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"Anuradha Gandhi, a rebelde"



Nasceu no privilégio e podia muito bem ter escolhido a vidinha fácil. Mas Anuradha Gandhi escolheu o caminho das armas em vez do caminho das rosas, para lutar pelos oprimidos.


Em 2008, numa noite úmida, algures em Mumbai, um médico procurava desesperadamente sinais na sua paciente. A paciente era uma mulher nos seus 50, dera entrada nessa manhã com febre alta. O médico tinha recomendado uns exames ao sangue, e à medida que observava os resultados, tentava telefonar para um número que a paciente, com a sua caligrafia ilegível, rabiscara num papel. Rapidamente percebeu que o número não existia. Ele foi incansável. Os resultados revelaram a presença de duas estirpes mortais de malária na corrente sanguínea – ela tinha de dar entrada no hospital sem demora. O tempo voava e ela não dava sinais.


Assim que deu sinais já tinham passado alguns dias. O médico queria colocá-la imediatamente nos cuidados intensivos. Mas era tarde demais.


Na manhã seguinte, dia 12 de abril, Anuradha Gandhi estava morta. Sofreu de disfunção múltipla dos órgãos, o seu sistema imunitário fora enfraquecido pela esclerodermia, uma doença auto-imune responsável, entre outras coisas, pela sua má caligrafia.


Em um instante a notícia correu amigos e seguidores de Anu, como era carinhosamente chamada. Antes mesmo de chegar a Indora, uma zona pobre Dalit em Nagpur onde Anu viveu durante sete anos. Isto foi antes do seu nome aparecer no Ministério do Interior como “Janaki”, e “Narmada” e ainda “Varsha” – a única mulher no Comité Central do Partido Comunista da Índia (Maoísta), o órgão máximo dos Naxalitas.


Como é possível que a filha dum prestigiado advogado, licenciada em Elphinstone, MPhil em sociologia, uma mulher dum meio privilegiado, acabasse a escolher uma vida de luta e dificuldades nas traiçoeiras selvas de Bastar? Acompanhada por uma metralhadora e lona tarpaulin para dormir. A explicação talvez esteja na época em que viveu. Ou no tipo de pessoa que ela era. Ou um pouco dos dois.


***


Anuradha é filha de Ganesh e Kumud Shanbag, ambos ativistas que escolheram casar num centro de trabalho do Partido Comunista da Índia. Quando era mais novo, Ganesh Shanbag teve de abandonar a sua casa no Coorg para se alistar no exército de Subhash Chandra Bose, e mais tarde como advogado, ele viria a defender os comunistas presos na rebelião de Telangana. Enquanto a sua pasta se enchia de casos onde defendia os camaradas, Kumud tricotava camisolas para os soldados que lutavam contra a China.


Sunil Shanbag, o irmão de Anuradha, é um escritor progressista, e recorda que ela era boa aluna na escola e também nas actividades extra-curriculares como a dança. Mas era extremamente sensível ao que se passava à sua volta. Diz Sunil: “quando estava no colégio interno, ela escrevia-me sobre coisas como a nacionalização dos bancos. E tinha na altura 12 anos de idade”. Mas apesar desta consciência, Anuradha era como qualquer outra adolescente quando entrou para a universidade em 1972. “Chegava à casa e arranjava o cabelo com a ajuda dum ferro de engomar, como faziam as meninas naqueles tempos” recorda Kumud Shanbag.


***


O início dos anos 70 foram inebriantes. Estava a acontecer de tudo um pouco por todo o lado. Mao tinha apresentado a Revolução Cultural na China. O Vietname estava a oferecer uma feroz resistência às forças americanas. No nosso país, irrompera o trovão de Naxalbari. Centenas de estudantes das universidades de elite abandonavam as suas carreiras e juntavam-se ao movimento Naxalita. Jovens de famílias abastadas que tinham estudado no estrangeiro, estavam a radicalizar-se. Um deles era aluno da escola Doon, e colega de Sanjay Gandhi. O pai de Kobad Gandhi era um alto quadro da Glaxo e a família vivia numa grande casa à beira mar em Worli. Ele tinha saído para cursar contabilidade em Inglaterra, e foi lá que contactou com a política mais radical. Deixou o curso incompleto e regressou.


Durante estes tempos Anuradha dava aulas, mas tinha-se dedicado ao Movimento Juvenil Progressista (PROYOM), que foi inspirado no movimento Naxalita. Mais tarde tornou-se uma das caras do movimento pelas liberdades civis em Mumbai. É nesta altura que Anuradha e Kobad se conhecem. Não é claro quem influenciou quem, mas logo se tornaram “firmes ativistas” – como dizia amigos de ambos.


Os dois apaixonaram-se e Kumud recorda-se bem do dia em que Kobad os visitou em casa. “O meu marido estava aqui nesta cadeira” – aponta – e o Kobad ajoelhou-se para dizer ‘posso casar com a sua filha?'”.


Os dois casaram em Novembro de 1977.


Em 1980 comandos naxalitas do extinto Partido Comunista da Índia (Marxista-Leninista) Guerra Popular, entraram em Dandakaranya – uma faixa de floresta que perpassa Andhra Pradesh, Chhattisgarh, Maharashtra e Orissa —, para assentar uma base de guerrilha. Em 1981, o fundador do Partido, Kondapalli Seetharamaiah, manifestou vontade em conhecer Kobad durante a conferência do Sindicatos dos Estudantes Radicais em Andhra Pradesh. O Partido estava decidido a entrar na região Gadchiroli de Maharshtra. O ideólogo naxalita Varvara Rao afirmou que a reunião entre os dois abriu caminho para a implantação do Partido em Maharashtra.


O compromisso do casal foi total. Um ano depois, Anuradha mudou-se para Nagpur, que era a segunda maior favela em Maharashtra, e a zona dum significativo número de Dalits (foi em Nagpur, em outubro de 1956, que BR Ambedkar aceitou o Budismo). Viveu primeiro num barsati (pequeno apartamento térreo duma só assoalhada) na zona de Lakshmi Nagar. Kumud lembra-se de a visitar com o marido. “Quando vimos aquele tugúrio nem pudemos acreditar”. Chovia dentro de casa, e tinha chovido nessa noite. “O nosso ajudante dormiu debaixo duma mesa” lembra-se.


No entanto, em 1986 Anuradha mudou-se para Indora, norte de Nagpur, o epicentro da política Dalit. Ela alugou dois quartos pequenos quartos na casa dum trabalhador dos correios – Khushaal Chinchikhede. “Não havia absolutamente nada naquela casa exceto duas estantes com livros e uma jarra de barro” disse ele. Anuradha também trabalhou em meio período como professora na Universidade de Nagpur. Mais tarde Kobad foi viver para lá. Ambos conversavam até altas horas. Anuradha usava uma bicicleta para se deslocar, e foi por insistência doutros ativistas que Kobad comprou uma bicicleta motorizada TVS Champ.


Indora era famosa pelo caos. “Nenhum taxi ou triciclo motorizado se aventurava por ali” diz Anil Borkar, que cresceu em Indora. Mas Anuradha circulava tranquilamente. “Ela passava no basti à meia-noite, sozinha na sua bicicleta”. Ele conheceu Anuradha por intermédio dum amigo. “Ela despertou-me para uma série de questões. Como se um mundo se me abrisse”.


Por causa de Anuradha, Devanand Pantavne que era cinturão negro em karaté, virou poeta e cantor dum grupo cultural radical. Pantavne recorda-se que ela era exigente com os prazos. “Enfurecia-se se aceitássemos um trabalho e não o entregássemos a tempo”. Outro jovem chamado Surendra Gadling, foi motivado por Anuradha para estudar Direito. Hoje defende casos de alegados naxalitas. “Ela é a minha luz”. E não é por acaso. Anuradha liderou pelo exemplo, e viveu a vida que queria para os jovens do basti.


Em 1994, uma mulher Dalit, Manorama Kamble, empregada doméstica a trabalhar em casa dum advogado influente, apareceu morta, e a família do advogado alegou que ela se eletrocutou acidentalmente. Mas os ativistas suspeitavam que ela tinha sido violada e depois morta pelo advogado. Anuradha liderou uma campanha de agitação, esforço que levou o caso a estalar na assembleia estadual e no parlamento.


Em Indora, um dos camaradas de confiança de Anuradha foi Biwaji Badke, um ativista Dalit de elevada estatura. “Todas as manhãs ia a casa de Anuradha e partilhava as notícias à volta duma chávena de chá”. Quando lhe foi diagnosticado cancro na garganta, Anuradha levou-o para casa e cuidou dele durante uns meses. Outro camarada, Shoma Sen recorda-se bem da sensibilidade dela. “A casa dela estava aberta a toda a gente, para cada pessoa que chegava saía mais um copo de chá”.


***


Com o exemplo dela convenceram-se muitas pessoas de famílias bem estabelecidas a abraçar o ativismo. Afirma Susan Abraham, uma antiga camarada dos tempos de ativismo: “quando me tornei ativista, era entusiasmante ter pessoas do entorno da Anu a trabalhar conosco”.


Foi já em meados dos anos 90 que Anuradha entrou para a direção naxalita nas selvas de Bastar, e finalmente passou à clandestinidade. Maina, membro do Comité da Zona Especial de Dandakaranya do Partido Comunista da Índia (Maoísta), recorda os esforços dela para se inserir nas tribos gondi: “Muitos questionavam-nos sobre a Didi (Anuradha). que ela não era deste país e não falava a nossa língua”. A Didi aproximava-se deles com um sorriso: “já sei o que querem; por favor ensinem-me a vossa língua, vou aprender convosco”.


A vida na selva era dura. As guerrilhas andavam sempre em movimento, duma vila para a outra, carregando mantimentos pesados. Anuradha não virava a cara às dificuldades; fez tudo o que as guerrilhas fizeram. Um líder guerrilheiro que estava em Bastar quando ela entrou, recorda-se de a ver, não poupava esforços em nenhum treino militar: a correr, a rastejar, flexões e em qualquer outro trabalho. Diz Maina: “Ela escorregava, caía na lama, depois levantava-se e ria-se”.


Em 1999, Anuradha estava num acampamento com outras guerrilhas na localidade de Sarkengudem em Chhattisgarh, quando foram cercados pela polícia. Lahar, um dos líderes guerrilheiros lembra-se de Anuradha enquanto tomava posição para apontar ao ‘inimigo’. Mais tarde socorreu-se desse combate para transmitir aos jovens a importância de aprender a arte da guerra de guerrilhas. Contudo, Sunil lembra-se de a ouvir falar sobre “o estranho que era andar armada”.


A vida na selva não lhe poupou o corpo – sofreu frequentes ataques de malária. Durante esse verão estava a fazer uma longa caminhada quando parou e perdeu os sentidos. Os camaradas deram-lhe água com glicose. Tinha sido uma insolação. Diz Lahar que depois de recuperar se recusou a passar a sua mala de mantimentos aos outros.


Quando a zona sul de Bastar foi afetada por uma severa seca em 1998-99, e as tribos se viram forçadas a comer arroz, a Maina dizia que “aquilo eram mais paus que grãos”. As guerrilhas comiam esse arroz com pasta de tamarindo. “Engolíamos tudo em grandes quantidades com água. Ela costumava demorar imenso tempo a terminar a refeição”. Também desenvolveu uma úlcera no estômago. “Ela aliviava a dor com biscoitos e água”.


Para aliviar a carga, Anuradha decidiu desfazer-se dos pesados cobertores que as guerrilhas carregavam, optando por uns lençóis mais finos. Foi nesta altura que desenvolveu esclerose.


Independemente do que dissesse o Centro [Centro Comunista Maoísta], os naxalitas costumavam ocupar o espaço deixado vago pelo governo nas suas zonas de influência. Na localidade de Basaguda em Chhattisgarh, era necessário construir um dique à volta dum lago em Kota Chervu; muitos habitantes locais contavam com este lago para se abastecer. O governo ignorou-os durante anos. Foi com o impulso de Anuradha que os habitantes de 30 localidades puseram mãos à obra. Trabalhavam por um quilo de arroz por dia. O governo entrou em pânico e tentou impor multas de 2000 rupias; que foram chumbadas. Em 1998, mais de 100 lagos artificiais foram construídos pelos naxalitas em Dandakaranya.


Anuradha também tomou em mãos a tarefa de construir novos modelos para educar as mulheres. Regularmente recebia aulas sobre os problemas das guerrilheiras, escreveu e traduziu material de propaganda naxalita. Preparava aulas com fotografias de líderes políticos e explicava assuntos internacionais a população local iletrada. Às vezes também dava aulas sobre questões de saúde.


No meio de tudo isto, Anuradha fazia viagens secretas a Mumbai. “Ela chegava, eu passava-lhe óleo no cabelo e massageava o corpo. Queria cuidar dela o melhor que podia” dizia Kumud.


“O mais incrível é que ela sabia mais do que nós sobre filmes e cultura popular” diz Sunil. Durante uma das peças dele em Mumbai, Anuradha entrou e saiu sorrateiramente, assistindo à peça. “Só mais tarde soube que ela esteve lá”.


No nono congresso do Partido Comunista da Índia (Maoísta) em 2007, Anuradha foi eleita membro do comité central. Nessa altura Kobad tornou-se também um dos principais líderes naxalitas, responsável pela documentação do Partido (foi preso em Deli no dia 20 de setembro).


Foi com base no trabalho de Anuradha que os naxalitas prepararam o seu primeiro documento político sobre a questão das castas no seio do movimento Marxista na Índia. Os responsáveis naxalitas também aproveitaram os seus trabalhos sobre “Marxismo e o Feminismo”.


Durante o tempo que esteve em Dandakaranya, Anuradha ajudou as guerrilhas a superar as limitações do seu trabalho colectivo, fazendo notar a importância das cooperativas no aumento da produção agrícola.


Em Bastar, Anuradha pôs em causa as ideias patriarcais dominantes no Partido. Por alturas da sua morte, ela estava a trabalhar com outros quadros femininos para desenhar um plano que ajudasse as mulheres a assumir papéis de maior responsabilidade.


E foi em Jharkhand enquanto dava aulas com as tribos sobre a questão da opressão das mulheres que apanhou malária cerebral, o que foi fatal.


Nas memórias de Anuradha, a sua amiga Jyoti Punwani escreveu: “Diz Manmohan Singh que o ‘perigo naxalita’ é a maior ameaça para o país. Mas eu apenas me lembro duma menina que estava sempre a sorrir e que entregou a sua vida para mudar a vida dos outros”.


Em Nagpur, pedi a Chinchikhede que abrisse os quartos onde vivera Anuradha. Tudo o que sobra é um autocolante de Bhagat Singh na porta. Cor de carmesim pintava o pôr do sol. Um camarada que me acompanhou deitou-se comigo no chão, que tão familiar lhe era, e recitou um poema de Gorakh Pandey:


Tem milhares de anos

A raiva deles

Milhares de anos tem

a sua amargura

Tão só vos trago as suas palavras soltas

em rimas e rimas

E vós tendes medo

estou a espalhar fogo

por Rahul Pandita, publicado em 26 de setembro de 2009 na openthemagazine.com




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