeia, uma de grades, fascistas e policiais. A noção desconcertante que a falta de violência sexista, racista ou religiosa de alguma forma é uma parte fundamental da vida europeia, que estas coisas só existem no Sul do Globo, e que será levada a cabo, como uma praga se infestando, por seus antigos habitantes. A súbita e inexplicável invocação do véu islâmico como o simbolismo-mestre da alteridade não-europeia: quando centenas estão se afogando no Mediterrâneo, e milhares aprisionados em campos de refugiados desumanizantes, seria realmente a expressão de suas religiosidades a questão mais urgente? O artigo de Žižek aparenta desconhecer coisas simples: uma vasta porção dos imigrantes que chegam à Europa são da Síria, um país de rendimento médio com uma longa história de secularismo e co-existência comunitária: a ideologia takfiri que está atualmente em curso é uma importação estrangeira, como são a maior parte dos takfiristas próprios. Muitos dos refugiados que podem pagar para ir até a Europa são oriundos da pequena-burguesia síria; e se realmente levarmos em conta que a classe é um fator determinante mais crucial do que nacionalidade, devemos ao menos ser abertos à ideia que seus “valores” e modos de vida não serão tão diferentes daqueles da Europa burguesa.

É inclusive possível argumentar que os imigrantes são mais europeus que a própria Europa. Žižek debocha do desejo utópico por uma Noruega que não mais existe, e insiste que os imigrantes deveriam ficar onde foram mandados (não parece lhe ocorrer que aqueles que tentam chegar a certo país podem possuir familiares que já vivem lá, ou que falam certo idioma, que é motivado precisamente pelo desejo de se integrar. Mas também – não seria isso rigorosamente a manifestação de objet petit a? Que tipo de Lacaniano diz a alguém que ele deve efetivamente abandonar seu desejo por algo apenas por não ser alcançável? Ou os imigrantes não são dignos do luxo de possuir uma mente inconsciente?. Em Calais, imigrantes tentando chegar no Reino Unido protestaram contra suas condições com placas exigindo “liberdade para a circulação para todos”. Diferente da igualdade racial ou de gênero, a livre circulação de pessoas por fronteiras nacionais é supostamente um valor universal Europeu que realmente foi implementado – mas claro, apenas para europeus. Esses manifestantes colocam na parede qualquer afirmação por parte da Europa de defender os valores universais. Žižek apenas pode articular o “modo de vida” europeu em termos de generalidades vagas e transcendentais, mas aqui temos isso em carne viva. Se o desafio da imigração diz respeito ao universalismo contra o particularismo repressivo e atrasado, então o particularismo está inteiramente nas costas da Europa.

Isso é, no entanto, uma linha argumentativa que mesmo Žižek já desdobrou – vejam sua discussão sobre a Revolução Haitiana em “Primeiro como tragédia, depois como farsa”; o momento em que os soldados franceses ao invadir o Haiti, são recebidos por escravos revolucionários cantando a Marselhesa (Claro, mesmo se não fosse o caso, e daí? Qualquer um que não abrace um certo tipo de universalismo deve ser deixado para se afogar?). Então por que não agora? Seria por que a Revolução Haitiana está seguramente abrigada no passado, enquanto a crise migratória está acontecendo agora? É por causa do elemento desconfortável do Islã (embora, como Susan Buck-Morss demonstra, isso estava longe de estar ausente no Haiti)? E principalmente, por que Žižek manifesta esse total abandono de sua teoria? Sua abordagem “direta” resulta em algumas formulações altamente desconfortáveis – por exemplo, quando ele diz que “refugiados são o preço a se pagar por uma economia globalizada onde as mercadorias, mas não pessoas, se permitem circular livremente”. Não é uma afirmação abertamente condenável, mas pela justaposição de “preço” com “economia”. Preço é um valor de troca, algo que apenas pode existir dentro de certa economia. Uma economia em si não pode ter um preço, sem ser em si situada a alguma economia maior e mais geral - que, nas condições da totalidade capitalista, sempre só poderá reproduzir a si mesma ao invés de tentar formar qualquer crítica da economia, enquanto tal, Žižek entrega a sua análise a reboque dela. A vida humana deve ser calculada em termos de custo e benefício, preço e não de valor; não apenas a presença de refugiados, mas a sua própria existência é figurada como um desperdício irresponsável dos recursos. Ninguém deveria sair forçado de sua casa, mas aqui as pessoas que estão sendo, ao invés disso, deveriam nem existir. É por isso que a teoria é essencial: nos permite evidenciar, e resistir, a palavras como essas.

Algumas dessas questões podem ser respondidas ao tomar outra perspectiva do artigo de Žižek. Uma crítica marxista adequada não apenas observa o que o texto diz, mas o que ele faz, e para quem ele se dirige. Žižek faz um uso generoso do pronome em primeira pessoa no plural, mas quem seria esse “nós”? Apenas e sempre os europeus ali instalados. Em nenhum momento é considerado que um imigrante poderia ser bem letrado, poderia falar inglês, poderia estar lendo a London Review of Books. Quando Žižek usa o vocativo, quando diretamente apostrofisa o leitor e traça prescrições do que ele deveria fazer, se torna ainda mais óbvio para quem ele está se dirigindo. Ele invoca, mas nunca encorajando, a uniformização da luta entre europeus e imigrantes, ou o tipo de manifestações de solidariedade espontânea que já estão irrompendo em todo o continente. Ao invés disso, ele diretamente se dirige às classes dominantes europeias, as instruindo para impor regras e regulações, formar redes de administração, para introduzir medidas repressivas. Isso é, para dizer o mínimo, um comportamento estranho para um comunista autodeclarado. “Non-Existence of Norway” não é uma análise teórica, é uma forma gentil de endereçar conselhos nos ouvidos da classe burocrática europeia, uma que particularmente não está interessada em Lacan. Por mais que ele insista na “mudança econômica radical”, esta estrutura epistolar garante que tal mudança está, dentro de nosso tempo estabelecido, completamente fora do jogo. Daí a insistência que não existe, e nunca pode existir, uma Noruega. Os capitalistas não pretendem fazer uma, e Žižek não pretende se dirigir àqueles que poderiam pretender. E a isso, a resposta Marxista deve ser que se não existe Noruega, então nós teremos que construí-la nós mesmos.

Texto de Sam Kriss, publicado em seu blog Tradução de Gabriel Duccini

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